sábado, 8 de agosto de 2020

Conto- Maia

 

Histórias do Antigamente   

 Maya

 

   André foi meu condiscípulo na escola primária e no liceu. Fomos amigos, mas não dos mais chegados. Pelo meu temperamento em criança e adolescente dei-me melhor com alguns companheiros de então de que ainda guardo amizade fraternal, se bem que o tempo e as mudanças que todos vamos sofrendo nos possam haver afastado; porém, na fundo, sei hoje que a amizade preserva as suas raízes. No caso de André não era fácil com ele a partilha da cumplicidade das aventuras brejeiras e das gargalhadas fáceis nesses tempos despreocupados da infância e da adolescência. E porquê? Porque André foi sempre um indivíduo encerrado em si mesmo, só excecionalmente abrindo as portadas das janelas (por isso foi tão estranho o que se passou com ele mais tarde!). Como de facto não tinha humor, não apreciava aventuras em que sentisse perigo potencial, não se confessava nem a mim nem a outrem, e nem eu me sentia à vontade, nem o sentia a ele à vontade. Naquelas idades não perdíamos muito tempo a refletir sobre o carácter de cada um dos nossos amigos. O tempo passava-se depressa com a busca insaciada de novidades e experiências. Se o rapaz era assim, paciência e cada um seguia em perseguição da rapariga fatal e das leituras que transformavam o mundo. O que sei e devo dizer dele é que era indubitavelmente o mais inteligente de todos nós, desde a infância ao fim da adolescência quando por essa altura (teríamos dezoito anos porventura) o deixei de ver. Uma inteligência ingénua é verdade, porque lhe faltava experiências e vontade de as ter. Todavia, inteligência na resolução dos problemas teóricos que se apresentavam nas aulas, fossem de matemática ou de qualquer outra disciplina escolar mais contrastante. Intuição pura, rapidíssima. Sem vaidade e sem arrogâncias. Apresentavam-se problemas de lógica-matemática que eu nem sequer os entendia, quanto mais os resolvia? Pois, para o André eram imagens cristalinas com a solução em cima, numa fração de segundo. No fim do curso liceal namorava uma nossa colega que procurava passar tão desapercebida quanto ele. Chamava-se Maia e assinava Maya com ípsilon, o que lhe fornecia, convenhamos, um certo mistério...

Bom, como dizia eu, deixei de o ver. Uns meses antes desta pandemia, no dia 15 de Outubro, numa certa cidade que eu visito regularmente, encontrei-o numa livraria. Foi ele que me reconheceu e se me dirigiu com um largo sorriso. Observei-o. Vi um homem relativamente alto, barba abundante grisalha, uns olhos brilhantes logo acima da máscara protetora. Saímos para tomar um café. Não que eu sentisse especial entusiasmo. O meu condiscípulo não pertencera, como disse, às amizades que se guardam com carinho viril para toda a vida. Após uma breve troca de informações sobre os nossos estados atuais, André passou de imediato sem tempos mortos à narrativa que aqui partilho convosco. Narrativa espantosa, pelo menos assim a senti.

«Tu, eu e a Maia, terminámos o curso liceal no mesmo ano, se bem te lembras, e seguimos para a Universidade, tu, no Porto, a Maia e eu em Lisboa. Antes de me exilar (já te conto!) continuamos a namorar, se é que ainda se usa esta expressão, mas não vivemos juntos. Eu era o descendente mais novo de uma família burguesa, não sei se te deste conta quando éramos condiscípulos, burguesa no sentido do termo, porque de facto éramos uma família com amplas posses e poder social na vila. Enfim, eu realmente podia pagar um apartamento em Lisboa com a Maia. Não nos pareceu possível nem necessário. Ela tinha uma mãe muito antiquada, de costumes rígidos e protetora, não gostava de autonomias para as filhas. A Maia não quis provocar mágoas na mãe. Ela própria comportava-se como um produto, digamos assim, da educação, do ambiente lá de casa. Terá sido esse modo de ser dela, modesto e reservado, que me atraiu quando a conheci no Liceu (do início do namoro então no liceu tu e os demais colegas deram-se conta, até porque eu passava todos os intervalos entre as aulas a pisar-lhe os passos e ela os meus!). Na universidade continuamos iguais a nós mesmos: sempre juntos, com escassa sociabilidade, tentando passar discretamente por entre as gotas da chuva, se me entendes. No início do terceiro ano da Faculdade fui chamado para a tropa, para a guerra vale dizer. Já andava a matutar nessa evidência de a qualquer momento ser chamado e já tinha pedido um adiamento. Conversei muito com a Maia sobre o assunto. Eu não queria fazer guerra nenhuma, como provavelmente também te deste conta disso eu não era um tipo corajoso, não era capaz de suportar um sofrimento físico e não era, muito menos, capaz de matar alguém. Entretanto, soube que a PIDE me vigiava, não que eu fosse um grande agitador ou ativista da oposição ao regime, não, não era! Contudo, ajudava na Associação de Estudantes e distribuí em duas ocasiões panfletos políticos dentro da Faculdade e fora dela. Ou seja, eu tinha dois fortes motivos para pensar seriamente na hipótese de fugir, exilar-me. A Maia não concordou nem discordou. Compreendi a relutância dela. Para sair do país, para desertar que é o termo, precisava de encontrar uma forma segura de chegar a França ou à Suíça. O dinheiro e a influência do meu pai conseguiu isso facilmente é claro. Preparar as coisas e chegar a Paris bastou-me uma semana. Servindo-me uma vez mais do círculo de influências da família, que era largo! empreguei-me numa escola particular onde precisavam de um professor de grego e latim, a minha especialidade. Escrevia-me quase diariamente com a Maia. Tentei dia após dia ajudá-la a partir, a juntar-se-me, transmitindo palavras de coragem para ela conseguir lidar com a mãe dela, visto que o dinheiro necessário não lhe faltaria. Comprei por duas vezes o bilhete de avião, nada feito. Escrevia-me, mostrava-se amorosa, porém os meses fizeram-se anos, o tempo, inexorável, foi passando. E nós temos, entretanto, que sobreviver. Entre os meus escassos amigos estava uma colega francesa com quem me fui dando primeiro com amizade (a recordação da Maia mantinha-se forte!), depois com a intimidade que naquele caso foi consequência inevitável. Quero dizer: ninguém adivinhava que viesse um dia 25 de Abril, ou quando viria. Portanto, cada um, onde vivesse, lutasse ou não, adaptava-se e sobrevivia o melhor que pudesse. Maia já era uma pura recordação, já não era mais um projeto. Finalmente para o povo português, para todos nós, o dia libertador chegou, não sei se mais cedo ou se mais tarde do que o esperávamos, depende da idade que cada português tivesse na altura. Não regressei, vim a Portugal assistir, participar digo, nas grande Festa, mas queria depois regressar a Paris, à companhia de Natalie que estava grávida de algumas semanas, poucas. Não éramos marido e mulher, vivíamos juntos uma união tranquila, escola, casa, casa, escola. Eu havia imprimido à nossa relação o ritmo que era o do meu carácter ou temperamento: a rotina, a cadência discreta que me dava segurança. E eis que aconteceu um terramoto e a vida deu uma volta de 360 graus: procurei a Maia e encontrei-a! Não a encontrei na primeira morada, na da família dela, porque o pai me comunicou que a senhora tinha falecido. Deu-ma o número de telefone da filha. O senhor ainda nutria por mim o mesmo afeto. Maia não atendeu o primeiro e o segundo telefone. No dia seguinte já pela tarde consegui escutar novamente a sua voz. Não mostrou qualquer surpresa (claro que era natural eu regressar à pátria, tal como estavam a fazer centenas, ou milhares, de portugueses!). A voz a as palavras denotaram simpatia mas não amor. Nós havíamos sido tão discretos nos sentimentos que provavelmente amámos sem paixão. Não estava imediatamente livre, combinou-se um jantar para outro dia. Suspeitei que ela tivesse o seu companheiro. Quando a vi com olhos de ver, nesse encontro, pasmei: Maia era outra pessoa! Era ela e não era! A estatura mais alta por via dos sapatos de salto alto, uma roupa justa, mais cheia de carnes, porém elegante, o cabelo diferente e para melhor, em suma: no aspeto a antiga namorada mal saída da adolescência transformara-se numa mulher bela e sensual. Não digo provocadora, atenção! Nada disso. Estava sedutora, mas não evidenciou sinais de sedução. Tinha um namorado, seguramente! No encontro seguinte, encontro que me esforcei para conseguir, foi numa praia. Eu explico: a praia era isolada embora fosse verão; o grupo era numeroso, os jovens iam chegando pelo crepúsculo; sim, eram todos jovens, como eu e a Maia o éramos ainda apesar de tudo, não, não havia crianças, adolescentes sim, estudantes dos liceus, da universidade...Fez-se uma grande fogueira, partilhou-se comida e, sobretudo, muita bebida. Bebida e não só bebida, entendes-me? Havia exemplares de um jornal pelo chão. A capa exibia títulos e expressões que se identificavam imediatamente. Aquela juventude que, daquele modo, confraternizava aparentemente sem preconceitos, estavam todos irmanados por um determinado credo político que eu não apreciava de modo nenhum, porque o MRPP - tenho de dizer o nome!- tinha, como movimento político, todos os tiques e defeitos dos esquerdismos. Maya continuava a provocar-me o maior dos espantos: sem reserva alguma, risonha e quase febril, uma alegria exuberante entre o espontâneo e o artificial, mas que lhe ficava bem, que convencia, que seduzia, brilhando num círculo de belas raparigas que pareciam adorá-la! Era quase madrugada quando não resisti ao sono. Fui dos primeiros a acordar, provavelmente porque não abusei da bebida (sabes: nunca me caiu bem o álcool! Fumar nunca fumei, tu e os outros condiscípulos é que fumavam, não foi? Já não fumas penso eu.). Mal consegui distinguir a Maia no meio de um magote de raparigas a dormirem pesadamente. Peguei no blusão e dirigi-me à estrada por onde fui caminhado até à cidade onde apanhei um táxi. Nos dias seguintes descobri a força avassaladora da paixão que se acendera em mim. Não me trazia qualquer felicidade. Trazia-me dor. Aquela nova Maia devorava-me o coração, os pensamentos. Tudo deixara de fazer sentido para mim. A mente ficou completamente direcionada para uma finalidade absolutamente urgente: possuí-la! E quanto mais ela evitava as minhas aproximações, mais a desejava. Passei a viver um tormento. Amar não era o paraíso, mas o inferno! Porque não conseguia despertar nela o amor que ela me dedicou em anos passados? Aquela dependência dela de que eu tirava o melhor proveito, sem a a dominar ou manipular percebes? O seu rir discreto que tanto me agradava...Porém não eram essa a Maia que me fascinou ! Era esta que eu agora te descrevo! Era esta mulher independente, preguiçosa, fútil, fanatizada por um credo político hostil e palavroso que haveria de prejudicar gravemente a revolução portuguesa! E eu? Em que me transformei eu? Cauteloso, mais: posso dizer até mesmo medroso, introspetivo, e de repente, num curto espaço de tempo, atravessado por todas as setas que Cupido tem na aljava e digo isto sem ironia, porque nunca esteve tão correta esta mitologia grega e latina! Frechado é o termo, mas não por uma força divina ou demoníaca, sim por um desejo que eu não conhecia em mim! Dormia mal, comia mal, e não pensava noutra coisa. Tornara-me ousado, decidido. Ou cego? Perseguia os seus passos como um rafeiro, cada vez mais incomodativo dei-me conta. Dei-me conta mas não conseguia evitar! Estava imerso em plena loucura. Não me olhava ao espelho para não me ver no estado miserável em que me deixei cair. Para não ver as olheiras negras, os olhos sem brilho, uma boca trémula. É certo que cuidava do meu aspeto, porque tentei sempre, até ao último instante em que soube a verdade, cativá-la novamente, reacender uma chama naquelas cinzas que eu não queria ver que eram cinzas. Como é possível sofrer-se tanto e gratuitamente? Sofrer-se sem necessidade alguma? Horas e dias que parecem anos! Por fim, uma casualidade que me esforcei para que acontecesse, aquele acontecimento fatal que eu queria e não queria que chegasse, aquele instante que dura uma eternidade de chumbo em que temos de escutar a verdade, essa casualidade necessária, esse instante aconteceu. «André, não te deste conta ainda que não te retribuo? Que o passado é já tão passado para mim que eu não lembro sequer?». Todo eu devia ser palidez, doença, súbita vontade de desaparecer nos confins do universo. «Porquê? Não passou assim tanto tempo!». «Porquê André? Porque, admiro que não tenhas notado isso nestas duas semanas, porque tenho namoradas, percebes o que eu digo? Não tenho namorados, tenho namoradas! A menina Maia evaporou-se! Tudo que é sólido se evapora no ar, dizia o filósofo barbudo de que todos falamos agora!».... O teto daquele quarto cheio de almofadas e flores caiu-me em cima da cabeça, pelo menos foi isso que eu senti. Fiquei pequenino e eclipsei-me em forme de átomo...Fugi. E fui fugindo dela e de mim durante anos, mais dolorosos que um calvário, para mim naturalmente, cada um é que sabe o que sofre, não são os outros que sofrem as nossas dores, eu sei que talvez exagere agora, a palavra “calvário” só se aplica a quem morre na cruz, contudo era assim que eu me sentia, que eu me senti durante um ano inteiro ou mais, uma passagem pelo Purgatório! Regressei a Paris apenas quando me senti mais forte. É claro que me sujeitaram a uma “cura do sono”, numa clínica, e mais uma vez o meu pai entrou com as despesas...Vim definitivamente residir para o nosso país há pouco tempo, quando me reformei e quando já sou avô. Readquiri tranquilidade e segurança. Não voltei a ser nem o louco, nem o rapaz medroso do liceu...Esta foi a minha história, amigo. Há muitos anos, há mais de quarenta anos, que não a confessava a ninguém: Posso acrescentar: nunca a contei com a lucidez que a libertação nos permite...».

   O André (o nome não é este evidentemente) é atualmente um grande amigo meu. Um cidadão que alcançou na profissão docente, nas universidades francesas, um notável estatuto. Fiz-lhe a pergunta necessária: e a Maya, com ípsilon, que é dela? «Soube há uns dez anos que era professora do ensino secundário no Algarve...Um dia destes vou procurá-la aqui no Face...tenho a certeza que envelheceu bem...».

 

NOZES PIRES

26/07/2020