quarta-feira, 20 de maio de 2020


Histórias do antigamente-1

 Quando em petiz residimos na Areosa, ia frequentemente às praias de Afife com uma revoada de garotos. Areosa e Afife são duas freguesias do concelho de Viana do Castelo. Naqueles tempos não possuíam interesse turístico especial e nem me recordo com certeza certa se o conhecido hotel em Afife já existia, mas julgo que sim. Não faz mal, tudo isso são pormenores que não interessam a esta história que vou narrar e qualquer um pode informar-se facilmente hoje em dia se o nome de Afife vem do romano ou do árabe. O que sei das minhas vivas recordações, com exceção das que já se perderam de todo, é que as praias de Afife eram absolutamente irresistíveis para aqueles bandos de garotinhos em que eu me incluía como, talvez, o mais atrevido e desastrado. Tal e qual. Atrevido porque uma manhã que poderia acabar em tragédia e eu já não estar aqui, resolvi entrar pelo oceano adentro em busca de algum dos cavalos que ali se tinham afogado em agudos relinchos e desesperados coices caídos de um navio que naufragara; eu adorava cavalos e se alguma vez sonhei para além das minhas possibilidades (como dizia um tipo conhecido) foi em ganhar, por via da lotaria do natal, a maquia suficiente para uma grande quinta com cavalos. Desastrado, dizia eu, porque o naufrágio havia acontecido vários anos antes de eu haver nascido.
  Vamos à história, que é o que aqui interessa. Contava-se que um palacete com vista para o mar, onde residiam dois irmãos, com os pais evidentemente, com quem eu me juntava para a brincadeira, sobretudo a menina que sendo da minha idade levava-me em estatura uns bons dois palmos e a quem eu deliciava-me todo a pentear-lhe os fartos caracóis mais negros e luzidios que os meus olhitos infantis jamais haviam coisa que em cor se lhes comparasse, voltando ao palacete, dizia eu, havia sido mandado construir por um antigo pescador que regressara rico dos Brasis. E como é que um paupérrimo pescador daqueles anos de fome e miséria, habitando em cabanas de juncos secos e madeiras que o oceano trazia à praia (talvez madeiros dos barcos naufragados com cavalos lá dentro), fora parar ao Brasil?
Vamos por partes. Naqueles tempos não existiam traineiras por aquelas bandas, vilarejos de pescadores de pé descalço; pescavam à linha ou à rede ao longo da costa, em pequenas embarcações que eles mesmos construíam, em família ou entre associados, e que não conseguiam transportar mais que dois ou três homens. Vendiam logo na praia no regresso da faina ao pessoal dos restaurantes de Viana, para evitar os sôfregos intermediários e os impostos na lota e no mercado. Havia, pois, um pescador nessas condições, que se chamava António e era casado com uma Elvira que em donzela havia sido muito cortejada pelo seu riso e outros modos alegres, mas que, anos passados, tornara-se ensimesmada, rude, antipática. Na verdade era a infelicidade que a roía, a desilusão de um casamento que nem sequer um filho lhe trouxera. Era o que se contava, é claro, porque ninguém sabia ao certo; naqueles lugares solidariedade muita em situações de catástrofe, e não pouca maledicência no dia a dia.
   Vou narrar como a mim me narraram, ou a narrativa fantasiada por um petiz de oito anos de idade? Pormenores sim, eram fruto da minha cabeça quando eu contava a história à menina alta dos caracóis e que a fazia rir a bandeiras despregadas sem eu perceber nunca porque a fazia rir tanto, porém como gostava de a ver e ouvir rir, voltava à narrativa para lhe acrescentar uns pontos do meu alvedrio.
 A história, finalmente, era esta: o António pescador, farto das catilinárias da mulher façanhuda, certa noite fez-se ao mar, a pretexto de ir à faina, sozinho, na pequena e frágil embarcação. Instalou-lhe uma vela precária, e dirigiu-se afoitamente para longe da costa, para a vastidão desconhecida de um oceano que tinha má fama. Levava consigo mantimentos que soubera pôr de reserva sem a mulher saber. Depois, foi o martírio: não se sabe quantos dias padeceu sob a torreira do sol e a bruteza das tempestades, sempre empurrado pelas ondas do Atlântico que, é sabido, nada tem que se pareça com o oceano Pacífico. Quando se encontrava às portas da morte, sem lágrimas já para chorar todo o seu arrependimento, vislumbrou terra firme e ao seu lado duas embarcações cujos tripulantes falavam português!
Como se sabe o Atlântico é percorrido por correntes e uma delas já permitia aos antigos navegantes portugueses e espanhóis arribar ora às Caraíbas, ora ao vasto Brasil. O casso tem, portanto, uma explicação científica. Salvado o nosso heróis, foi cuidado com hospitalidade pelos pescadores daquele lugar. Aí viveu e trabalhou como pescador uns anos até que se fez à fortuna e rumou para a Amazónia em busca do El Dorado. Não o encontrou evidentemente, mas consta que achou uma preta brasileira, filha de antigos escravos, dotada de um farto rendimento em gado sertanejo. E casou, é claro, sem denunciar jamais que já era casado. Todavia, como o segundo casamento fora sob um ritual sertanejo sem a presença tutelar de um padre católico, o António quando, muitos anos depois, resolveu regressar a praias lusas, não vinha casado, digo eu, mantinha-se simplesmente casado. E a Elvira? Pois já não existia. Naqueles tempos de miséria, a tristonha mulher tinha-se finado. Assim, o agora velho sertanejo outrora pescador, instalou-se com a negra ( já viúva de dois maridos, dizia-se) que tão bem o soubera conquistar (diga-se entre parêntesis, que o António português havia sido em jovem um belo rapaz a quem não faltava lábia) com boas maneiras e grossos cabedais (quero dizer, haveres) no vilarejo que o vira nascer sobre uma enxerga de palha. Era o palacete em cujo jardim relvado eu ia, pressuroso, em busca de uns caracóis de azeviche. Que será feito da Joaninha?
NOZES PIRES
17/05/2020

Sem comentários:

Enviar um comentário