quarta-feira, 20 de maio de 2020


Histórias do antigamente- 2

A amante do pirata   

   A minha bisavó Francisca, pelo lado materno, era uma mulher fora do tempo. Para além daquele tempo se preferirmos. Muitas poucas mulheres daqueles anos do século XIX se atreveriam a transgredir as normas. Eu sei do que falo, porque passo a narrar a história tal qual me foi contada pelo meu avô, que era alfaiate, pessoa de bem e muito considerado na vila duriense. A minha avó nunca ma contaria, pelo seu feitio austero, mesmo beato se não é já ofender a sua memória.
  Francisca, de ascendência judia, de cristãos-novos é claro, como eram designados os judeus convertidos à força por ordem do decreto do rei D. Manuel (a narrativa familiar destes judeus que se fixaram nas Beiras e no Alto-Douro, escolhendo para si próprios nomes e apelidos de coisas vivas do ambiente que os rodeava, fica para oura ocasião), devia ser, presumo, uma bela mulher, com aquelas caraterísticas que encontramos nas judias imortalizadas pelos fundadores do modernismo e que pelo casamento com artistas e grandes filantropos ou artistas elas mesmas, contribuíram para revolucionar as artes com o cinema e a fotografia. A minha avó, como disse, não servia como testemunha; foi o meu avô que a pintou para os olhos da imaginação de um rapazinho de doze anos, talvez, a quem faltava televisão e smartphones, felizmente naquele caso, pois era nas aventuras da coleção dos livros “Histórias para rapazes” da Editorial Ibis que saciava as ânsias juvenis viajando com Marco Polo pela China imperial, n´A Volta ao Mundo em 80 dias, nas ilustrações fabulosas de Bem-hur, ou d´A Flecha Negra.
  Adiantando razões. Francisca era casada com um rico armador, dono de uma frota de navios de comércio e passageiros que operava em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique. Todos estes acontecimentos decorreram na segunda metade do século dezanove, antes e durante as campanhas militares de dominação dos povos nativos. O comércio com a colónia então quase esquecida de Moçambique era mínimo, intensificando-se na década final do século quando foram chegando os soldados portugueses e comerciantes e missionários que lhes vinham na peugada, como sempre acontecera. O meu bisavô, ele próprio capitão da marinha mercante (gabava-se de continuar no comando dos seus navios, pois que não necessitava, quando se tornou imensamente rico), apreciava conduzir, portanto, de vez em quando, algum dos seus barcos por aquelas costas inóspitas do sul de África, particularmente quando as cargas eram de origem e finalidade duvidosa; má fama ele tinha, como está documentado em pergaminhos guardados na Torre do Tombo; contava-se até que a fortuna chegara-lhe por meio do tráfico de escravos negros para as Guianas francesa e holandesa, negócio por essa altura já condenado. Nessas viagens teimava sempre em levar consigo a sua bela judia, provavelmente porque confiava pouco nela ou ainda menos nos amigos dela.
Ora, foi numa dessas viagens que se verificaram os factos que passo a narrar. Que eles são verídicos posso afiançar através de uma novela escrita por um jornalista que acompanhou em 1899 as campanhas colonialistas que os portugueses gostam de nomear de «gloriosas». Como se sabe, a leste de Moçambique situa-se a grande ilha de Madagáscar, famosa agora por via dos filmes animados, contudo já célebre entre os estudiosos pois que nela, nas suas enseadas e istmos, uma colónia de piratas tentara implantar uma utopia, isto é, um território onde reinaria a concórdia, a igualdade e os gozos terrenos; especula-se até que esses piratas eram descendentes dos antigos templários que ali se refugiaram da matança ordenada pelo papa Clemente V, em 1307, obedecendo ao rei de França, Filipe o Belo, e à ganância pelas riquezas reais ou supostas da Ordem que liderara as Grandes Cruzadas, a quem o rei Afonso Henriques deve a tomada de Lisboa e muitos portugueses genuínos das regiões nortenhas, devem os seus olhos azuis e as lindas moçoilas cabelos cor do trigo maduro, uff!
Tudo isto é sabido, vale lembrá-lo para contextualizar esta história fantástica da bisavó Francisca, mulher ousada que não esteve disposta a suportar jugos conjugais, que teve a sorte, naqueles tempos terríveis, de ter um marido que não olhava a despesas nem a preconceitos para dotar de todos os meios materiais as viagens de exploração científica da esposa no interior das matas angolanas e moçambicanas. Negreiro ou não, contrabandista de fonte segura sim, a ele devemos ter propiciado condições para que Francisca e uma pequena equipa de gente destemida (constava que alguns haviam sido deportados para a colónia por crimes de peculato) descobrissem importantes fósseis na Ilha de Moçambique que viriam a provar a existência de espécies vivas idênticas em Madagáscar, Índia e Moçambique; ou seja: com a mesma origem formaram-se espécies que adquiriram caraterísticas diferentes por força da “lei” da seleção natural, isso depois da ilha se ter separado dos dois continentes consequentemente à fragmentação do supercontinente Gondwana.
Adiante. Francisca carregava de livros o navio do marido, livros de romancistas femininas e feministas, do nosso Eça que ela adorava, e de tudo que se publicasse na Europa sobre ciência. Fixe-se bem este quadro: uma judia belíssima (suponho que os seus olhos negros deviam matar à distância), mais culta que muitos professores catedráticos da época, audaz e aguerrida! O capitão adorava-a.
  Mas perdeu-a. Pelo menos durante um ano e dez dias, não soube dela. Como sucedeu tal drama (drama só para ele, como se verá)?
  Pois foi assim: o capitão tinha negócios em Madagáscar, pouco lícitos como era normal nos seus negócios de contrabando de pedras preciosas, de espécies animais raras, de nativos para os trabalhos forçados. Como escrevi algures, Madagáscar é uma enorme ilha com milhares de ilhas ao longo das suas costas. Ganancioso o nosso capitão, com Francisca na amurada, aventurou-se por estreitos de mar pouco recomendáveis e foi então, num fim de tarde brumoso, que duas embarcações carregadas de homens morenos armados de facas e pistolões abordou o navio de bandeira portuguesa! Saquearam o que quiseram, sem precisarem de usar de violência, aliás mostrando-se cordiais e cavalheirescos (por isso, deduzo que deviam ser descendentes da colónia utópica do século dezoito e muito provavelmente com sangue azul dos lendários cavaleiros da Ordem de Cristo). Quando se preparam para zarpar, despedindo-se gentilmente, com mal disfarçada ironia, dos assustados tripulantes, viu-se sair dos aposentos do capitão para a alta amurada uma mulher que mais parecia uma Madona, diria um italiano! O chefe dos piratas era homem e, além disso, um bonito homem, de pele tisnada e peito nu. Olhou, regressou ao navio com dois saltos de tigre, observou de perto a mulher e carregou-a aos ombros para o escaler. Bem gritou e suplicou o nosso capitão que de nada lhe valeu. A minha bisavó partira e, afastando-se nas brumas, não gritou uma única vez por socorro.
 O capitão moveu montanhas para recuperar a mulher. Pediu ajuda no consulado português e ao governo de Madagáscar para realizarem um ataque aos piratas. Um mês inteiro de esforços em vão, pois que nem os nobres da capital, nem os franceses que entrementes se haviam apossado da ilha, se dispuseram a enfrentar os temíveis piratas que dominavam todos os meandros da costa. O português, profundamente desanimado, culpando-se pelo infortúnio, imaginando os horrores que a sua Francisca estaria sofrendo, que amargura! regressou a Moçambique, mantendo no entanto abertos todos os canais de comunicação com os governantes franceses e os nobres nativos.
 Foi por estes notificado, um ano e dez dias depois, que uma portuguesa, de nome Francisca e apelido Cardoza, fora detida pela polícia de Merina por atentado aos bons costumes. Desmontando a acusação: para os missionários da igreja protestante local e, consequentemente, para as polícias, Francisca encontrava-se em plena praça pública, ao ar livre, em cima de um banco, a agitar as consciências honestas de meia dúzia de senhoras com diatribes contra a violência doméstica e a favor do voto feminino!
    Que trouxe dessa estadia a minha bisavó? Isso na verdade não sei. O meu avô, alfaiate de olho matreiro, só se dispôs a narrar ao neto de meros doze anitos, dois ou três pormenores: que Francisca se dera maravilhosamente bem na colónia utópica dos piratas, chegando mesmo a liderar várias abordagens a navios mercantes, fazendo neles hastear uma bandeira com a cruz de Cristo, igual à dos grandes navegantes portugueses de quinhentos; que Francisca se cansou a certa altura dos enjoos nos vagalhões do Índico que é um mar com quem não se brinca na estação das monções, e fugira, se tal termo se pode aplicar a esta mulher, para a cidade, ansiosa por uns cálices de champanhe fresquinho e um bom quarto num hotel de cinco estrelas. Era assim, tal e qual, a D. Francisca, dos Cardozas por parte do marido, e Nozes de apelido por parte do pai, judeu cristianizado!
NOZES PIRES
19/05/2020



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