HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE- 5
A CRIADA
Naquele tempo, em uma vila da
Beira Alta que não nomeio para não ferir ninguém, vivia na mesma casa um
caixeiro-viajante, sua esposa e uma criada. O homem chamava-se Tomás, a esposa
era a dona Carolina, a criada, Maria do Céu. Dona Carolina era regente-escolar,
muito estimada pelas crianças e pelos pais destas. Tomás tinha boa fama e muita
arte para aquele ofício que estão muito enganados se julgais que era só viajar
e gozar. Um ofício muito duro, a julgar pela famosa peça teatral de Arthur
Miller, «Morte de um caixeiro-viajante»! Saía na segunda-feira antes do sol nascer
e só regressava na sexta-feira pela noite dentro todo suado no verão debaixo do
fato e gravata preta obrigatórios, tendo todo o cuidado para não acordar a sua
mulherzinha, pelo menos de rompante. Na verdade mostravam-se como um casal
feliz. Dona Carolina mantinha a casa, nos arredores da vila, fornecida de tudo
que, naquele tempo, era necessário para se viver confortavelmente; possuíam o
automóvel que o marido utilizava, garagem e quintal com galinhas; o ordenado
dela era baixinho, mas o marido, jeitoso como era para arranjar bons clientes
(vendia máquinas e ferramentas), obtinha somas consideráveis com a sua comissão
das vendas. Carolina, que não era mulher nem bonita nem feia, andava, por
conseguinte, sempre bem-disposta, bem servida pela criadita que era muito limpa
e discreta e, sobretudo, muito religiosa. Ora, como o seu extremoso marido
estava toda a semana fora, Carolina visitava a cunhada às terças e às quintas,
pela tarde, logo no termo da manhã de trabalho com as crianças. A irmã de
Tomás, a menina Rosália, assim conhecida por ser solteirona, via-se a si mesma
envelhecer com demasiada rapidez e, claro, a contragosto; não trabalhava fora,
trabalhava dentro, cuidando da mãe que, entravada numa cama há anos, não
mostrava vontade nenhuma de se entregar na mão dos anjos. Assim, Rosália
esperava avidamente pela cunhada, única amiga e visita, todas as terças e
quintas, almoçando as duas do bom e do melhor, que eram ambas de muita
afinidade no comer e no beber.
E a criada, Maria do Céu? Bem,
essa proletária explorada e oprimida pela classe dominante, comportava-se de
modo absolutamente inverso da patroa. Comungava todos os dias. Portanto,
confessava-se todos os dias. Pela manhãzinhas, lá ia ela para a igreja, toda
vestida de negro, o xaile sobre a cabeça não lhe deixando à vista senão os
olhos, a saia até aos chinelos, os chinelos a dar a dar, parecendo que não via
ninguém, que não queria ver ninguém, tão silenciosa que a julgavam muda, salva
seja! Era bonita, era feia? E isso que importava, sendo apenas uma criadita?
Passasse ou não passasse na rua ninguém dava por ela.
Certo dia, a uma quinta-feira,
dona Carolina, regressada da casa da cunhada querida, não topou com a criada.
Estranho! Quase oito horas da tarde (era primavera adiantada) e a Maria do Céu
não estava? Teria ficado para tão tarde a visita à irmã que ela dizia fazer uma
vez por outra, à aldeia do monte? Estaria a irmã muito doente? Carolina
esperou. Quando chegasse o marido no dia seguinte, tratariam do assunto, iriam
lá no automóvel, ajudariam a rapariga no que necessitasse!
Entretanto, resolveu subir ao sótão, ao
quartinho da criada, pois ela teria levado consigo alguma roupa suplente se
contasse dormir fora. No sítio não estava nada, o armário vazio, a cama feita,
nem chinelos, nem sapatos, nadinha! Ó Mãe de Deus, alguma coisa se passava ali de
muito estranho. Neste matutar passou mal a noite. No dia seguinte, que era uma
sexta-feira, foi ensinar os meninos e, em seguida, conversar com a cunhada
sobre o assunto. Passaram a tarde a calcular os possíveis motivos. Realmente,
concluíram elas, a Maria do Céu foi-se embora, não podia ser outra razão!
Contudo, que estranho! Não recebera o ordenado do mês que estava quase no fim,
não se despedira da patroa, não se dignara explicar-lhe os porquês!
Na sexta-feira o marido não chegou. Nem pela noite, nem pelo sábado, nem
pelo domingo! E mais: faltava a melhor roupa dele, os melhores sapatos, a caixa
dos charutos!
Só soube a verdade pela cunhada
nesse domingo, à tardinha. O irmão desta telefonou da cidade e esclareceu tudo.
Tinha ido embora com o amor da sua vida: a Maria do Céu! Pedia perdão à esposa,
essa excelente criatura a quem ele devia muito. Ia pedir o divórcio,
humildemente, mas depressa, porque a Maria do Céu recusava-se a viver
amancebada. Naquele tempo era assim mesmo.
Todas as terças e quintas o
marido, na ausência da Carolina (estava na casa da irmã dele), vinha a casa de
mansinho, subia ao sótão onde Maria do Céu o esperava em pelo, bonita, robusta,
despudorada, em cima dos lençóis nos dias de brasa, ou dentro nas tarde de
inverno, e ele, manganão, saltava-lhe em cima, com a gravata posta e tudo!
Enquanto Carolina desfiava as tardes com a cunhada, no sossego confiante das
rotinas, o marido e a rapariga refastelavam-se. No dia seguinte, quartas e
sextas, Maria do Céu dirigia-se tão certa como o relógio de parede, taciturna e
velada, à confissão!
NOZES PIRES
31/05/2020