Histórias do antigamente-1
Quando em petiz residimos na Areosa, ia
frequentemente às praias de Afife com uma revoada de garotos. Areosa e Afife
são duas freguesias do concelho de Viana do Castelo. Naqueles tempos não
possuíam interesse turístico especial e nem me recordo com certeza certa se o
conhecido hotel em Afife já existia, mas julgo que sim. Não faz mal, tudo isso
são pormenores que não interessam a esta história que vou narrar e qualquer um
pode informar-se facilmente hoje em dia se o nome de Afife vem do romano ou do
árabe. O que sei das minhas vivas recordações, com exceção das que já se
perderam de todo, é que as praias de Afife eram absolutamente irresistíveis
para aqueles bandos de garotinhos em que eu me incluía como, talvez, o mais
atrevido e desastrado. Tal e qual. Atrevido porque uma manhã que poderia acabar
em tragédia e eu já não estar aqui, resolvi entrar pelo oceano adentro em busca
de algum dos cavalos que ali se tinham afogado em agudos relinchos e
desesperados coices caídos de um navio que naufragara; eu adorava cavalos e se
alguma vez sonhei para além das minhas possibilidades (como dizia um tipo
conhecido) foi em ganhar, por via da lotaria do natal, a maquia suficiente para
uma grande quinta com cavalos. Desastrado, dizia eu, porque o naufrágio havia
acontecido vários anos antes de eu haver nascido.
Vamos à história, que é o que aqui interessa. Contava-se que um palacete
com vista para o mar, onde residiam dois irmãos, com os pais evidentemente, com
quem eu me juntava para a brincadeira, sobretudo a menina que sendo da minha
idade levava-me em estatura uns bons dois palmos e a quem eu deliciava-me todo
a pentear-lhe os fartos caracóis mais negros e luzidios que os meus olhitos
infantis jamais haviam coisa que em cor se lhes comparasse, voltando ao
palacete, dizia eu, havia sido mandado construir por um antigo pescador que
regressara rico dos Brasis. E como é que um paupérrimo pescador daqueles anos
de fome e miséria, habitando em cabanas de juncos secos e madeiras que o oceano
trazia à praia (talvez madeiros dos barcos naufragados com cavalos lá dentro),
fora parar ao Brasil?
Vamos por partes. Naqueles tempos
não existiam traineiras por aquelas bandas, vilarejos de pescadores de pé
descalço; pescavam à linha ou à rede ao longo da costa, em pequenas embarcações
que eles mesmos construíam, em família ou entre associados, e que não
conseguiam transportar mais que dois ou três homens. Vendiam logo na praia no
regresso da faina ao pessoal dos restaurantes de Viana, para evitar os sôfregos
intermediários e os impostos na lota e no mercado. Havia, pois, um pescador
nessas condições, que se chamava António e era casado com uma Elvira que em
donzela havia sido muito cortejada pelo seu riso e outros modos alegres, mas
que, anos passados, tornara-se ensimesmada, rude, antipática. Na verdade era a
infelicidade que a roía, a desilusão de um casamento que nem sequer um filho
lhe trouxera. Era o que se contava, é claro, porque ninguém sabia ao certo; naqueles
lugares solidariedade muita em situações de catástrofe, e não pouca maledicência
no dia a dia.
Vou narrar como a mim me narraram, ou a narrativa fantasiada por um
petiz de oito anos de idade? Pormenores sim, eram fruto da minha cabeça quando
eu contava a história à menina alta dos caracóis e que a fazia rir a bandeiras
despregadas sem eu perceber nunca porque a fazia rir tanto, porém como gostava
de a ver e ouvir rir, voltava à narrativa para lhe acrescentar uns pontos do
meu alvedrio.
A história, finalmente, era esta: o António
pescador, farto das catilinárias da mulher façanhuda, certa noite fez-se ao
mar, a pretexto de ir à faina, sozinho, na pequena e frágil embarcação.
Instalou-lhe uma vela precária, e dirigiu-se afoitamente para longe da costa,
para a vastidão desconhecida de um oceano que tinha má fama. Levava consigo
mantimentos que soubera pôr de reserva sem a mulher saber. Depois, foi o
martírio: não se sabe quantos dias padeceu sob a torreira do sol e a bruteza
das tempestades, sempre empurrado pelas ondas do Atlântico que, é sabido, nada
tem que se pareça com o oceano Pacífico. Quando se encontrava às portas da
morte, sem lágrimas já para chorar todo o seu arrependimento, vislumbrou terra
firme e ao seu lado duas embarcações cujos tripulantes falavam português!
Como se sabe o Atlântico é
percorrido por correntes e uma delas já permitia aos antigos navegantes portugueses
e espanhóis arribar ora às Caraíbas, ora ao vasto Brasil. O casso tem,
portanto, uma explicação científica. Salvado o nosso heróis, foi cuidado com
hospitalidade pelos pescadores daquele lugar. Aí viveu e trabalhou como
pescador uns anos até que se fez à fortuna e rumou para a Amazónia em busca do
El Dorado. Não o encontrou evidentemente, mas consta que achou uma preta
brasileira, filha de antigos escravos, dotada de um farto rendimento em gado sertanejo.
E casou, é claro, sem denunciar jamais que já era casado. Todavia, como o
segundo casamento fora sob um ritual sertanejo sem a presença tutelar de um
padre católico, o António quando, muitos anos depois, resolveu regressar a
praias lusas, não vinha casado, digo eu, mantinha-se simplesmente casado. E a
Elvira? Pois já não existia. Naqueles tempos de miséria, a tristonha mulher
tinha-se finado. Assim, o agora velho sertanejo outrora pescador, instalou-se
com a negra ( já viúva de dois maridos, dizia-se) que tão bem o soubera
conquistar (diga-se entre parêntesis, que o António português havia sido em
jovem um belo rapaz a quem não faltava lábia) com boas maneiras e grossos
cabedais (quero dizer, haveres) no vilarejo que o vira nascer sobre uma enxerga
de palha. Era o palacete em cujo jardim relvado eu ia, pressuroso, em busca de
uns caracóis de azeviche. Que será feito da Joaninha?
NOZES PIRES
17/05/2020
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