HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE- 3
Um amor de perdição
Naquele tempo, quando eu era
pequenino, a estrada nacional que passava por Viana do Castelo, Darque,
Esposende, Fão, Póvoa do Varzim, Vila do Conde, a nº13, sendo obviamente a
única, tinha um tráfego brutal de norte a sul. Recordo nitidamente as filas
quilométricas de ciclistas que se dirigiam apressadamente para as fábricas e oficinas
antes das oito da manhã, que eu via quando me deslocava para a escola primária.
A escola da Areosa na primeira classe, a escola de Darque, referindo não o nome
delas e a área que cobriam mas as localidades onde residimos. O drama que irei
narrar passou-se em parte nessa famosa estradanº13; porém, antes de lá
chegarmos, quero fazer referência a duas ou três coisas. Tenha-se, pois, alguma
paciência em rondarmos pelos lugares da memória onde a trama se adensará seu
tempo.
Em primeiro lugar, insisto na repetição da
imagem com que iniciei esta história: o filme de centenas ou mesmo milhares
(assim me pareceram para a perceção de um garotinho dos cinco aos oito anos de
idade) de operários e operárias pedalando a caminho dos empregos, com um caldo
de pão e couves no estômago. É certo: valia-lhes as couves e as batatas
extraídas das courelas onde as suas modestíssimas habitações assentavam
naquelas terras do Minho, ricas de água e milho e abóboras, mas muito mal
divididas, se é que me entendeis.
Em segundo lugar, tenho que
dizer-vos que a escola da minha primeira classe, na Areosa, nem lhe chamo
escolinha, pelo profundo desprezo que lhe guardo às suas quatro paredes
rústicas e geladas no inverno, à mistura na mesma sala das quatro classes, à
quase piedade sem afeto que reservei ao pobre mestre-escola que nunca vi sorrir
ou dizer fosse o que fosse de amável, sem desculpa alguma porque nos portávamos
perfeitamente bem (naquele tempo salazarento ai daquele que “atirasse para fora
do penico”!), às longas e penosas viagens a pé que nos obrigava, quer fizesse
sol tórrido ou chuva bruta, nas primeiras horas da manhã, por um caminho de
lama e pedras. E a escola da segunda classe, que ficava imensamente longe de
Darque onde residíamos, à qual tínhamos de alcançar também a pé mas ao longo da
linha de caminho-de-ferro, sobre o qual colocávamos rodelas de latão a fingir
tostões, que as máquinas passavam a ferro, aqui a expressão tem cabimento,
luzindo ao sol como se para nós parecessem de oiro, e era nessa viagens de ida
e volta que fazíamos caretas aos maquinistas, tontos que eramos tão petizes tão
inocentes! e um dia chegou em que o mais tolinho de nós, verdadeiramente um
miúdo com um atraso mental, nessas piruetas deixou-se apanhar pela máquina, provocando
no maquinista um ataque de nervos tão convulso que em toda a minha vida não
assisti a muitos assim, ou, quiçá, foi assim que vi aos sete anos de idade. Vomitei
fel perante o quadro horripilante de uma criança, que não frequentava a escola
pela sua debilidade constitucional mas que nos acompanhava sempre gaiata nas
viagens, um corpinho miudinho, que fora mal nutrido em vida, ali, nos carris,
nos madeiros e nas pedras, em pedaços separado.
E lembro a escola onde me deparei
pela primeira vez com a maldade em forma de mulher e professora, a maldade pura
e gratuita (só ela saberia porque motivos era sádica, ou talvez não pudesse
saber do que lhe tramava o seu inconsciente reprimido e recalcado), ó! Quantas
palmatoadas a safada distribuía naquelas aulas onde com pouquíssimas exceções
os garotos vinham descalços ou, no máximo no inverno, calçando socas de pau, as
cabeças enxameadas de piolhos, as barrigas a roncar com a fome e era, assim,
sobre tão infelizes criaturinhas que um miserável ser humano, exercendo uma
função tão nobre, desancava sem piedade, a coberto do famigerado dito
salazarista que rezava mais ou menos assim: Um safanão a tempo previne males
maiores!, e era o que os pides nos iriam fazer mais tarde, a alguns de nós…
Vamos, finalmente, à narrativa
principal.
Estávamos, então, a residir em Darque, numa
rua perpendicular à estrada nacional nº13. Como esta era muito perigosa a minha
mãe nunca me mandava buscar à mercearia qualquer coisa que houvesse necessidade
urgente. Todavia, uma ocasião chegou em que me pediu para ir buscar pão de
milho, ou broa, que o meu irmão mais velho apreciava muito. Não há regra sem
exceção. Eu fui, sem medo nenhum, pois mal sabia a minha mãe que eu percorria
frequentemente esse trajeto, a travessia da assustadora estrada, para ir
brincar com uma garotinha que habitava do outro lado, o “lado dos ricos”, como
lhe chamávamos. Foi então que vi um grupo de homens (quatro, cinco?) a ocupar
meia estrada desimpedida de tráfego por um polícia que ia fazendo sinais aos
poucos veículos que àquela hora do meio-dia eram escassos. Quase todos vestiam
fato e gravata, exceto um indivíduo de aparência jovem (a foto que está na
memória mostra-me um homem dos seus vinte e poucos anos, bem parecido, com umas
algemas nos pulsos, sem o mínimo traço dos criminosos cruéis que fantasiamos
naquelas tenras idades e que víamos nas revistas de histórias aos quadradinhos.
Estaquei surpreso e, intuitivamente, fiz a legenda para aquela cena para mim
absolutamente primeira. Que se passava? Não sei verdadeiramente quando entendi
a cena toda, porque, por mim, a única coisa que percebi foi uns indivíduos
evidentemente dos tribunais a reconstituir um crime qualquer ocorrido ali. E
pressenti que fora um crime de sangue. Ora, não existindo televisão naqueles
tempos, onde fora eu construir mentalmente essa perceção? Sem correrias
regressei a casa, onde a minha mãe me aguardava mais a broa com impaciência, e
contei-lhe que estavam ali na estrada uns homens com um preso a averiguar de
algo que devia ser muito grave, e que eu supunha ter sido um atropelamento
mortal. A verdadeira história não a soube pela minha mãe, mas pelo meu pai:
nesse dia fazia-se na verdade a reconstituição de um homicídio; o homem
algemado matara à facada um outro indivíduo por causa de ciúmes; contava-se à
boca cheia que ambos se haviam enamorado de uma rapariga, com ambos ela
namorou, ao mesmo tempo conforme a versão popular que ali, em Darque, corria, o
jogo acabara com cadáver na estrada.
Não terminara, porém a história
que, nestes termos, até teria sido relativamente banal: bebedeiras que
terminavam com facadas, ciumeiras fatais e invejas fatídicas, lavradores que se
matavam uns aos outros à sacholada, por via de um rego de água…Se o que eu
vira, aos oito anos (ou perto), fora tão forte que se me gravou até hoje com a
máxima clareza, tornou-se transcendente quando ouvi contar semanas depois que a
tal rapariga se havia suicidado, e que suicídio! Lançara-se para a frente de
uma camioneta na famigerada estrada nº13!
O meu pai narrou o sucedido à mesa de jantar. Sentiu-se obrigado a
fazê-lo comigo presente pois eu é que assistira a parte do acontecimento. O meu
pai era tudo menos um romântico, era mais um “realista” queirosiano com uma
admiração enorme pelo Camilo Castelo Branco, do qual, porém, se recusava a ler
o seu “Amor de Perdição”, que ele achava não ser mais que uma esperteza
camiliana para fazer render o auditório feminino…O meu pai, então, traçou o
seguinte quadro em traços breves que disfarçavam muito mal a estranha comoção
que se denunciava nas pausas longas e que logo me atingiu os nervos
suprassensíveis: a rapariga não era, na verdade, nenhuma estouvada, amava um
dos rapazes mas não queria romper a amizade com o outro, eram novos, todos
amigos; tinha, portanto, que decidir-se (naqueles tempos o casamento era o
destino dos namoros), porém adiava esperando que a estadia de ambos na tropa
lhes fizesse bem; jamais imaginou que um amigo de peito assassinasse o outro! Precisamente
o homem que ela escolhera para consorte. Por isso, matou-se. Na sinistra
Estrada nº13.
Volto a dizer: passou-se esta
tragédia quando tinha pouco mais ou menos oito anos. Acompanhei o seu início e
o seu desfecho com total fascínio, uma mistura de piedade por todos os
intervenientes, de espanto temeroso pelo que descobria nos adultos, e de
incapacidade total de entender porque é que aquela rapariga tirara a vida a si
mesma.
Este ato suicida por amor, este
«Amor de Perdição» contra todo o bom-senso realista, lançou-me para os braços de
Goethe e dos demais românticos, completamente convicto que o Amor ou é
definitivo ou não é. Felizmente lá estava na estante o nosso Eça para me
tosquiar de vez em quando as asas do lirismo…
NOZES PIRES
22/05/2020