segunda-feira, 6 de maio de 2024

Histórias do Antigamente

 

Histórias do Antigamente- O meu tio-avô

 

No dia 25 de Abril de 1974 um homem matou-se. Não era novo, mas também não era velho. Foi pela manhãzinha, o sol anunciava um lindo dia. O apartamento era minúsculo, reduzido a um quarto com uma cama e um armário, a casa de banho ficava ao fundo do corredor do prédio e era, portanto, comum. Tinha como vizinhos um casal de jovens, talvez acabados de casar, ele não perguntou, uma mulher a quem o marido abandonara mas ele não perguntou, com uma filha adolescente muito barulhenta porque juntava-se com uma trupe de amigos no corredor. Também era vizinho um caixeiro-viajante que se servia do apartamento dele quando passava pela vila nas andanças com que ganhava a vida. Todos eram pobres. O homem que se matou também. Todos festejaram horas depois o derrube pela força do regime fascista. Ele não porque não soube a tempo. Se soubesse tinha-se matado da mesma maneira. Pormo-nos a adivinhar se o faria com um misto de infelicidade tremenda e uma felicidade tão profunda como jamais sentira outra na vida, é pura especulação. Um mês antes sentira-se muito mal, muito doente, o caixeiro-viajante que calhara estar em casa ouviu os seus lamentos, parede com parede, e chamou uma ambulância. Esteve internado três dias. Fizeram-lhe exames, descobriram rapidamente. O médico chefe do serviço disse a uma enfermeira para o levarem ao gabinete, queria dizer-lhe pessoalmente. Cumprimentou-o com uma espécie de estima, nunca saberemos, sou eu que estou a inventar, mas suponho que sim, pediu-lhe para se sentar, em pé ficou a olhar para a janela uns minutos como se estivesse distraído, mas não, e disse-lhe : “O senhor sofre de um cancro muito avançado, já não vale a pena ser operado, mas se preferir podemos tentar!”. Não sei qual foi a reação do homem, não é difícil de adivinhar. Ao fim de algum tempo, sentiu (deve ter sentido!) todas as dores do mundo, interrogou : “Quanto tempo, doutor?”. “Há quanto tempo o tem?”, “Não, senhor doutor, quanto tempo de vida?”. O médico tossiu, a disfarçar, e deu-lhe mais ou menos três meses, mas logo acrescentou : “Talvez um pouco mais...o cancro está muito adiantado.”.

Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 o homem (supõe-se que já não dormia há várias noites e dias) sentou-se na modesta mesa onde comia as suas refeições que ele ia buscar a uma tasca do bairro (quando trabalhava, antes de meter baixa, comia no refeitório do navio e à noite apenas ingeria uma sandes para poupar algum dinheiro do parco ordenado), retirou da gaveta uma folha de papel de uma resma para cartas que ele nunca enviou para o correio e escreveu:

« Chamo-me José António Resende. Deixo o meu bilhete de identidade em cima da mesa para saberem que existi e possuía nome e local de nascimento. Para mais ficam a saber que fui trabalhar logo que fiz a quarta classe. Entrei com aprendiz no Estaleiro da Margueira e, mais tarde arranjei trabalho na Marinha Grande, foi o meu pai que conseguiu por meio das amizades que lá tinha, juntei-me à revolta de 18 de Janeiro de 1934, tinhamos toda a razão, não estou arrependido, passávamos todos muito mal com os maus ordenados, havia mães que quase não tinham que dar que comer aos filhos, alguns homens bebiam muito por causa de andarem desesperados, a GNR batia na gente por dá aquela palha, mas perdemos a luta, faltaram armas contra aquela fusilaria deles, meteram-nos em camiões, ficámos semanas presos, comíamos porrada, e eu e mais trinta e seis mandaram-nos para o Tarrafal. Fiquei lá para morrer, mas mandaram-me vivo para a Metrópole. Queixei-me de um problema nos pulmões, no hospital deram-me uns comprimidos, foram muito simpáticos, comia-se lá bastante bem, deram-me alta e a senhora enfermeira-chefe deu-me uma palmadinha nas costas e disse, lembro-me bem : - Já está rijo que nem um pero!- . O resto da minha vida foi prisão sim, prisão sim, trabalhei em muitos sítios em trabalhos diferentes, mesmo no norte, em Guimarães numa fábrica de curtumes, foi aí que eu decidi que estava farto daquele trabalho que não desejo a ninguém e decidi ir para Viana do Castelo onde um dia aproveitei um conselho de um amigo e meti-me nos navios que transportam o petróleo, meses no mar, limpávamos tudo dos navios, os conveses de madeira e os tanques depois de esvaziados. O médico disse: -Não sabemos como surgiu o cancro nos pulmões e porque teve essa evolução tão rápida!- Mas eu sei : foi a limpar os tanques sem proteção, só podia ser. Não tenho mulher, não conheci as alegrias que as crianças podem dar à gente, também estava sempre a mudar de trabalho, e depois os calaboiços da Pide que ela não me largava os calcanhares, e eu até nem fui muito ativo, só gostava mesmo era de fazer greves, de conseguir convencer o pessoal a fazer greve, acho que tinha jeito, e até gostava daquela força que a luta dá à gente, aqueles abraços que dávamos uns aos outros, os beijinhos que elas nos davam, as colegas claro, mas foi a limpar tanques sujos de petróleo que dei cabo de mim. Os meus parentes não sabem. Adeus! Para aqueles parentes ou amigos a que fiz algum mal, não sei se fiz, que me perdoem.”. E assinou : José António Resende, 25 de Abril de 1974.

Foi meu tio-avô. Irmão do capitão do último petroleiro onde trabalhou. Irmão do meu pai. O meu pai nunca se deu bem com este último e nunca ajudou o José António, porque este nunca lho pediu. No funeral estiveram três pessoas, além do padre : o meu pai e a minha mãe e eu. O meu pai depositou em cima do caixão um molho de cravos. Depois fomos festejar a Revolução. O capitão do navio petroleiro não esteve lá. Ontem disseram-me que ele morreu podre de rico.