SOLITUDE
Veste-se devagar, o mesmo que ontem. Não a mesma mas o mesmo
tipo. Hoje não chove, ontem choveu. Hoje nem sopra o vento, ontem sim. Hoje
apetece-lhe um pequeno-almoço diferente, isto é, igual ao de anteontem. O de
anteontem já fora igual ao do dia anterior. «Tenho que pensar no que vou
almoçar», pensou. Idêntico ao de ontem, porque sobrou de ontem. Acende o
computador, lê as notícias. Nem boas, nem piores. Ninguém sabe. Um mistério
cobre o mundo. Não é o mundo que é um mistério, são os mistérios que o mundo
tem. Já não é o homem que é mistério, é o que rodeia o homem. O mundo que o
homem faz enche-se de misteriosas aparições. Vêm de repente e vão
vagarosamente. Desafiam os poderes humanos. Riem-se dos poderes humanos, São
causa e consequência dos poderes humanos. Este mundo é o mundo do homem.
Enquanto ingere as papas de aveia o homem pensa. Pensa que
está pensando. Pensa o pensamento. Talvez seja isso que faz dos seres humanos
seres diferentes. Capazes de pensar o seu próprio pensamento. Não apenas o seu,
mas o pensamento.
Amanhã não será outro dia. Será o mesmo dia.
Amanhã as notícias da manhã não vão melhorar nem piorar o
dia.
Lá fora trina o canto das avezinhas, mas não o cântico das
crianças. O mundo é uma bola que rola silenciosa. Emudeceu de medo de repente.
«Apetecia-me atravessar o bairro de ponta a ponta, sentar-me
no banco preferido da praça, descer a avenida e, depois, ficar deitado na
praia, sonhando com o mar…Ficar ali como aqui: silencioso e frágil. Como esta
espuma inventada que vem morrer aos meus pés.»
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