quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 

HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE - 12
 
ARTUR
 
TERCEIRO CAPÍTULO
 
E porque era um romântico ingénuo e bom, num certo dia o meu amigo Artur apareceu-me com um saco de compras cheio de livros e declarou do alto do seu metro e oitenta e tal: « Vou estudar a política, e depressa, para realizar feitos grandes para o mundo e para a minha pátria maltratada!». Não percebi naquele instante se a “pátria” dele era então Moçambique ou Portugal.«E como e onde vais tu aprender tanta coisa Artur?», interroguei com a maior das credulidades espreitando para os volumes.. «Vou sair por aí fora e conhecer Moçambique inteiro , depois, sabe-se lá!, partirei para a Europa e percorrerei o mundo!». «O mundo é muito grande, pá, não é melhor ficarmos por Moçambique?». «Ficarmos? Porquê, tu também aderes a este programa?». «Adiro sim, mas pela aventura! Só pela aventura! Sair do tédio desta cidade já é suficiente.». Mal sabia eu o que me esperava... Almejava aventuras sim, mas sempre bem comido e com umas belas garotas ao pé. Não foi isso que aconteceu,
Despedimos da família (como estávamos nas férias grandes não puseram obstáculos), enchemos as mochilas com o necessário e partimos para a única estrada que nos levaria ao norte. À boleia evidentemente. Uma carrinha com um padre e três freiras levou-nos até ao Xai-Xai (antiga vila de João Belo) no vale do rio Limpopo. A cidade era encantadora e nessa noite decorria uma procissão católica chamada de “velas”; uns rapazes nossos conhecidos desfilavam com a farda da Mocidade Portuguesa (uma legião fascista fundada pelo Marcelo Caetano e a que a rapaziada, pelo menos nós ambos, achávamos piada àquela caricatura de “soldadinhos de chumbo” imberbes ao serviço de Salazar) e eles e o público em geral transportavam na mão uma vela dentro de um copo se bem me lembro, de papel é claro. O que fez Artur? Adivinhem: considerou que aquelas velazitas não estavam à altura da dignidade da Santa que uns homens carregavam aos ombros e vai daí construiu um archote não sei como, um enorme archote, e ei-lo à frente daquele devoto pessoal! Foi um escândalo. Tive que o levar para longe dali pelo braço. Ele acedeu. Contudo, julgais que ele me obedecia? Qual quê! Quem lhe obedecia era eu, afora o termo que me desagrada, a princípio sempre à espera de aventura, de uma beldade branca ou morena com quem veraneasse naquelas praias de sonho...Porém, Artur não parava, nem me dava oportunidade para eu descobrir a fundo as belas praias. Pelo contrário, empurrava-me para a savana enfadonha e tórrida guardada por serpentes que podiam matar-nos num segundo. Dormimos na casa de um “cantineiro” (assim eram designados os colonos que instalavam mercearias, ou cantinas, pelo mato dentro). Pela manhã cedinho atravessamos o rio Limpopo numa jangada presa a um cabo de margem a margem e puxada a braços pelos africanos. E pelo Artur...Até Inhambane uma mulher toda moderna e liberal deu-nos boleia no seu carro desportivo, a cento e muitos à hora. Era esposa de um engenheiro que administrava uma enorme fazenda de banana. A certa altura conseguiu, muito a custo, interromper a fala caudalosa do Artur e confessou que preferia um Moçambique independente da Metrópole, uma democracia, disse ela, de brancos e negros. Para nós, noviços, estas conversas e soluções baralhavam-se nas nossas cabeças. Entretanto, nos intervalos em que éramos obrigados a fazer caminhadas pela estrada ou por picadas, eu queixava-me de tudo: da fome, da sede, dos pés mal calçados, das moscas e dos mosquitos e quanto mais subíamos para o Norte mais eu tinha saudades da minha caminha...Artur andava eufórico, cada vez mais, e cada vez menos me escutava as queixas.Como viera bem fornecido de dinheiro prometia-me que logo iríamos gozar uma esplêndida hospedaria. E eu acreditava, porque no fundo eu pressentia que aquelas experiências (mais ricas que a rotina diária das praias de Lourenço Marques) constituíam a nossa iniciação à vida adulta. Naquele tempo diríamos: fazia-nos homens!
Por cada aldeia que atravessássemos, sempre paupérrima e idêntica umas às outras, Artur abraçava toda a população, ou abraçaria se o deixassem, pois somente os homens se permitiam, as mulheres recuavam e riam-se a bandeira despregadas com aquela vontade de rir que apenas ali encontrei. Percebiam mal o português, os discursos grandiloquentes do meu amigo moldados no oiro mais puro da fraternidade universal não eram compreendidos. Os velhos acenavam com as cabeças em sinal de concordância e pediam cigarros. Eu admirava o atrevimento de Artur, a sua extraordinária capacidade de fazer-se imediatamente admitido pelos mais pobres entre os pobres, sem que a língua, a cor da pele, a indumentária, a cultura diferente, fosse obstáculo. Não era um líder, nunca o seria, das classes exploradas e dos povos oprimidos (estas expressões passaram a ser usuais, mas sinceras e ardentes, na boca do meu amigo), faltavam-lhe essas qualidades. Era, viria a ser (embora por pouco tempo) mais um profeta, um cavaleiro andante sem elmo e sem igreja.
(Continua)

 

Histórias do Antigamente- 12 (2ª Parte)
 
ARTUR
 
Éramos diferentes, no físico e no temperamento. Ganhou estatura elevada, uma cabeleira abundante, um loiro intenso, uns impressionantes olhos azuis. EU, fisicamente, era o oposto. Ele era extrovertido até ao exagero, sorria permanentemente sem parecer nem ser estúpido, e nunca vi nele sombra de ódios ou sequer hostilidade para com alguém. Eu, era o oposto. Não parecia existirem contradições no seu carácter, pelo menos notórias, e dilemas éticos. Era emocional, impulsivo e apaixonado por pessoas e causas. Eu não, antes pelo contrário. Os exemplos que vou dar-vos demonstram que estávamos na presença de um indivíduo de moralidade perfeita: honesto, franco, leal. Possuir tais qualidades sem falhas já era um absoluta singularidade, no entanto o que era ainda mais extraordinária era a sua completa ingenuidade. Em duas palavras substanciais: era completamente apaixonado e completamente ingénuo. Ora, a perfeição não é um destino humano. Artur devagar, devagarinho, enlouqueceu. É da sua gradual e fantástica loucura mansa que irei falar-vos.
Comecemos pela infância para chegarmos logo em seguida à adolescência. Eis um primeiro exemplo, remontando ao tempo da escola primária: como não estudava nada e sabia tudo, o professor da quarta classe começou por desconfiar que ali houvesse copianço e como era burro foi dizer à mãe do garoto que ele só sabia de cor, como se este “só” fizesse algum sentido. Artur perante estes dislates sorria, para a mãe e para o mestre-escola. Sorria para os colegas e deixava-se enganar pelos malandrecos. O “delinquente” da classe dava-lhe empurrões no recreio e ele, que tinha corpo para o enfrentar, permitia a gabarolice do outro. Inveja, esse amaldiçoado sentimento social, provocou-o ele por todo o lado por onde passou e deixou marcas, até chegada a altura em que eram mais os risos e os escárnios! O ser humano vulgar não suporta comparar-se com seres da mesma espécie física mas a quem somente faltam asas para serem anjos. Quando pela primeira vez tomei conhecimento das mitologias, lembrei-me que lhe cabia bem a identidade dos androesfinges, criaturas fantásticas aladas compostas de metade leão e metade homem, muito bondosas, sempre prontas a perdoar e a ajudar, nunca atacam, embora possam emitir um rugido que serve de aviso ao maligno. Artur era assim: alto e atlético bastava “rugir” (mas somente em casos extremos, por exemplo para dissuadir alguém de fazer maldades a outrem) para um fulano qualquer pensar duas vezes. É claro que tal não era suficiente quando se tratava de um grupo e não de um só individuo. E foi assim que certa ocasião ele quis impedir uma daquelas rotineiras cenas que os portugueses que andaram pelas colónias devem ter presenciado com normalidade: três ou quatro energúmenos, lusitanos colonos de gema, provavelmente campónios fugidos da serra onde passaram fome , lançavam literalmente pelos ares de uns para os outros um garotinho africano a quem nesses lances iam apalpando as nádegas infantis. Não se espantem leitores, eram jogos divertidos que alguns animais se entretinham! Pois bem, Artur interveio indignadíssimo e o resultado foi levar uma sova brutal que o pôs de cama sob os cuidados da irmã extremosa. Lembro-me como se fosse agora: foi no começo das férias e ele, como eu, devia ter uns meros quinze anos de idade.
O meu amigo, que viria a suportar as dores com que se fazem os santos, não era propriamente falando “aéreo”, isto é, não possuía esse traço caraterístico dos que andam sempre distraídos porque são muito tímidos e introvertidos, ou, quando idosos, andam sempre a meditar como os sábios budistas. Não, não era esse o caso de modo algum. Artur pisava bem o chão da terra muito embora eu suspeitasse que ele tinha asas e que haveria de chegar o dia em que ele as usaria para sobrevoar a humanidade. Não era, então, desse tipo de distraídos, ou de génios, era simplesmente tão ou mais ingénuo que uma criança. Na realidade foi sempre uma criança e, por isso, tudo lhe caía em cima quando cresceu e se fez adolescente e depois homem. Pediam-lhe emprestados uns trocos os outros miúdos? Ele dava e nunca mais veria o reembolso. Pediam-lhe vultosos empréstimos mais tarde? Ele não recusava nenhum enquanto tivesse dinheiro na carteira. Como as mercearias da mãe estavam em nome dos três, uma infindável fila de caloteiros comprometeu-o como fiador de hipotecas. Chegou um tempo em que a mãe e a irmã levaram as mãos à cabeças, sem saberem como dizer não a um ser admirável que amavam profundamente,
Era assim o Artur! Todo o mundo o utilizava como um meio útil para fins egoístas. E ele, que não tinha nada de estúpido mas que o parecia, tolerava este mundo e nunca aprendia. Eu era o oposto: farejava cautelosamente o caminho, desconfiado, e sem dinheiro “para mandar cantar um cego”. Avisei-o sempre que me apercebia a tempo dessas extorsões, porém como não o acompanhava diariamente não chegava a tempo. De resto, Artur eclipsava-se regularmente. Não só adorava subir ao Alto Maé (uma zona urbana de Lourenço Marques que a burguesia evitava) para a folia com a rapaziada do sítio (quase todos “mulatos”), como finalmente se enamorou por uma rapariga, a moça de olhos verdes que eu já referi. Eu não sei se ela realmente existiu, pois nunca a vi com estes olhos.
Artur foi um caso típico de tragicomédia. Não eram apenas ocorrências que faziam sorrir com gosto qualquer alma sã, mas até alguns incidentes que o fizeram passar “as passas do Algarve” nos podiam provocar um sorriso largo e envergonhado. Ou compaixão. Por exemplo: certo dia uma brigada de pides foi agarrá-lo em casa, tinha ele aí os seus dezasseis anos. E porquê, se ele não entendia uma palavra de política, ou, se se indignava com a pobreza extrema e as malfeitorias, não enveredou por qualquer forma de oposição à ditadura de Salazar? Então porque o levaram para o edifício mais tenebroso e odiado de Lourenço Marques (donde se dizia que se entrava de pé e saía-se deitado)? Simplesmente por engano! Confundiram-no com um perigoso agitador, porventura um militante branco da FRELIMO! Na realidade, Artur cometia os atos mais disparatados que era possível imaginar para aqueles tempos: frequentava encontros políticos clandestinos só porque queria conviver com jovens “maduros” como ele dizia; aceitava panfletos políticos aos molhos só porque os seus amigos lho pediam e ia deixá-los em cima das mesas dos cafés fosse de dia ou de noite! Eu desconfio que ele nem chegava a lê-los. Bastava confiar em alguém ( e com que facilidade ele confiava!) e logo cumpria um pedido. Bem, voltando ao episódio da detenção pidesca do Artur, deram-lhe uns bofetões de prevenção para que ele abandonasse os “meliantes” do Alto Maé, garantiram-lhe que tinham o acordo da mãe dele que era uma “ilustre senhora dos melhores círculos sociais da capital” e fizeram-no assinar um auto. Ou seja, ficou com cadastro. Artur precisou de bastante tempo para entender o que lhe tinha sucedido. Não imaginava que houvesse um sítio naquela sonolenta cidade em que as pessoas eram interrogadas sobre o que faziam e diziam e até recebiam bofetões. Ora, se antes desta tenebrosa experiência, Artur era um rapaz completamente despolitizado a ponto de, por um lado, frequentar a Mocidade Portuguesa para usufruir dos serviços (desporto, campismo, etc.) que esta organização fascista oferecia aos jovens de Lourenço Marques, e, por outro, conviver com presumíveis simpatizantes dos Movimentos independentistas, a seguir ao traumático conhecimento de que existia uma polícia política terrorista o meu querido amigo foi tomado por uma um género de esperança messiânica, uma utopia: combater o Mal no Mundo!
Artur ambicionava desde garotinho vir a ser um grande herói. Porque, no fundo, ele era um romântico. Devorava, tal como eu, aquelas novelas celebérrimas publicadas numa coleção que se chamava «Livros para Rapazes», não sei se os mais velhos se lembram. Capitão de navios que descobriam ilhas nos mares do Sul, viajantes das estrelas, cavaleiros que pelejavam e morriam por uma donzela de olhos castos.
Artur enganara-se no universo e no tempo.
(Continua)
Nozes Pires

 

HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE- 12
 
ARTUR
 
Capítulo I- Infância
 
Chamava-se Artur porque o pai, na semana anterior ao parto da mulher, lera O Rei Artur, de Antoine de Troilet. Contrariou, assim, a vontade dela, católica fervorosa, que preferia Gabriel, o Anjo Anunciador. Artur servia-lhe na perfeição para moldar o filho conforme os seus ideais românticos e cavalheirescos com que julgava adoçar a sua crença positivista.
Artur foi talhado nessa contradição. Jogava ao berlinde com os outros garotos e, quando o jogo parecia mais animado, interrompia-se subitamente e distraia-se a observar a refração da luz através de uma bolinha de vidro azul ou verde. Não era raro que, nesses momentos de atenção científica, se distraísse novamente com a música dos pintassilgos nos choupos do rio. Distraia-se a todo o instante com os odores e rumores da natureza, acreditando que esta encerrava mistérios que um dia haveria de decifrar.
O pai ensinou-o a ler, ainda antes de poder frequentar a escola. Lia para ele romances de Walter Scott e o rebento franzino que o escutava com os olhos muito abertos para dominar o sono não entendia uma palavra mas imaginava as cenas. Cavaleiros ceifando com enormes espadas hordas horripilantes de fantasmas. Os únicos cavalos que conhecia eram de uma troupe de ciganos que acampava nas margens do rio nos verões assediando banhistas para lhes vender alpergatas espanholas.
Adorava o pai. Afetuoso com os filhos, Marta e Artur, o doutor Vasco de Sepúlveda era um médico respeitado na vila, não levava dinheiro aos pobres porque não tinham. A mulher, seca de carnes e introvertida, governava-lhe a casa com eficiência.
Acabava Artur de fazer sete anos de idade quando a tragédia se abateu sobre uma família feliz: o pai contraiu um cancro e demorou-se apenas seis meses. Nesse período terminal leu O Testamento de João Barois e redigiu o seu próprio: mantinha até à degradação do corpo as suas convicções maçónicas e anti-salazaristas. Foi sepultado no jazigo da família, uma longa fila de gerações Sepúlveda que remontava ao reinado de D. Manuel I. O funeral foi tristíssimo, o médico era muito estimado tanto pelos lavradores ricos como pelos pobres jornaleiros que sempre haviam encontrado nele um coração compadecido que não fazia distinção de classes e credos, exceto por umas tantas personagens que ocupavam os cargos políticos e que lhe vigiavam os seus ideais republicanos. O pároco oficiou a cerimónia, contrariando a última vontade do positivista anticlerical, cumprindo com gozo o pedido da viúva piedosa.
A partir desse dia funesto a mãe de Artur entrou em silêncio, uma quase mudez, uma sombra perpétua de tristeza. Se já havia sido retraída nos afetos, mais ressequida ficou. Artur sentiu-se órfão e assim se sentiria a vida toda. Buscou afeto nos companheiros da escola primária, porém, estes, tratavam-no com desconfiança e hostilidade, mal toleravam como seu igual um garoto que almoçava iguarias que eles surdamente invejavam. Para mais ele era sempre o melhor aluno e, por isso, era poupado às reguadas frequentes que os demais levavam. Artur detestava a escola. Tudo nela era feio, mesquinho e cruel. Para chegar à escola tinha de caminhar ao longo da via de caminho-de-ferro, sob a chuva e o frio (um dia uma das crianças que fazia a mesma caminhada foi tolhida por um comboio, viu-lhe os miolos espalhados pelos carris e nunca mais o esqueceu) e a escola, de estilo “Estado Novo”, era apenas uma prisão com um recreio. Conheceu quatro mestres-escola: o primeiro era um indivíduo carrancudo (de facto padecia de uma cirrose que o levou depressa para o outro mundo) que achava que Artur “decorava demais”, avaliação que arrancara um sorriso desdenhoso ao doutor Sepúlveda; o segundo era uma mulher, nova ainda, que empunhava a “menina dos cinco olhos” com um prazer que se acaso Artur conhecesse a teoria de Freud encontraria nela uma explicação adequada; o terceiro, um senhor desempoeirado e risonho, reconciliou Artur com a escola e profetizou grandes feitos para o menino; o quarto, era um símio com aspeto de homem, maneta (do braço direito restava um coto), atarracado, feio e mau, que obrigava Artur a substitui-lo nas reguadas aos demais garotos, pois que só ele a tudo respondia certo. Uma terrível experiência para uma criança bondosa e inocente que chorava com a humilhação.
Não terminou a quarta classe. Morto o marido, a mãe viu-se incapaz de manter uma casa enorme e dispendiosa, onde o fantasma do marido a assaltava a cada canto; com o pecúlio que o marido deixara a desaparecer rapidamente, decidiu-se por pegar nos filhos e partir para Moçambique, em cuja capital provincial, Lourenço Marques, um irmão, enfermeiro com uma vida abastada, lhe prometeu a solução dos infortúnios. Um escriturário da Câmara tratou-lhe dos papéis, era necessária uma autorização superior para se ingressar no lote de emigrados, ou seja de colonos, transportados gratuitamente para irem “povoar as províncias ultramarinas”. Em Lisboa foram metidos num paquete. Arrancado de chofre de uma vila remota do Portugal “profundo”, a viagem marítima de duas semanas trouxe a Artur alegrias e deslumbramentos. O oceano imenso com os seus peixes “voadores”, as ondas alterosas que lhe provocavam um medo agradável, as dormidas em tarimba no meio de centenas de homens (as mulheres ocupavam outro andar do convés), o ritual da passagem da linha imaginária do Equador (um pequeno carnaval), a paragem durante uma tarde no porto do Funchal observando perplexo garotos da sua idade a mergulharem nas águas para apanharem as moedas que se lhes lançavam do convés.
Assim cresceu. Sempre encostado às palavras, como se estas viessem suprir a ausência do abraço oportuno que lhe faltou.
À pancadaria que distraía os fedelhos preferia uma linguagem limpa e clara, oferecida como uma donzela impoluta de brancas carnagens.
No liceu, quando a professora ensinava os binómios, apurava ele o ouvido para o rumorejar das acácias em flor, o resfolegar dos búfalos esmagando parasitas na casca dos embondeiros; com as equações de 2º grau, deixava-se levitar sobre a asa finíssima de uma nuvem que passava, viajando em oitenta dias sobre o estuário do Rio Amarelo, empoleirado no mastro de um junco de piratas. Com a batalha de Ourique, dava rédea solta ao alazão branco, rompendo a muralha de armaduras e músculos de moiros tisnados e esbeltos, com alaúdes a tiracolo. Desistiu das matemáticas, a bonita professora desistiu dele como aluno mas não como rapaz. Mostrava-se mais interessado e interessante noutras matérias. Redigia contos com cowboys e índios, inspirados versos sobre tambores ecoando na floresta africana como sinais de um Apocalipse que ele pressentia.
Não ficara com recordação alguma de Lisboa, de modo que, quando o paquete assomou a Lourenço Marques ficou espantado com a beleza da cidade, espraiada ao redor de uma baía majestosa. Os primeiros passeios ofereceram-lhe uma paisagem urbana que não mais encontrou outra igual em parte nenhuma: as largas avenidas com acácias em flor, os prédios novos entrecortados por edifícios em estilo colonial, o mercado repleto de odores estranhos e inebriantes…
Repetiu a quarta classe que fora obrigado a interromper. Com facilidade ascendeu ao estatuto de melhor aluno provocando a inveja de um rapazola seu vizinho que lhe quis dar uma surra. No exame final e no exame para o Liceu foi classificado como o melhor estudante da província ultramarina.
Entretanto, a mãe, que, afinal, não encontrara nenhum apoio no irmão que a chamara na mira de lhe sacar dinheiro da herança que ela recebera do marido, empregou-se numa mercearia onde se revelou a boa gestora que ela sempre fora, e ao cabo de algum tempo comprou-a ao proprietário que decidiu reformar-se. Recuperaram, portanto, alguma abundância material nos primeiros anos de 1960. Marta que não era dotada como o irmão ingressara na Escola Comercial e concluído o curso auxiliou a mãe a expandir o negócio das mercearias.
Calhou que vieram residir em um dos apartamentos do “prédio do funcionário”, que se situava na Avenida Pinheiro Chagas, e foi aí, como vizinhos, que conheci Artur. Frequentávamos o mesmo Liceu, de António Enes, para o qual ingressei quando ele ocupava um espaço alugado, julgo eu, a uma Associação. Depois ergueram um edifício novo, bonito e moderno, que ainda hoje é uma das principais escolas do Maputo.
Entre nós forjou-se uma amizade feita de afinidades e dissemelhanças. Se eu alguma vez lhe ensinei o que quer que fosse, aprendi muito mais com ele seguramente.
(continua)

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

 HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE -11

 

SOLO TENGO FLORES MUERTAS para ofrecerte mi amor

 

Os acontecimentos que narro sucederam antes da Revolução dos Cravos. Por conseguinte, antes da chamada “transição democrática” em Espanha. É que a Espanha também entra nesta história.

 Conheci o Daniel (oculto o apelido) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1965, nos inícios da frequência em Filosofia, no meu caso, em História no caso dele. Como eu frequentava assiduamente a UNICEPE - Cooperativa Livreira de estudantes- aí nos víamos com regularidade. Ou, então, no café “Piolho”, mesmo ao pé do edifício onde funcionava a antiga Faculdade. Assim decorreu a nossa camaradagem até 1969 por altura da campanha política da oposição democrática em que ambos fomos participes ativos. Depois deixei de o ver completamente, fosse na Faculdade, fosse no célebre Café. Sempre o vi acompanhado pela Mercedes, uma rapariga espanhola estudante também na mesma Faculdade. O Daniel confidenciou-me então que Mercedes viera de Madrid propositadamente tirar o curso na cidade do Porto, ficando instalada em casa dele, pois os pais deste , o pai mais precisamente, fora alguns anos professor convidado na Universidade de Salamanca e era muito amigo da família da Mercedes. Todos reacionários até à medula, católicos franquistas que faziam peregrinações ao Vale dos Caídos e muito provavelmente com mais devoção quando, muito mais tarde destes acontecimentos, o ditador morreu. Como se depreende, o pai do Daniel tinha sido um fiel devoto do “Botas” e imagino a sua mágoa quando o ditador caiu da cadeira em 1969.

A rebeldia de ambos contra os pais contribuiu para o enamoramento, julgo eu. Ainda assim, Mercedes não teve outro remédio senão vir para o Porto cinzentão por ordem de Dom Diego Andrade de...não sei o quê. O tiranete escolheu para a filha o melhor: a Faculdade de Letras do Porto, o curso de Filosofia, que estava completamente dominado pela Igreja católica , pelos teólogos de Braga e por ideólogos do regime. Enfim. A Mercedes? Bom, como o Daniel comparecia sempre com a jovem namorada, deu para eu verificar que ela era não só bonita, como inteligente. Certa vez deu-me, sem arrogâncias, uma lição sobre a história das atrocidades dos franquistas na guerra civil, os fuzilamentos dos vencidos, lição acompanhada com fotografias daquele famoso livrinho intitulado «Mourrir à Madrid». Quase que estive à beira das lágrimas.

Mercedes era faladora, extrovertida? Foi, pelo menos, nas ocasiões em que nos reunimos os três. Após o tremendo drama que ambos iriam sofrer, eu soube então que Mercedes tinha ocasiões em que emudecia completamente.

Confesso que a madrilena me deixou cativo do seu encanto. Qualquer um que observasse as formas daquela carne ondejante e aromática ficava aflito a disfarçar a onda de desejo. Pele morena que suspeitávamos ser seguramente lisa e macia como a seda cortada em cima por uma boca grande cujos lábios jovens e carnudos não deixavam ninguém indiferente. Todavia, nunca observei no seu comportamento provocação e avidez sexual alguma (os seres humanos de qualquer género emitem inconscientemente sinais que podemos decifrar), não, era como se a ela lhe fosse indiferente o desassossego que provocava, apenas isso. Na minha adolescência, no Liceu Salazar em Lourenço Marques, eu andara bastante entusiasmado com a teoria de Freud - a atividade clínica atraiu-me ao ponto de me sentir frustrado por não poder cursar Psicologia juntamente com a Filosofia-, e, por isso, cheguei a interrogar-me se aquele comportamento -presumível devo dizer- correspondia a uma forma de controlar as relações com os homens. Não de passividade, submissão tradicional e obrigatória nas mulheres, mas de poder. A ideia não era tão rebuscada como parece, porque antigamente o género masculino era, em geral, muito mais machista do que é atualmente. Eu ficava a pensar: qual teria sido o seu passado antes de se instalar no Porto? E porque respirava nas falas um género de anarquismo anticlerical? Teria absorvido o anarco-sindicalismo tão tipicamente espanhol através da literatura que sobrara da terrível guerra civil? Que mal se deveria dar naquela Faculdade dirigida por fascistas notórios! Numa aula conjunta de história e de filosofia - a disciplina de Cultura Portuguesa se bem me recordo- pediu ao professor para falar e falou sem esperar pela autorização. Disse que lhe parecia oportuno que nas aulas de cultura portuguesa se aprofundasse mais a influência de Castela sobre Portugal durante o domínio dos Filipes e porquê o iluminismo entrou tão tarde para logo a seguir desaparecer nas prisões...E mais disse: que fossem dadas condições para trabalhos de investigação que substituíssem os exames de frequência! Expressou-se num português espanholado demasiado rápido e talvez nervoso que terá deixado meia turma sem haver entendido o potencial subversivo daquela intervenção. O professor, que era astuto, percebeu-a bem e prometeu que iria pensar no assunto. Admirei-a. Fez em voz alta a pergunta que eu deveria ter feito e não fiz.

 inteligente rapariga-mulher que apequenava aquelas freiras com touca ou sem ela, aqueles padrecas hipócritas e servis (na sua maioria, porque não devo excluir a possibilidade de existirem exceções naquele lugar, naquele tempo).

Pelos corredores do velho edifício, que eu associava com a arquitetura de uma prisão, bem condizente com o ensino de Filosofia que lá se ministrava, escorriam os dogmas e as mentiras tentando transformar os cérebros em massas gelatinosas. Pareceu-me que o namorado não se sentia desconfortável, pelo contrário, com a chusma de olhares apreciadores, incluindo das mulheres, que ela provocava quando percorria a Praça dos Leões...

 As raparigas independentes como a Mercedes me parecia já não eram tão raras nesses anos de 1968 e 1969, apesar de tudo, como haviam sido anos antes.O terramoto de 1968 na Europa e nos Estados Unidos da América não criou de raiz, mas potenciou, fez agigantar-se uma geração. A minha.

 Era o medo que atrofiava as pessoas. Um medo que se justificava: os alunos de Letras bem sabiam dos seus colegas quando eram presos pela Pide... Enfim, o terramoto de 68 na Europa e nos Estados Unidos da América viria potenciar uma geração. A minha. Muita coisa mudou.

Regressemos à trama. Deixara de ver o Daniel, como disse, e presumi que teria sido chamado para a tropa, para a guerra, sem lhe permitirem terminar o curso, como a Pide fez com muitos mais. Só não me sucedeu o mesmo porque ficara inapto em consequência de um acidente de viação. Também a figura da Mercedes deixou de ser vista. Acabei por esquecer ambos. Melhor dizendo: não esquecemos de todo, ficam arrumados- e resguardados- num determinado “espaço” da memória para uma eventualidade futura; em suma e numa única expressão banal e verdadeira: ficam a fazer parte da nossa vida.

Um belo dia, nos finais de 1972, no mês de Outubro mais precisamente, aparece-me no Café Piolho o Daniel! Sem lhe interessar mais nenhum dos presentes é a mim que vem dar uma estreito e longo abraço. Fico surpreendido. Não entrámos em pormenores porque aquele famoso Café também era frequentado pelos pides, incluindo informadores que se inscreviam como alunos nas faculdades. Eu tinha uma reunião da oposição democrática à noite, pela tarde estava livre. Apanhámos, a pedido dele, o elétrico para a Foz e caminhámos para aquela zona costeira que me deixa tantas lembranças. Pelo caminho ia falando, falando, Sentados num banco, a larga e belíssima foz do rio Douro em frente, longe de ouvidos suspeitos, escutei durante horas a narrativa que aqui vos transmito resumidamente, com autorização do narrador.

« Eu sei que me vais ouvir com paciência e que não és um moralista para fazer julgamentos. A história que vou confessar-te é terrível. De certeza que no teu íntimo irás classificá-la como aquilo que ela é de facto: terrível! Deu cabo da minha vida social e deu cabo da minha saúde. Sofre-se muito em África, na guerra, mas alguns sofrem pouco enquanto outros sofrem muitíssimo. Eu sofri-a bastante, todavia sofri muito mais. E tu já suspeitas porquê e por quem... (bebeu o resto da cerveja e foi ao balcão buscar outro “fino”) Como te deste conta eu estive apaixonadíssimo pela Mercedes. Fui mobilizado para Moçambique, para uma Companhia estacionada na zona do Niassa. Escrevia para a minha namorada todos os dias ou quase, em todas as horas de pausa, embora, é claro, não lhe pudesse enviar cartas diariamente. Se pudesse, era isso que faria. Sei e acredito que com ela se passou a mesma situação. As suas cartas evidenciavam esse tormento que eu também sentia de estarmos separados. Certamente que se padece sempre de modo pessoal, conforme a situação em que nos encontramos. Eu encontrava-me num dos piores teatros de guerra, onde vi portugueses a queimar aldeias e guerrilheiros a estropiarem portugueses com minas nas picadas. Foi muito duro. As noites do primeiro ano foram difíceis por causa daquelas palavras amorosas que ela plantava no meu coração. Julgo que conheceste a Mercedes suficientemente para não a julgares capaz de verter lágrimas para cima do papel das cartas, ainda que ela as pudesse chorar, porque eu também derramei silenciosamente por debaixo do lençol. Todavia, contrariando a aparência, Mercedes era muito mais emotiva do que se mostrava aqui nos nossos convívios culturais e políticos. Logo nas primeiras semanas da sua estadia em casa dos meus pais, eu observei e a minha mãe também comportamentos contrastantes: hoje um estado eufórico, no dia seguinte um estado tristonho. Não! Não estou a afirmar que ali houvesse doença maníaco-depressiva ou outra qualquer, não, nada disso, ou nem tanto, sei lá! Acho que não chegava a ser doença, eram sérios e dolorosos problemas que ela arrastava ou empurrava para dentro do peito. Afinal, todos temos bons e maus momentos, não é? E quantas vezes nem os sabemos explicar...Bem, a verdade é que ela evidenciava nas cartas nesse primeiro ano em que nos escrevemos uma tristeza que ia aumentando, uma tristeza que ela queria disfarçar, conter, mas que se insinuava nesta ou naquela palavra, nas reticências, no modo quase brusco como terminava a carta.

Até à primeira licença de férias ou pausa esses meses passaram-se na rotina dos dias sem novidades de maior. As noites é que foram difíceis de passar! Não pelas ameaças do inimigo, da guerrilha dizendo doutro modo, porque nessa altura ela focou os seus ataques na utilização das minas, anti-carro e anti-pessoal, e não em grandes ofensivas, mas pela saudade da Mercedes, essa saudade que se diz tão portuguesa e que nós, na guerra colonial, na mata, nos quartéis donde pouco saíamos, sentimos bem forte, como a sentiram os marinheiros das Índias e os emigrantes dos anos sessenta. Nunca mais chegava o período de licença! Carta sob carta a minha paixão alimentava-se de desejo e de palavras. Existirá Desejo sem discurso? Não sei. A minha experiência pessoal foi esta que te digo: a memória daquele corpo magnífico, daquela voz exótica, daquelas intimidades que me deixavam com ela num estado de exaltação seguido depois por um estado de prostração feliz. Na guerra recordava esses dias passados de enamoramento e chorava de contentamento por os ter vivido, para logo a seguir, lamentar a solidão das noites no presente.

Chegou por fim a licença e só queria que o avião fosse a jacto para chegar mais depressa a Portugal! Mercedes aguardava-me no aeroporto com o automóvel que o meu pai lhe emprestara. Naquele abraço que não mais acabava, naqueles beijos vibrantes, expandiu-se todo o amor que nos unia até às alturas das mais altas nuvens!

O tempo de licença depressa se passou nos longos passeios que demos, na estadia em dois ou três hotéis ao longo da costa Vicentina. O dia do regresso apresentou-se luminoso e primaveril. Dezenas de pais e namoradas estreitavam nos braços os seus entes queridos. Com lágrimas nos despedimos. Já tinha dado o primeiro passo a dirigir-me para a fila de militares que partiam, quando Mercedes me disse estas palavras na sua língua natal: “Solamente tengo flores...” murmurando tão baixinho as últimas palavras que não pude escutá-las. Mais tarde viria a conhece-las... e regressei ao calor tórrido das noites pegajosas de insónia. Então algo estranho começou a acontecer: as cartas dela foram rareando, rareando... Mas não só rareando: tornaram-se- como dizer?- superficiais, falando de assuntos que nada identificavam o que ela tinha feito nesse dia ou dias em que escrevera essa carta. Como se pouco a pouco fosse desaparecendo, ocultando a vida real, quotidiana, e os sentimentos, através de um véu diáfano e retórico. Cada vez mais raras e cada vez mais superficiais. Até que, deixei de receber correspondência dela. Apenas dos meus pais. Telefonei para casa deles para falar com ela. Atendeu-me no primeiro telefonema o meu pai que sem responder à pergunta que me queimava os lábios, depois do abraço que me endereçou, passou o telefone para a minha mãe chorosa de saudade pelo filho que ela imaginava a sofrer todos os perigos do mundo. Sobre Mercedes ela nada sabia! Imagina a minha estupefação! Que ela embalara os seus pertences e “Disse -palavras da minha mãe - que iria a Madrid passar algum tempo com os pais porque se sentia adoentada, compreendemos que devia sentir-se sozinha sem ti, vimos como ela andava tristonha, metida no quarto, filho, achamos agora que ela de fato sentia muito a tua falta, afinal tu eras a sua companhia numa cidade estrangeira, numa universidade que ela detestava, não é verdade?”. Assim falou a minha mãe. Assenti que sim, devia ser isso, não quis preocupá-los, exprimir o meu desgosto, e quis convencer-me que essas razões eram válidas, porém não explicavam nada das suas cartas esquisitas e, sobretudo, da falta destas em absoluto. Cheguei a pensar que a Pide as intercetasse e fosse por causa disso que as últimas eram tão vagas; que ela andasse envolvida nalguma atividade política no Porto onde começavam a atuar grupos e grupúsculos esquerdistas e anarquistas de todo o tipo, na universidade, mas isso sabes tu melhor que eu. E que em Espanha, na Madrid super vigiada pelas polícias que combatiam a ETA, as suas cartas não pudessem chegar a Moçambique, tão remotamente. Calculei tudo com extrema racionalidade, porém bem longe estive da verdadeira razão!

A segunda parte do período obrigatório da comissão no norte de Moçambique, naquele quartel enterrado num mato hostil, não foi, amigo, a travessia no deserto, foi a travessia no inferno! Foi tal o meu desespero, feito de raiva e ressentimento, que perdi o medo de morrer, aceitava de bom grado todas as missões, ofereci-me para outras mais, era a favor da independência daqueles povos mas disparava a matar quando éramos atacados! Perdera todo o espírito de resignação para suportar aquela porra! No quartel ou na cidade mais próxima embebedava-me continuamente, já alguns oficiais me olhavam com desconfiança, já havia perdido o respeito que conseguira conquistar pelas minhas críticas à guerra e à ditadura junto dos mais lúcidos. É claro que ninguém conhecia as verdadeiras razões do meu comportamento descontrolado. Escrevi, escrevi um diário que depois queimei, porque contava ser morto numa qualquer picada, por uma rajada ou por uma mina e não queria que algum militar o lesse.

Por fim chegou o dia do regresso definitivo. Estacionei em minha casa o mínimo de dias possível: o suficiente para calcular todas as vias de encontrar a Mercedes. Ela não comunicara mais com os meus pais e desaparecera da casa dela, em Madrid, sem deixar nenhum contacto, apenas umas breves linhas num bilhete em que declarava todo o seu amor pela mãe mas não pelo pai e que iria telefonar à mãe um dia destes. Portanto, não tinha uma pista. Naqueles tempos não se localizavam pessoas pelos telefone...Tranquilizei a minha mãe e viajei para Madrid. Aluguei um quarto num hotel da capital. Como calculas o dinheiro não me faltava...Percorria os cafés e esplanadas em busca de um fantasma, ficava horas sentado numa qualquer esplanada a observar os transeuntes e a matutar em todas as escolhas mais realistas que a Mercedes poderia ter tido à sua frente e por qual ter-se-ia decidido: mergulhar na clandestinidade de alguma célula terrorista da ETA não, era demasiado para ela! Viver anonimamente numa aldeola perdida da vasta Espanha? Era uma possibilidade, mas pouco provável, porque Mercedes era uma criatura urbana; além disso, não via qual a justificação para essa vida de eremita. Andei nestas deambulações uma semana. Até que uma hipótese venenosa me envenenou gradualmente a mente e passei a deambular à noite e a dormir de dia. Fiz isto:  visitei todos os bares noturnos, dos mais seletos aos mais promíscuos! Foi uma ideia que me entrou subitamente na cabeça e não queria sair mais dela. Talvez fosse uma espécie de ódio ou rancor, que ia sentindo dia a dia, hora a hora: nesse estado passei a vê-la como uma doente que se afundava na promiscuidade sexual. E foi assim que a descobri!

Pergunta aqui, pergunta ali, em boites e bares de alterne, telefonando para os números de telefone que ofereciam serviços de acompanhantes de luxo nos jornais, dando dinheiro a porteiros e taxistas para encontrar algum que reconhecesse a Mercedes pela fotografia que lhes mostrava, caiu-me um contacto nas mãos! Como pressenti e como já adivinhas, o seu rosto inconfundível pertencia a uma famosa “acompanhante de luxo”, ou seja: a uma prostituta! A partir daí foi fácil encontrar o número reservado de telefone. O dinheiro abre todas as portas e segredos. E afinal, não era por dinheiro que as mulheres faziam aquilo? Não queria ela, portanto, ser contactada porque esse era a finalidade do negócio? Por conseguinte, encontrei-a.

Liguei para esse número e atendeu-me. A sua voz amada e odiada! “Sí!”, “Chamas-te Pilar senhorita?”, “Sí, cabalhero!”, e esta última palavra ficou-lhe embargada: reconheceu numa  fração de segundo a minha voz no idioma português! Implorei que não desligasse, implorei um encontro, que houvesse alguma explicação, alguma razão e que, depois, prometi que não a perseguiria depois, nunca. Mas não quis encontros, disse-o com suavidade, que não, a explicação era escusada e expor-se assim seria uma insuportável tortura. “Não me amas?”, insistia eu, miseravelmente. “Siento un montón de ternura por ti Daniel querido, não te quiero magoar más, Daniel!”.  ”Mas porque me abandonaste? Porque me fazes sofrer tanto? Porque escolheste esta vida que fazes? Porquê? Porquê?”. Antes que eu implorasse mais até perder a vergonha por mim mesmo, proferiu esta frase em castelhano: “Solamente tiengo flores muertas para oferecerte mi amor!”, e desligou a chamada.»

 Nesta afse da narrativa do Daniel respirei fundo. E comentei para o meu desgraçado amigo:” Que brutalidade de sofrimento, o teu e o dela! Sim, o dela também de certeza absoluta! Achaste que estava doente? Prostituir-se? Incrível!”.

Daniel retorquiu com uma suavidade calma de quem sobrevivera com a dignidade possível a uma catástrofe: “ Louca? Não! A princípio pensei em duas possibilidades, talvez condicionado por determinados filmes célebres: seduzir os machos pelo gosto perverso de os dominar, experimentar o desejo com desconhecidos...porém isto colidia com o seu carácter, pareceu-me, se é que eu conhecera o seu verdadeiro carácter. Uma outra possibilidade afigurou-se-me mais verosímil: seria que ali manifestava-se uma forma duríssima de vingança sobre o pai, sobre aquele tipo de família burguesa e fascista, naquela Espanha clerical? Eu sabia desse ódio e desprezo porque ela o confessara a propósito e a despropósito. Eu e muitos de nós, jovens então, frutos dos anos sessenta, não tínhamos também assomos de rebeldias radicais contra os progenitores?”.

Admiti, escutando-o, que era a mais acertada explicação que eu teria sido capaz de elaborar, se fosse capaz. Sim, uma atitude atroz, de um radicalismo extremo certamente, mas compreensível até certo ponto naqueles tempos em que cada um de nós -refiro-me a uma camada juvenil- criava ou copiava modos de provocação da burguesia acomodada às duas ditaduras podres.

“Nada disso!”, cortou o meu amigo, “Ou melhor, era esse, sim, o pano de fundo, a atmosfera, contudo o motivo era pior, bem pior!”. Franzi a testa em sobressalto. “Um motivo mais negro e feio?”, interroguei. “O sacana do pai abusara...”. “Não digas mais nada, Daniel! Tremendo!”. “Aquele cabrão - desabafou o meu amigo- aquele hipócrita fascista que levava a família à missa todos os domingos e rezava pela saúde do ditador!”.

Ficava esclarecido o sofrimento em que viveu aquela jovem mulher. A ausência do namorado, a ansiedade que as cartas chorosas dele provocavam naquela mente fragilizada, a solidão numa cidade estrangeira, tudo isso, tantas razões! Conduziram-na àquela espécie de abismo amoral. Repito: amoral!

“Ainda assim, Daniel, compreendendo todas essas causas, porque é que Mercedes não soube, não pôde esperar pelo teu regresso? Amava-te estou certo. Tu manifestaste nas cartas uma autêntica adoração...”. “Conhecemos, acaso, os labirintos da mente humana? Eu procurei-a depois daquele telefonema, é claro. Não podia desistir e fazia a mim mesmo essa pergunta crucial. Não consegui descobrir a morada. Provavelmente servia-se de diversas residências. Tive que regressar a Portugal e conformar-me à falta de um esclarecimento completo. “

“E já tens essa resposta cabal?”

“Não. Não tenho, nem terei jamais pela boca dela. Provavelmente ela ainda não a descobriu em si. Ou talvez sim: através da psicanálise, não sei! Encontrei-a anos depois do nosso 25 de Abril e da instauração do regime democrático em Espanha. Encontrei-a, vê lá tu, em Salamanca, na Universidade, quando lá fui fazer uma palestra a convite de um departamento que se relacionava com a cultura portuguesa! Mercedes tinha alcançado a beleza da plena maturidade! Meu Deus, que esplendor! Toda a minha velha, amarfanhada, paixão, soltou as amarras que a prendia nos esconsos da alma! Todavia, era tarde demais: Mercedes apresentou-me o marido que era precisamente o chefe do Departamento, o académico que me endereçara o convite!”.

Ofereceu-te outra vez, ´flores muertas`...meu pobre amigo!´, comentei sem saber mais o que dizer.

 Daniel está vivo. E eu também.

 

NOZES PIRES

08/09/2020

  

 

   

 

 

sábado, 8 de agosto de 2020

Conto- Maia

 

Histórias do Antigamente   

 Maya

 

   André foi meu condiscípulo na escola primária e no liceu. Fomos amigos, mas não dos mais chegados. Pelo meu temperamento em criança e adolescente dei-me melhor com alguns companheiros de então de que ainda guardo amizade fraternal, se bem que o tempo e as mudanças que todos vamos sofrendo nos possam haver afastado; porém, na fundo, sei hoje que a amizade preserva as suas raízes. No caso de André não era fácil com ele a partilha da cumplicidade das aventuras brejeiras e das gargalhadas fáceis nesses tempos despreocupados da infância e da adolescência. E porquê? Porque André foi sempre um indivíduo encerrado em si mesmo, só excecionalmente abrindo as portadas das janelas (por isso foi tão estranho o que se passou com ele mais tarde!). Como de facto não tinha humor, não apreciava aventuras em que sentisse perigo potencial, não se confessava nem a mim nem a outrem, e nem eu me sentia à vontade, nem o sentia a ele à vontade. Naquelas idades não perdíamos muito tempo a refletir sobre o carácter de cada um dos nossos amigos. O tempo passava-se depressa com a busca insaciada de novidades e experiências. Se o rapaz era assim, paciência e cada um seguia em perseguição da rapariga fatal e das leituras que transformavam o mundo. O que sei e devo dizer dele é que era indubitavelmente o mais inteligente de todos nós, desde a infância ao fim da adolescência quando por essa altura (teríamos dezoito anos porventura) o deixei de ver. Uma inteligência ingénua é verdade, porque lhe faltava experiências e vontade de as ter. Todavia, inteligência na resolução dos problemas teóricos que se apresentavam nas aulas, fossem de matemática ou de qualquer outra disciplina escolar mais contrastante. Intuição pura, rapidíssima. Sem vaidade e sem arrogâncias. Apresentavam-se problemas de lógica-matemática que eu nem sequer os entendia, quanto mais os resolvia? Pois, para o André eram imagens cristalinas com a solução em cima, numa fração de segundo. No fim do curso liceal namorava uma nossa colega que procurava passar tão desapercebida quanto ele. Chamava-se Maia e assinava Maya com ípsilon, o que lhe fornecia, convenhamos, um certo mistério...

Bom, como dizia eu, deixei de o ver. Uns meses antes desta pandemia, no dia 15 de Outubro, numa certa cidade que eu visito regularmente, encontrei-o numa livraria. Foi ele que me reconheceu e se me dirigiu com um largo sorriso. Observei-o. Vi um homem relativamente alto, barba abundante grisalha, uns olhos brilhantes logo acima da máscara protetora. Saímos para tomar um café. Não que eu sentisse especial entusiasmo. O meu condiscípulo não pertencera, como disse, às amizades que se guardam com carinho viril para toda a vida. Após uma breve troca de informações sobre os nossos estados atuais, André passou de imediato sem tempos mortos à narrativa que aqui partilho convosco. Narrativa espantosa, pelo menos assim a senti.

«Tu, eu e a Maia, terminámos o curso liceal no mesmo ano, se bem te lembras, e seguimos para a Universidade, tu, no Porto, a Maia e eu em Lisboa. Antes de me exilar (já te conto!) continuamos a namorar, se é que ainda se usa esta expressão, mas não vivemos juntos. Eu era o descendente mais novo de uma família burguesa, não sei se te deste conta quando éramos condiscípulos, burguesa no sentido do termo, porque de facto éramos uma família com amplas posses e poder social na vila. Enfim, eu realmente podia pagar um apartamento em Lisboa com a Maia. Não nos pareceu possível nem necessário. Ela tinha uma mãe muito antiquada, de costumes rígidos e protetora, não gostava de autonomias para as filhas. A Maia não quis provocar mágoas na mãe. Ela própria comportava-se como um produto, digamos assim, da educação, do ambiente lá de casa. Terá sido esse modo de ser dela, modesto e reservado, que me atraiu quando a conheci no Liceu (do início do namoro então no liceu tu e os demais colegas deram-se conta, até porque eu passava todos os intervalos entre as aulas a pisar-lhe os passos e ela os meus!). Na universidade continuamos iguais a nós mesmos: sempre juntos, com escassa sociabilidade, tentando passar discretamente por entre as gotas da chuva, se me entendes. No início do terceiro ano da Faculdade fui chamado para a tropa, para a guerra vale dizer. Já andava a matutar nessa evidência de a qualquer momento ser chamado e já tinha pedido um adiamento. Conversei muito com a Maia sobre o assunto. Eu não queria fazer guerra nenhuma, como provavelmente também te deste conta disso eu não era um tipo corajoso, não era capaz de suportar um sofrimento físico e não era, muito menos, capaz de matar alguém. Entretanto, soube que a PIDE me vigiava, não que eu fosse um grande agitador ou ativista da oposição ao regime, não, não era! Contudo, ajudava na Associação de Estudantes e distribuí em duas ocasiões panfletos políticos dentro da Faculdade e fora dela. Ou seja, eu tinha dois fortes motivos para pensar seriamente na hipótese de fugir, exilar-me. A Maia não concordou nem discordou. Compreendi a relutância dela. Para sair do país, para desertar que é o termo, precisava de encontrar uma forma segura de chegar a França ou à Suíça. O dinheiro e a influência do meu pai conseguiu isso facilmente é claro. Preparar as coisas e chegar a Paris bastou-me uma semana. Servindo-me uma vez mais do círculo de influências da família, que era largo! empreguei-me numa escola particular onde precisavam de um professor de grego e latim, a minha especialidade. Escrevia-me quase diariamente com a Maia. Tentei dia após dia ajudá-la a partir, a juntar-se-me, transmitindo palavras de coragem para ela conseguir lidar com a mãe dela, visto que o dinheiro necessário não lhe faltaria. Comprei por duas vezes o bilhete de avião, nada feito. Escrevia-me, mostrava-se amorosa, porém os meses fizeram-se anos, o tempo, inexorável, foi passando. E nós temos, entretanto, que sobreviver. Entre os meus escassos amigos estava uma colega francesa com quem me fui dando primeiro com amizade (a recordação da Maia mantinha-se forte!), depois com a intimidade que naquele caso foi consequência inevitável. Quero dizer: ninguém adivinhava que viesse um dia 25 de Abril, ou quando viria. Portanto, cada um, onde vivesse, lutasse ou não, adaptava-se e sobrevivia o melhor que pudesse. Maia já era uma pura recordação, já não era mais um projeto. Finalmente para o povo português, para todos nós, o dia libertador chegou, não sei se mais cedo ou se mais tarde do que o esperávamos, depende da idade que cada português tivesse na altura. Não regressei, vim a Portugal assistir, participar digo, nas grande Festa, mas queria depois regressar a Paris, à companhia de Natalie que estava grávida de algumas semanas, poucas. Não éramos marido e mulher, vivíamos juntos uma união tranquila, escola, casa, casa, escola. Eu havia imprimido à nossa relação o ritmo que era o do meu carácter ou temperamento: a rotina, a cadência discreta que me dava segurança. E eis que aconteceu um terramoto e a vida deu uma volta de 360 graus: procurei a Maia e encontrei-a! Não a encontrei na primeira morada, na da família dela, porque o pai me comunicou que a senhora tinha falecido. Deu-ma o número de telefone da filha. O senhor ainda nutria por mim o mesmo afeto. Maia não atendeu o primeiro e o segundo telefone. No dia seguinte já pela tarde consegui escutar novamente a sua voz. Não mostrou qualquer surpresa (claro que era natural eu regressar à pátria, tal como estavam a fazer centenas, ou milhares, de portugueses!). A voz a as palavras denotaram simpatia mas não amor. Nós havíamos sido tão discretos nos sentimentos que provavelmente amámos sem paixão. Não estava imediatamente livre, combinou-se um jantar para outro dia. Suspeitei que ela tivesse o seu companheiro. Quando a vi com olhos de ver, nesse encontro, pasmei: Maia era outra pessoa! Era ela e não era! A estatura mais alta por via dos sapatos de salto alto, uma roupa justa, mais cheia de carnes, porém elegante, o cabelo diferente e para melhor, em suma: no aspeto a antiga namorada mal saída da adolescência transformara-se numa mulher bela e sensual. Não digo provocadora, atenção! Nada disso. Estava sedutora, mas não evidenciou sinais de sedução. Tinha um namorado, seguramente! No encontro seguinte, encontro que me esforcei para conseguir, foi numa praia. Eu explico: a praia era isolada embora fosse verão; o grupo era numeroso, os jovens iam chegando pelo crepúsculo; sim, eram todos jovens, como eu e a Maia o éramos ainda apesar de tudo, não, não havia crianças, adolescentes sim, estudantes dos liceus, da universidade...Fez-se uma grande fogueira, partilhou-se comida e, sobretudo, muita bebida. Bebida e não só bebida, entendes-me? Havia exemplares de um jornal pelo chão. A capa exibia títulos e expressões que se identificavam imediatamente. Aquela juventude que, daquele modo, confraternizava aparentemente sem preconceitos, estavam todos irmanados por um determinado credo político que eu não apreciava de modo nenhum, porque o MRPP - tenho de dizer o nome!- tinha, como movimento político, todos os tiques e defeitos dos esquerdismos. Maya continuava a provocar-me o maior dos espantos: sem reserva alguma, risonha e quase febril, uma alegria exuberante entre o espontâneo e o artificial, mas que lhe ficava bem, que convencia, que seduzia, brilhando num círculo de belas raparigas que pareciam adorá-la! Era quase madrugada quando não resisti ao sono. Fui dos primeiros a acordar, provavelmente porque não abusei da bebida (sabes: nunca me caiu bem o álcool! Fumar nunca fumei, tu e os outros condiscípulos é que fumavam, não foi? Já não fumas penso eu.). Mal consegui distinguir a Maia no meio de um magote de raparigas a dormirem pesadamente. Peguei no blusão e dirigi-me à estrada por onde fui caminhado até à cidade onde apanhei um táxi. Nos dias seguintes descobri a força avassaladora da paixão que se acendera em mim. Não me trazia qualquer felicidade. Trazia-me dor. Aquela nova Maia devorava-me o coração, os pensamentos. Tudo deixara de fazer sentido para mim. A mente ficou completamente direcionada para uma finalidade absolutamente urgente: possuí-la! E quanto mais ela evitava as minhas aproximações, mais a desejava. Passei a viver um tormento. Amar não era o paraíso, mas o inferno! Porque não conseguia despertar nela o amor que ela me dedicou em anos passados? Aquela dependência dela de que eu tirava o melhor proveito, sem a a dominar ou manipular percebes? O seu rir discreto que tanto me agradava...Porém não eram essa a Maia que me fascinou ! Era esta que eu agora te descrevo! Era esta mulher independente, preguiçosa, fútil, fanatizada por um credo político hostil e palavroso que haveria de prejudicar gravemente a revolução portuguesa! E eu? Em que me transformei eu? Cauteloso, mais: posso dizer até mesmo medroso, introspetivo, e de repente, num curto espaço de tempo, atravessado por todas as setas que Cupido tem na aljava e digo isto sem ironia, porque nunca esteve tão correta esta mitologia grega e latina! Frechado é o termo, mas não por uma força divina ou demoníaca, sim por um desejo que eu não conhecia em mim! Dormia mal, comia mal, e não pensava noutra coisa. Tornara-me ousado, decidido. Ou cego? Perseguia os seus passos como um rafeiro, cada vez mais incomodativo dei-me conta. Dei-me conta mas não conseguia evitar! Estava imerso em plena loucura. Não me olhava ao espelho para não me ver no estado miserável em que me deixei cair. Para não ver as olheiras negras, os olhos sem brilho, uma boca trémula. É certo que cuidava do meu aspeto, porque tentei sempre, até ao último instante em que soube a verdade, cativá-la novamente, reacender uma chama naquelas cinzas que eu não queria ver que eram cinzas. Como é possível sofrer-se tanto e gratuitamente? Sofrer-se sem necessidade alguma? Horas e dias que parecem anos! Por fim, uma casualidade que me esforcei para que acontecesse, aquele acontecimento fatal que eu queria e não queria que chegasse, aquele instante que dura uma eternidade de chumbo em que temos de escutar a verdade, essa casualidade necessária, esse instante aconteceu. «André, não te deste conta ainda que não te retribuo? Que o passado é já tão passado para mim que eu não lembro sequer?». Todo eu devia ser palidez, doença, súbita vontade de desaparecer nos confins do universo. «Porquê? Não passou assim tanto tempo!». «Porquê André? Porque, admiro que não tenhas notado isso nestas duas semanas, porque tenho namoradas, percebes o que eu digo? Não tenho namorados, tenho namoradas! A menina Maia evaporou-se! Tudo que é sólido se evapora no ar, dizia o filósofo barbudo de que todos falamos agora!».... O teto daquele quarto cheio de almofadas e flores caiu-me em cima da cabeça, pelo menos foi isso que eu senti. Fiquei pequenino e eclipsei-me em forme de átomo...Fugi. E fui fugindo dela e de mim durante anos, mais dolorosos que um calvário, para mim naturalmente, cada um é que sabe o que sofre, não são os outros que sofrem as nossas dores, eu sei que talvez exagere agora, a palavra “calvário” só se aplica a quem morre na cruz, contudo era assim que eu me sentia, que eu me senti durante um ano inteiro ou mais, uma passagem pelo Purgatório! Regressei a Paris apenas quando me senti mais forte. É claro que me sujeitaram a uma “cura do sono”, numa clínica, e mais uma vez o meu pai entrou com as despesas...Vim definitivamente residir para o nosso país há pouco tempo, quando me reformei e quando já sou avô. Readquiri tranquilidade e segurança. Não voltei a ser nem o louco, nem o rapaz medroso do liceu...Esta foi a minha história, amigo. Há muitos anos, há mais de quarenta anos, que não a confessava a ninguém: Posso acrescentar: nunca a contei com a lucidez que a libertação nos permite...».

   O André (o nome não é este evidentemente) é atualmente um grande amigo meu. Um cidadão que alcançou na profissão docente, nas universidades francesas, um notável estatuto. Fiz-lhe a pergunta necessária: e a Maya, com ípsilon, que é dela? «Soube há uns dez anos que era professora do ensino secundário no Algarve...Um dia destes vou procurá-la aqui no Face...tenho a certeza que envelheceu bem...».

 

NOZES PIRES

26/07/2020