segunda-feira, 25 de maio de 2020


HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE- 3

Um amor de perdição

Naquele tempo, quando eu era pequenino, a estrada nacional que passava por Viana do Castelo, Darque, Esposende, Fão, Póvoa do Varzim, Vila do Conde, a nº13, sendo obviamente a única, tinha um tráfego brutal de norte a sul. Recordo nitidamente as filas quilométricas de ciclistas que se dirigiam apressadamente para as fábricas e oficinas antes das oito da manhã, que eu via quando me deslocava para a escola primária. A escola da Areosa na primeira classe, a escola de Darque, referindo não o nome delas e a área que cobriam mas as localidades onde residimos. O drama que irei narrar passou-se em parte nessa famosa estradanº13; porém, antes de lá chegarmos, quero fazer referência a duas ou três coisas. Tenha-se, pois, alguma paciência em rondarmos pelos lugares da memória onde a trama se adensará seu tempo.
 Em primeiro lugar, insisto na repetição da imagem com que iniciei esta história: o filme de centenas ou mesmo milhares (assim me pareceram para a perceção de um garotinho dos cinco aos oito anos de idade) de operários e operárias pedalando a caminho dos empregos, com um caldo de pão e couves no estômago. É certo: valia-lhes as couves e as batatas extraídas das courelas onde as suas modestíssimas habitações assentavam naquelas terras do Minho, ricas de água e milho e abóboras, mas muito mal divididas, se é que me entendeis.
Em segundo lugar, tenho que dizer-vos que a escola da minha primeira classe, na Areosa, nem lhe chamo escolinha, pelo profundo desprezo que lhe guardo às suas quatro paredes rústicas e geladas no inverno, à mistura na mesma sala das quatro classes, à quase piedade sem afeto que reservei ao pobre mestre-escola que nunca vi sorrir ou dizer fosse o que fosse de amável, sem desculpa alguma porque nos portávamos perfeitamente bem (naquele tempo salazarento ai daquele que “atirasse para fora do penico”!), às longas e penosas viagens a pé que nos obrigava, quer fizesse sol tórrido ou chuva bruta, nas primeiras horas da manhã, por um caminho de lama e pedras. E a escola da segunda classe, que ficava imensamente longe de Darque onde residíamos, à qual tínhamos de alcançar também a pé mas ao longo da linha de caminho-de-ferro, sobre o qual colocávamos rodelas de latão a fingir tostões, que as máquinas passavam a ferro, aqui a expressão tem cabimento, luzindo ao sol como se para nós parecessem de oiro, e era nessa viagens de ida e volta que fazíamos caretas aos maquinistas, tontos que eramos tão petizes tão inocentes! e um dia chegou em que o mais tolinho de nós, verdadeiramente um miúdo com um atraso mental, nessas piruetas deixou-se apanhar pela máquina, provocando no maquinista um ataque de nervos tão convulso que em toda a minha vida não assisti a muitos assim, ou, quiçá, foi assim que vi aos sete anos de idade. Vomitei fel perante o quadro horripilante de uma criança, que não frequentava a escola pela sua debilidade constitucional mas que nos acompanhava sempre gaiata nas viagens, um corpinho miudinho, que fora mal nutrido em vida, ali, nos carris, nos madeiros e nas pedras, em pedaços separado.
E lembro a escola onde me deparei pela primeira vez com a maldade em forma de mulher e professora, a maldade pura e gratuita (só ela saberia porque motivos era sádica, ou talvez não pudesse saber do que lhe tramava o seu inconsciente reprimido e recalcado), ó! Quantas palmatoadas a safada distribuía naquelas aulas onde com pouquíssimas exceções os garotos vinham descalços ou, no máximo no inverno, calçando socas de pau, as cabeças enxameadas de piolhos, as barrigas a roncar com a fome e era, assim, sobre tão infelizes criaturinhas que um miserável ser humano, exercendo uma função tão nobre, desancava sem piedade, a coberto do famigerado dito salazarista que rezava mais ou menos assim: Um safanão a tempo previne males maiores!, e era o que os pides nos iriam fazer mais tarde, a alguns de nós…
Vamos, finalmente, à narrativa principal.
 Estávamos, então, a residir em Darque, numa rua perpendicular à estrada nacional nº13. Como esta era muito perigosa a minha mãe nunca me mandava buscar à mercearia qualquer coisa que houvesse necessidade urgente. Todavia, uma ocasião chegou em que me pediu para ir buscar pão de milho, ou broa, que o meu irmão mais velho apreciava muito. Não há regra sem exceção. Eu fui, sem medo nenhum, pois mal sabia a minha mãe que eu percorria frequentemente esse trajeto, a travessia da assustadora estrada, para ir brincar com uma garotinha que habitava do outro lado, o “lado dos ricos”, como lhe chamávamos. Foi então que vi um grupo de homens (quatro, cinco?) a ocupar meia estrada desimpedida de tráfego por um polícia que ia fazendo sinais aos poucos veículos que àquela hora do meio-dia eram escassos. Quase todos vestiam fato e gravata, exceto um indivíduo de aparência jovem (a foto que está na memória mostra-me um homem dos seus vinte e poucos anos, bem parecido, com umas algemas nos pulsos, sem o mínimo traço dos criminosos cruéis que fantasiamos naquelas tenras idades e que víamos nas revistas de histórias aos quadradinhos. Estaquei surpreso e, intuitivamente, fiz a legenda para aquela cena para mim absolutamente primeira. Que se passava? Não sei verdadeiramente quando entendi a cena toda, porque, por mim, a única coisa que percebi foi uns indivíduos evidentemente dos tribunais a reconstituir um crime qualquer ocorrido ali. E pressenti que fora um crime de sangue. Ora, não existindo televisão naqueles tempos, onde fora eu construir mentalmente essa perceção? Sem correrias regressei a casa, onde a minha mãe me aguardava mais a broa com impaciência, e contei-lhe que estavam ali na estrada uns homens com um preso a averiguar de algo que devia ser muito grave, e que eu supunha ter sido um atropelamento mortal. A verdadeira história não a soube pela minha mãe, mas pelo meu pai: nesse dia fazia-se na verdade a reconstituição de um homicídio; o homem algemado matara à facada um outro indivíduo por causa de ciúmes; contava-se à boca cheia que ambos se haviam enamorado de uma rapariga, com ambos ela namorou, ao mesmo tempo conforme a versão popular que ali, em Darque, corria, o jogo acabara com cadáver na estrada.
Não terminara, porém a história que, nestes termos, até teria sido relativamente banal: bebedeiras que terminavam com facadas, ciumeiras fatais e invejas fatídicas, lavradores que se matavam uns aos outros à sacholada, por via de um rego de água…Se o que eu vira, aos oito anos (ou perto), fora tão forte que se me gravou até hoje com a máxima clareza, tornou-se transcendente quando ouvi contar semanas depois que a tal rapariga se havia suicidado, e que suicídio! Lançara-se para a frente de uma camioneta na famigerada estrada nº13!
  O meu pai narrou o sucedido à mesa de jantar. Sentiu-se obrigado a fazê-lo comigo presente pois eu é que assistira a parte do acontecimento. O meu pai era tudo menos um romântico, era mais um “realista” queirosiano com uma admiração enorme pelo Camilo Castelo Branco, do qual, porém, se recusava a ler o seu “Amor de Perdição”, que ele achava não ser mais que uma esperteza camiliana para fazer render o auditório feminino…O meu pai, então, traçou o seguinte quadro em traços breves que disfarçavam muito mal a estranha comoção que se denunciava nas pausas longas e que logo me atingiu os nervos suprassensíveis: a rapariga não era, na verdade, nenhuma estouvada, amava um dos rapazes mas não queria romper a amizade com o outro, eram novos, todos amigos; tinha, portanto, que decidir-se (naqueles tempos o casamento era o destino dos namoros), porém adiava esperando que a estadia de ambos na tropa lhes fizesse bem; jamais imaginou que um amigo de peito assassinasse o outro! Precisamente o homem que ela escolhera para consorte. Por isso, matou-se. Na sinistra Estrada nº13.
Volto a dizer: passou-se esta tragédia quando tinha pouco mais ou menos oito anos. Acompanhei o seu início e o seu desfecho com total fascínio, uma mistura de piedade por todos os intervenientes, de espanto temeroso pelo que descobria nos adultos, e de incapacidade total de entender porque é que aquela rapariga tirara a vida a si mesma.
Este ato suicida por amor, este «Amor de Perdição» contra todo o bom-senso realista, lançou-me para os braços de Goethe e dos demais românticos, completamente convicto que o Amor ou é definitivo ou não é. Felizmente lá estava na estante o nosso Eça para me tosquiar de vez em quando as asas do lirismo…
NOZES PIRES
22/05/2020

quarta-feira, 20 de maio de 2020


FÁBULAS- Os macacos

Num rincão da floresta vivia uma tribo de macacos. O chefe distinguia-se pela treta, apenas. Chegara ao topo pela aldrabice. Instalado no poder, assaltara os melhores territórios apoiado por um grupo de acólitos que disputavam entre si os galhos mais seguros e frutuosos. Estas governanças e estas tácticas não eram inusitadas nas tribos daquela subespécie, exceto entre os bonobos que habitavam a margem oposta do vastíssimo rio Congo e que são muito unidos e pacíficos. A força aliada à astúcia constituíam os imperativos categóricos da espécie de moralidade que na outra banda sempre reinara. Não eram por via de regra os mais inteligentes, sábios e justos que ascendiam ao governo dos animais e das coisas, mas os mais manhosos. Daí que houvesse na tribo alguns, poucos, macacos particularmente pessimistas relativamente a este estado permanente. Não surpreende que houvesse somente poucos, pois a tribo era mesmo muito pequena. Essa e as outras idênticas. O que surpreende é que existissem tantos otimistas entre os que carregavam os caudilhos aos ombros.
Os otimistas compunham aquela larga fração que arranja sempre uma teoria para justificar o presente comparando-o com o passado. Construíam um passado que perdia facilmente na comparação com o presente. Normalmente, ou por força da definição corriqueira, otimista é mais aquela criatura que espera sempre o melhor. Se foi cair no limbo, espera transitar depressa para o céu; se está já no céu, é otimista evidentemente.
Não se reduziam, não se pense, àqueles cujo modo de vida dependia de ser acólito dos chefes. Havia entre os otimistas quem, pelo contrário, dispusesse de independência e até elevada cultura erudita. Eram esses, sobretudo esses, que pregavam a esperança aos desesperados, o que nos parece sempre uma coisa boa de se fazer. Por isso não sei porquê a fração dos pessimistas vinha questionar o que nem ao diabo lembrava questionar. Por exemplo, o que é Esperança, origens e funções dessa crença, afirmando que só valem alguma coisa as crenças que se podem racionalmente justificar.
Fosse como fosse, com razão ou sem ela, não parecia haver alternativa ao atual estado de coisas (o que, aliás, era o mais usual na história) e os pessimistas gastavam o latim com parcos auditórios. Aos governantes convinham tudo que fosse embrulhado em papel de seda da fé e da esperança e, por isso, apaparicavam os ideólogos, deixando-lhes as sobras das lautas refeições.
Existiam, portanto, os optimistas porque comiam da gamela grande, e os otimistas crentes sinceros ou puros intelectuais que acreditavam numa qualquer «potência» interior ou externa que só precisava de ser despertada por meio de palavras adequadas.
Fora desta ou destas fracções pulavam de ramo em ramo os pessimistas, mais chatos que as melgas. Como as tribos eram muito pequenas, existiam poucochinhos pessimistas em cada uma. Poder-se-ia pensar que eram rancorosos e ressentidos, que passavam o tempo a dizer mal da vida, da existência e da transcendência. Nada disso. Ou melhor: sim e não. Às vezes sim, às vezes não. Cultivavam um género de mudez ou discurso conciso, de certo modo indiferentes aos insultos, e que os abrigava de discursos populares. Os outros encaravam-nos com comiseração, mais frequentemente com desconfiança e havia uma minoria que os hostilizava com violência. Verificava-se porém que, nos momentos de perigo ou de abusos intoleráveis dos machos-alfa, eram normalmente os pessimistas dos primeiros a saltarem para a frente do combate. Era nessas alturas que a sua vontade de mudança, ou de alternativa, encontrava eco, particularmente por força do seu exemplo atuante. Todavia, logo que a borrasca era passada, esqueciam-se imediatamente deles. Os ingénuos (aparentemente) continuavam a suportar tudo e os espertos a construir condomínios privados sobre os ramos mais fortes das árvores mais frutíferas.
Certo dia, que se esperava ser igual aos outros, sucedeu um desastre total: uma peste, uma epidemia, abateu-se inesperadamente sobre as tribos. Muitos otimistas morreram e os pessimistas não tiveram melhor sorte. As tribos debilitadas tornaram-se uma presa fácil para uma horda de trogloditas que vindo dos confins da floresta assaltou o território dos pequenos macacos e subjugou-os violentamente. Apenas escapou um macaco pessimista por preferir a solidão ao jugo. Um macaco noutro tempo otimista viu que a fuga ao jugo era a atitude mais digna e vantajosa e foi-lhe fazer companhia.
- Paciência, quanto pior, melhor, partamos ambos em busca da Terra Prometida, vejo claramente visto que este é o sinal que confirma que Ela é Possível! - Proclamou o macaco otimista construindo como sempre fizera uma crença ideal ou fé tranquilizadora para o desespero e desilusão de ver o seu mundo real soçobrar.
- Mas como consegues ver epifanias onde eu só vejo tiranias? Onde está essa ilha da Bem Aventurança senão na tua imaginação?
- Ouvi falar de um lugar na floresta onde os empregadores cuidam bem dos seus empregados!
- Onde fica, ou ficava, isso?
- Não sei. Dizem.
- A quem ouviste tal coisa?
- A um empregador.
- Ah!
       O macaco otimista encolheu os ombros, um tanto farto do pessimista, sabendo, no entanto, que em algum lado o outro tivera alguma razão. Veio uma brisa ligeira, com ela chegou um perfume de fêmea próxima e nem se despediu, munido de uma doutrina inabalável. Munido sobretudo de um faro infalível.
 O macaco pessimista, esse, trepou à mais alta palmeira donde pode abarcar todo o horizonte movediço da sua secreta utopia.
Nozes Pires
Maio 2020


Histórias do antigamente- 2

A amante do pirata   

   A minha bisavó Francisca, pelo lado materno, era uma mulher fora do tempo. Para além daquele tempo se preferirmos. Muitas poucas mulheres daqueles anos do século XIX se atreveriam a transgredir as normas. Eu sei do que falo, porque passo a narrar a história tal qual me foi contada pelo meu avô, que era alfaiate, pessoa de bem e muito considerado na vila duriense. A minha avó nunca ma contaria, pelo seu feitio austero, mesmo beato se não é já ofender a sua memória.
  Francisca, de ascendência judia, de cristãos-novos é claro, como eram designados os judeus convertidos à força por ordem do decreto do rei D. Manuel (a narrativa familiar destes judeus que se fixaram nas Beiras e no Alto-Douro, escolhendo para si próprios nomes e apelidos de coisas vivas do ambiente que os rodeava, fica para oura ocasião), devia ser, presumo, uma bela mulher, com aquelas caraterísticas que encontramos nas judias imortalizadas pelos fundadores do modernismo e que pelo casamento com artistas e grandes filantropos ou artistas elas mesmas, contribuíram para revolucionar as artes com o cinema e a fotografia. A minha avó, como disse, não servia como testemunha; foi o meu avô que a pintou para os olhos da imaginação de um rapazinho de doze anos, talvez, a quem faltava televisão e smartphones, felizmente naquele caso, pois era nas aventuras da coleção dos livros “Histórias para rapazes” da Editorial Ibis que saciava as ânsias juvenis viajando com Marco Polo pela China imperial, n´A Volta ao Mundo em 80 dias, nas ilustrações fabulosas de Bem-hur, ou d´A Flecha Negra.
  Adiantando razões. Francisca era casada com um rico armador, dono de uma frota de navios de comércio e passageiros que operava em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique. Todos estes acontecimentos decorreram na segunda metade do século dezanove, antes e durante as campanhas militares de dominação dos povos nativos. O comércio com a colónia então quase esquecida de Moçambique era mínimo, intensificando-se na década final do século quando foram chegando os soldados portugueses e comerciantes e missionários que lhes vinham na peugada, como sempre acontecera. O meu bisavô, ele próprio capitão da marinha mercante (gabava-se de continuar no comando dos seus navios, pois que não necessitava, quando se tornou imensamente rico), apreciava conduzir, portanto, de vez em quando, algum dos seus barcos por aquelas costas inóspitas do sul de África, particularmente quando as cargas eram de origem e finalidade duvidosa; má fama ele tinha, como está documentado em pergaminhos guardados na Torre do Tombo; contava-se até que a fortuna chegara-lhe por meio do tráfico de escravos negros para as Guianas francesa e holandesa, negócio por essa altura já condenado. Nessas viagens teimava sempre em levar consigo a sua bela judia, provavelmente porque confiava pouco nela ou ainda menos nos amigos dela.
Ora, foi numa dessas viagens que se verificaram os factos que passo a narrar. Que eles são verídicos posso afiançar através de uma novela escrita por um jornalista que acompanhou em 1899 as campanhas colonialistas que os portugueses gostam de nomear de «gloriosas». Como se sabe, a leste de Moçambique situa-se a grande ilha de Madagáscar, famosa agora por via dos filmes animados, contudo já célebre entre os estudiosos pois que nela, nas suas enseadas e istmos, uma colónia de piratas tentara implantar uma utopia, isto é, um território onde reinaria a concórdia, a igualdade e os gozos terrenos; especula-se até que esses piratas eram descendentes dos antigos templários que ali se refugiaram da matança ordenada pelo papa Clemente V, em 1307, obedecendo ao rei de França, Filipe o Belo, e à ganância pelas riquezas reais ou supostas da Ordem que liderara as Grandes Cruzadas, a quem o rei Afonso Henriques deve a tomada de Lisboa e muitos portugueses genuínos das regiões nortenhas, devem os seus olhos azuis e as lindas moçoilas cabelos cor do trigo maduro, uff!
Tudo isto é sabido, vale lembrá-lo para contextualizar esta história fantástica da bisavó Francisca, mulher ousada que não esteve disposta a suportar jugos conjugais, que teve a sorte, naqueles tempos terríveis, de ter um marido que não olhava a despesas nem a preconceitos para dotar de todos os meios materiais as viagens de exploração científica da esposa no interior das matas angolanas e moçambicanas. Negreiro ou não, contrabandista de fonte segura sim, a ele devemos ter propiciado condições para que Francisca e uma pequena equipa de gente destemida (constava que alguns haviam sido deportados para a colónia por crimes de peculato) descobrissem importantes fósseis na Ilha de Moçambique que viriam a provar a existência de espécies vivas idênticas em Madagáscar, Índia e Moçambique; ou seja: com a mesma origem formaram-se espécies que adquiriram caraterísticas diferentes por força da “lei” da seleção natural, isso depois da ilha se ter separado dos dois continentes consequentemente à fragmentação do supercontinente Gondwana.
Adiante. Francisca carregava de livros o navio do marido, livros de romancistas femininas e feministas, do nosso Eça que ela adorava, e de tudo que se publicasse na Europa sobre ciência. Fixe-se bem este quadro: uma judia belíssima (suponho que os seus olhos negros deviam matar à distância), mais culta que muitos professores catedráticos da época, audaz e aguerrida! O capitão adorava-a.
  Mas perdeu-a. Pelo menos durante um ano e dez dias, não soube dela. Como sucedeu tal drama (drama só para ele, como se verá)?
  Pois foi assim: o capitão tinha negócios em Madagáscar, pouco lícitos como era normal nos seus negócios de contrabando de pedras preciosas, de espécies animais raras, de nativos para os trabalhos forçados. Como escrevi algures, Madagáscar é uma enorme ilha com milhares de ilhas ao longo das suas costas. Ganancioso o nosso capitão, com Francisca na amurada, aventurou-se por estreitos de mar pouco recomendáveis e foi então, num fim de tarde brumoso, que duas embarcações carregadas de homens morenos armados de facas e pistolões abordou o navio de bandeira portuguesa! Saquearam o que quiseram, sem precisarem de usar de violência, aliás mostrando-se cordiais e cavalheirescos (por isso, deduzo que deviam ser descendentes da colónia utópica do século dezoito e muito provavelmente com sangue azul dos lendários cavaleiros da Ordem de Cristo). Quando se preparam para zarpar, despedindo-se gentilmente, com mal disfarçada ironia, dos assustados tripulantes, viu-se sair dos aposentos do capitão para a alta amurada uma mulher que mais parecia uma Madona, diria um italiano! O chefe dos piratas era homem e, além disso, um bonito homem, de pele tisnada e peito nu. Olhou, regressou ao navio com dois saltos de tigre, observou de perto a mulher e carregou-a aos ombros para o escaler. Bem gritou e suplicou o nosso capitão que de nada lhe valeu. A minha bisavó partira e, afastando-se nas brumas, não gritou uma única vez por socorro.
 O capitão moveu montanhas para recuperar a mulher. Pediu ajuda no consulado português e ao governo de Madagáscar para realizarem um ataque aos piratas. Um mês inteiro de esforços em vão, pois que nem os nobres da capital, nem os franceses que entrementes se haviam apossado da ilha, se dispuseram a enfrentar os temíveis piratas que dominavam todos os meandros da costa. O português, profundamente desanimado, culpando-se pelo infortúnio, imaginando os horrores que a sua Francisca estaria sofrendo, que amargura! regressou a Moçambique, mantendo no entanto abertos todos os canais de comunicação com os governantes franceses e os nobres nativos.
 Foi por estes notificado, um ano e dez dias depois, que uma portuguesa, de nome Francisca e apelido Cardoza, fora detida pela polícia de Merina por atentado aos bons costumes. Desmontando a acusação: para os missionários da igreja protestante local e, consequentemente, para as polícias, Francisca encontrava-se em plena praça pública, ao ar livre, em cima de um banco, a agitar as consciências honestas de meia dúzia de senhoras com diatribes contra a violência doméstica e a favor do voto feminino!
    Que trouxe dessa estadia a minha bisavó? Isso na verdade não sei. O meu avô, alfaiate de olho matreiro, só se dispôs a narrar ao neto de meros doze anitos, dois ou três pormenores: que Francisca se dera maravilhosamente bem na colónia utópica dos piratas, chegando mesmo a liderar várias abordagens a navios mercantes, fazendo neles hastear uma bandeira com a cruz de Cristo, igual à dos grandes navegantes portugueses de quinhentos; que Francisca se cansou a certa altura dos enjoos nos vagalhões do Índico que é um mar com quem não se brinca na estação das monções, e fugira, se tal termo se pode aplicar a esta mulher, para a cidade, ansiosa por uns cálices de champanhe fresquinho e um bom quarto num hotel de cinco estrelas. Era assim, tal e qual, a D. Francisca, dos Cardozas por parte do marido, e Nozes de apelido por parte do pai, judeu cristianizado!
NOZES PIRES
19/05/2020