domingo, 24 de dezembro de 2023

AFORISMOS

 A paixão amorosa obedece a um discurso retórico comum, senão até universal; é repetitivo e emerge do desejo sexual e de posse. O que surpreende é a sua sinceridade, apesar do padrão linguístico e comunicacional comum.

Acredito na compaixão como um sentimento comum e natural. Sentimos compaixão porque não nos queremos encontrar em idêntica situação. Sentimos uma compaixão ainda mais sincera quando não queremos que um familiar ou amigo se encontrem nessa situação.

Tanto o egoísmo como o altruísmo radicam numa determinada natureza humana- bio social- em parte inscrita na espécie, noutra parte socialmente aprendida, recebendo e dando forma  a um padrão singular de cada indivíduo: uns são mais naturalmente altruístas do que outros. Tenho como certo que o desenvolvimento tanto de um como do outro comportamento depende da estimulação social. A gratificação que recebemos com um ou com o outro comportamento é que decide em última instância. Se a comunidade não castiga o egoísmo, antes pelo contrário, seremos impunemente egoístas.
 
A decisão de uma vida em comum prolongada (a priori para toda a vida) manifesta a evolução da Espécie relativamente aos símios e parentes ancestrais. Novo progresso se verificou quando, muitíssimo mais tarde, o interesse económico ou exclusivamente reprodutivo deixaram de predominar. Surpreende que o divórcio seja uma conquista civilizacional tão recente. Uma boa parte desta evolução deve-se à difusão do romantismo: porém, a condição de fundo prende-se com as novas condições económicas. A moralidade, neste sentido, foi secundária. A possibilidade ou legalidade do divórcio acompanha esta evolução nos passos lentos da emancipação da mulher relativamente ao patriarcado.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

A figueira-poema

 

A figueira

 

Senta-te aqui, eu conto, à minha beira:

A vila fica no alto do monte.

Uma estrada que escorre em ladeira

Levava ao vale, a uma fonte.

A cobri-la uma velha vide oferecia,

No verão,  cachos de uva gorda e mel

Que para as abelhas era ambrosia

E estas para o abelharuco um carrocel.

Pois, digo eu, ao pé do poço

Vivia há muito uma figueira, um mosteiro

Paracia-me ela a mim, menino e moço,

Um labritinto de grutas, mágico veleiro.

Por baixo me deitava, regalado e sonhador

Nas tardes ardentes da foz do Côa,

O paraíso era ali, e apenas naqueles instantes de amor,

Como o melro que encanta , sedutor, e depois voa.

 

Na igreja da vila a catequista abançoava a perfeição

Do mundo, que só um ser no céu poderia haver criado.

E nós, anjinhos, escutavamos com atenção

Pedindo que o inferno não nos nos houvesse calhado.

Ó Lucrécio, “Da natureza das Coisas”, li-te demasiado tarde!

Tantos horrores e sonhos maus pode-se-iam ter evitado!

 

A verdade estava ali, naquela figueira à mesma vez

Modesta e indiferente, como a maré que vai e vem,

Tal como a água e o mel que o sol fez,

Tal como o teu choro quando saíste do ventre da tua mãe!

 

----Nozes Pires-----17/07/2023

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Poema- Grito vão

 

Grito vão
 
Deixem-me cobrir teu corpo, criança,
Com uma bandeira
Sem pátria
Sem fronteiras
Línguas
Costumes
Religiões
Antes que o teu cadáver arrefeça.
Antes que o homem esqueça.
Deixem-me chamar os anjos em parte incerta
Os santos que a dor desperta
E semear o teu sangue inocente
Criança
Na hipocrisia da nossa moral
Nas areias secas dos nossos valores.
Deixem-me cobrir teu corpo com todas as cores.
Abro as mãos à chuva e ao vento
E grito a minha impotência. Nada posso. Nada sou.
Sou apenas aquele que na tua morte, criança.
Se interrogou.
.....Nozes Pires....15/10/2023

Poema- O eclipse da razão

 

O eclipse da razão

 

Tu que sabes tudo, que julgas saber tudo,

Saberás porque a lua se escondeu cheia de vergonha

E o sol de setembro se apagou de repente?

Eu nunca sei o que é a verdade sobre o mundo,

E menos percebo quem sempre mente.

 

Mas tu mentes-me quando dizes que o aroma das rosas

É mais forte que o aroma dos cravos,

Ou quando afirmas perentória

Que as tardes de primavera

São mais bonitas que os crepúculos de setembro.

Paz no mundo? Quem me dera!

 

Que sabes tu sobre os olhos deslumbradas de uma criança

Quando descobre no chão uma boneca abandonada?

Eu também não vi, mas sei de ciência certa

Que pertencera a outra menina que jaz esventrada.

Sim, é como te digo. Sabes tudo e não sabes nada.

 

Viste por acaso a Morte a chamar-te da janela

Na casa de cartão que já se foi pelos ares?

Sempre usaste palas nos olhos

Para que de uma causa não viesse um efeito.

Imagina que a tua mãe, filha, irmã,

Caía aos teus pés com uma bala no peito!

Então a Morte abraça-te num lento estertor,

abririas a boca num grito tão fundo e tão mudo

Que até os anjos se peguntariam  “porquê, meu Deus, tanta dor?”

 

Talvez eu tenha uma opinião sobre isso,

Mesmo que não seja tão certa como a tua.

Talvez não seja precisa muita ciência, nem feitiço.

Talvez a verdade ande por aqui, obscena e nua!

-------------NOZES PIRES-------22/10/2023

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Crepúsculo-poema

 

Crepúsculo

 

Não me fales da morte,

Pé ante pé ela há vir

Não me fales da má sorte

Como um raio que feriu o mar!

Sou como um rumor apenas

Somos um poço e do fundo

Alguém nos chama.

Virás, ela virá?

Não lhe abras a porta

Não lhe abras sequer a janela

É só uma aragem brusca

De uma avezinha que tombou do ninho.

Fala-me dos amores (não do Amor!)

Fala-me de uma vida boa (não da Felicidade!)

Fala-me do meio dia

Quando tem mais luz a verdade!

Fala-me de ti, dela, e mais das outras,

Das aparições e das partidas

Do gozo e dos gritos

Sobre as areias das praias

Sobre a caruma dos pinhais

Sobre os esconsos dos umbrais!

 

Mas não me fales Dela

Que falar é já aparecer!

 

Fala-me de beijos antigos

E de sorrisos com lágrimas

Porque tudo que eu vivi eu sei

Das traições e dos inimigos

Porque mais fica o que amei.

 

Na verdade não fica nada.

À hora certa baterão à porta

E quando pareço dormir

Despeço-me à chegada!

 

.....Nozes Pires.....25/05/2023