domingo, 12 de julho de 2020

Histórias do Antigamente- 9

As rotas paralelas

Duas linhas paralelas jamais se juntam.
Naquele tempo tínhamos nove anos ambos e brincávamos juntos, só nós dois, Sofia e eu. Era no amplo parque que rodeava o palacete da família. Não da minha, evidentemente. Nós morávamos num casa modesta, pequena para uma numerosa família, junto ao rio, ao pé da estrada nacional. Sofia, em contraste absoluto, residia num solar oitocentista, com enormes chaminés e mil quartos onde eu nunca poderia entrar. Nem nos quartos, nem no salão onde decorriam festas galantes, nem nas salas íntimas, nem sequer no átrio de entrada. A única dependência que conheci da mansão burguesa foi a cozinha. A única porta de entrada, a das traseiras, de que se serviam as criadas.
  Certo dia ela chamou-me por detrás do enorme portão de ferro quando eu passava no caminho em frente. Aquele era o caminho mais curto para eu chegar ao troço do rio que mais apreciava. Já a tinha visto ali junto ao portão. Não me escapara o azul dos seus olhos grandes, o oiro vibrante dos seus longos cabelos. Olhávamos um para o outro, naquela infantil fixidez com que as crianças se olham, e eu passava. «Esta miúda não tem ninguém com quem brincar!», dizia para os meus botões. E lá me dirigia para o rio para me juntar a dois garotos safados e traquinas quanto eu.
  «Queres brincar comigo?», e olhava-me sem tibieza. Foi assim que a minha amizade com Sofia se iniciou. Eu deveria comportar-me com timidez porque deste modo se comportavam, ou era então normal que se comportassem, os oriundos de classes operárias ou rurais. Contudo, ao arrepio de outras ilustres opiniões, quem se comportava de modo submisso no Minho eram os trabalhadores do campo, não os operários fabris e seus filhos. Por conseguinte, se a miúda queria brincar comigo, muito bem!, abri o portão com genica e entrei . Claro está que percorridos alguns passos no caminho tratado com esmero, que parecia atapetado com areia da praia, emoldurado de gigantescas árvores, umas muito delgadas, outras muito copadas, eu fiquei pasmado e hesitante.
 Foi nas longas férias escolares de verão. Não existiam algarves para ninguém, uns porque nunca poderiam, outros porque os “banhos” faziam-se nas localidades nortenhas chiques. Portanto ia brincar com Sofia mais ou menos umas duas horas por dia até ao dia em que ela com a família foi alojar-se numa dessas localidades. Quando regressou lá estava ao portão à minha espera. Porém, dessa vez tinha com ela um garotinho, bem mais novo que nós, seu primo. O miúdo era fraquito, adoentado, mal sabia correr atrás de nós. Passei a cuidar dele como se fosse meu irmão, habituado que estava a ter irmãos mais novos e mais velhos. A Sofia importava-se pouco com o primo. Tendia a impor as suas regras nas brincadeiras e quando eu a enfrentava punha-se a choramingar, mas era só fita. Quando a vontade dela era imperiosa recorria às artes inocentes da sedução, sabendo perfeitamente que eu adorava os seus olhos azuis, a sua cabeleira de oiro, a sua figura esbelta, os vestidos maravilhosos que lhe ficavam tão bem. Ainda assim nem sempre conseguia os seus intentos, porque encontrava um adversário ainda imberbe e teimoso como uma mula, diziam de mim os meus irmãos mais velhos. A verdade é que eu vergava como um caniço se ela escolhia a tática do olhar morno e comprido, aí estava perdida a minha bravura da classe operária contra a burguesia! Somente quando ela se punha com birras e choraminguices é que eu me sentia confortável na posição do rapaz que não chora à frente das raparigas...
Ocupávamos essas duas horas diárias de duas maneiras: a um primeiro tempo, Sofia cantava uma ária das óperas que a mãe a fazia escutar nessa semana. Sofia recebia aulas de canto pelas manhãs, com uma professora que, segundo me contou, tinha sido ou era ainda professora numa importante escola. Sofia cantava, portanto. E que bem cantava! Da primeira vez que a ouvi fiquei aparvalhado, porque em casa os meus irmãos só ligavam na rádio para os programas de rock and roll. Ou seja, eu apenas conhecia o Elvis. E gostava. De óperas é que não sabia coisa nenhuma. Mas fiquei a saber. Gravei na memória fresca a ária “Da Rainha da Noite”, da ópera de Mozart, “A Flauta Mágica”, e a “Habanera”, da “Carmen”, de Bizet. Mais tarde constatei que Sofia cantava somente pequenos fragmentos desses árias. Quando, por essa altura, vi o filme de Walt Disney, “Branca de Neve”, e escutei a canção Someday May Prince Will Come, as lágrimas correram-me sem vergonha. Eu gostava muito de a ouvir cantar os primeiros acordes de “A Rainha da Noite”, sem dúvida, mas a canção da Branca de Neve ansiando pelo seu príncipe deixava-me em êxtase. A canção já andava traduzida para brasileiro; aliás, o filme todo; porém Sofia, aos dez anos acabados de fazer, cantava-a em inglês. Evidentemente que eu não percebia patavina da letra, exceto o que ela me traduziu (mais tarde verifiquei que ela aldrabava um pouco na tradução). Depois do canto, que servia para ela me encantar e, assim, dominar-me a seu jeito, seguia-se a intensa exploração de todos os recantos do imenso parque em busca minuciosa de joaninhas, escaravelhos, ninhos de formigas e de pássaros, quase tudo que rastejava ou voava ali, exceto caracóis que metiam nojo à menina. Eu ainda tentei atingir à pedrada uns sapos do vasto tanque secular onde iam beber as pombas e os pintassilgos, mas a Sofia admoestou-me com severidade: «Deixa-te de crueldades mas é!». Aquiesci envergonhado e passei a exigir aos maus camaradas garotos contenção nessa matança. Certa vez pus-me em cuecas e atirei-me para dentro do tanque, sob as risadas cristalinas daquele anjo malicioso. Armei-me em valente e apanhei uma violenta constipação. Sofia estava terminantemente proibida de se molhar nas águas paradas onde nadavam girinos, sobrevoavam libélulas e flutuavam nenúfares.
 Eu regressava a casa nesses dias e logo narrava tudo à minha mãe e ao mais novo dos meus irmãos. A minha mãe não prestava atenção suficiente para alguma vez haver avaliado o encantamento em que eu vivia; o irmãozito, esse só gostava da parte em que eu imitava a Sofia nos cantos operáticos, exagerando nos gestos dramáticos que ela desenhava à minha frente, comigo sentado na relva.
 Quando o novo ano escolar começou, o meu pai foi deslocado pelo Estado para outra povoação e levou, claro está, a família atrás. Era demasiado longe para eu visitar a minha amiga aos dez de idade. Não a esquecia. Contudo, esses primeiros anos da adolescência são sempre, ou foram, tão cheios de novidades, que a Sofia ficou guardada na gaveta feliz da minha memória sob a avalanche das novas experiências. Feliz mas, simultaneamente, nostálgica. Talvez venha daí esta minha ideia de que a verdadeira felicidade é nostalgia, coisa bem estranha e paradoxal.
Quando me achei autónomo, aos dezasseis anos, pus-me a caminho, à boleia dos carros que passavam, da povoação e do palacete da Sofia. O palacete ainda lá estava, porém a donzela, conforme me informou a velha criada, não residia ali mas no Porto, onde já cantava em festa solenes e saraus das elites. Assim, segui Sofia anos a fio através dos seus sucessos artísticos. Metia-me no comboio para a ouvir, mais tarde, no São Carlos, no teatro de Évora, fosse onde ela fosse, deixando que as lágrimas me corressem pela cara quando a voz divina me elevava ao céu. Foi a minha paixão secreta, guardada no silêncio das memórias infantis mais íntimas que somente confessamos às nossas mães, nunca aos pais daqueles tempos. Sofia foi-se apurando nas óperas mais diversas e mais difíceis: no Figaro e no Don Giovanni, de Mozart, na Traviata, de Verdi (ó Violetta sublime!), na Habanera, ou seja, na Carmen, de Bizet.
  Quando ambos havíamos chegado aos vinte e cinco anos de idade, procurei-a no camarim após um espetáculo dos que a Companhia oferecia ao povo das vilas depois da alvorada do 25 de Abril. Foram-lhe comunicar o meu nome e ela mandou que eu viesse vê-la imediatamente. Abraçámos-nos com sorrisos e lágrimas. Saímos e passámos aquela noite juntos. Não a repetimos. As ocupações de ambos, cada um na sua frente de “batalha” nesses tempos gloriosos de voluntária e apaixonada entrega ao povo das vilas e aldeias de Portugal, não permitiam vidas comuns regulares a muitos. De resto, ela deslocava-se continuamente entre o norte o sul e em 1980 foi viver para a América, onde se sentia mais recompensada que na sua pátria madrasta. Nunca mais a vi.
 Na semana passada, o confinamento imposto por esta maldita peste permitiu-nos ( ou são os efeitos desta pandemia sobre as memórias e os sentimentos das gentes?) conversar pelo skype várias horas. Senti-me alegre quando a olhava e escutava; senti-me triste quando, após desligarmos-nos, me caiu em cima o peso duro da realidade, a face implacável do Tempo para o qual nós somos completamente indiferentes. Nós é que passamos, Ele continua.
     Sofia tem outro nome, o seu, o verdadeiro. Retirou-se há muito tempo dos palcos.
  Recorda-se claramente daquele verão em que competia no canto com os rouxinóis do parque do seu palacete, desafiando o amor inocente de um garoto que aceitou fazer-lhe companhia.
NOZES PIRES
11/07/2020