segunda-feira, 3 de junho de 2019

A Estrada-peça de teatro absurdo


A ESTRADA

-Teatro -

Personagens

Uma mulher
1º vagabundo
2º vagabundo
Um casal: Iaco e Flora

1º ACTO


Anoitece. A rapariga está sentada na beira de uma estrada. Absorta. Aproximam-se dois vagabundos
vagabundo Eh lá, estás a ver o que vejo?
vagabundo  Vejo muito bem, porquê, não devia olhar?
vagabundo  Claro que deves olhar. Gostas do que estás a ver?
vagabundo  Não sei, achas que devo gostar?
vagabundo  Estás sempre a perguntar a minha opinião, já reparaste?
vagabundo  Nem sempre. Lembras-te daquela vez...
vagabundo De quê? Não me distraias agora.
vagabundo  Daquela vez em que eu não voltei para a tua companhia...
  ------           Voltaste, voltaste!
  ------           Sim, mas demorei alguns dias.
  ------           Mas voltaste. E com o rabo entre as pernas.
  ------           Não foi bem assim, tu estás sempre a deitar-me isso à cara!
  ------           O quê? Não te oiço bem.
  ------           Porquê? Já não te interessa o rumo da conversa?
  ------           Estou a observar a rapariga.
  ------           Qual rapariga??
  ------           Aquela ali! Não vês uma gaja ali sentada?
2º -------      Tu sabes que eu vejo pessimamente ao longe. Aproximemo-nos mais. (aproximam-se) Ah, vejo qualquer coisa sim, uma coisa bem estranha, uma tipa! A estas horas, neste sítio?? Isto é muito estranho.
  vagabundo    Achas tudo estranho. O que se passa é que já não pões os olhos em cima de uma mulher há um ror de tempo.
vagabundo   É verdade, eis uma grande verdade. Mas isso que importa, não tenho sentido muita falta.
vagabundo   Mau, mau, começas a ficar senil, ou vem ao de cima a tua inclinação sexual um bocado esquisita?
   vagabundo   Lá vens tu com as tuas insinuações torpes...
                      Torpes?? He lá, cá temos de volta o professor!
                      E porque não? Ainda o sou, embora aposentado.
                     Qual aposentado, qual carapuça, deste à sola, foi o que foi!
                    Bom, tudo isso são histórias que já conheces. Retirei-me, digamos assim..
           ( Acendendo uma beata.) Ó como eu te compreendo! Mas não eram piores os teus meninos meliantes  do que os meus coleguinhas do escritório. Filhos da puta.
   Escolhe as palavras, Roxo, se realmente estamos em frente de uma senhora, ou menina, ou mulher, eu sei lá! Quem a cumprimenta primeiro?
       Primeiro não me chames Roxo!
                 Desculpa. Quem a cumprimenta?
                 Eu, é claro. Sabes bem que comigo as mulheres nem respiram.
               Pois, pois, um sedutor da mais fina cepa. E eu, nem sequer consigo contar as mulheres que já tive.
    Força, campeão! Como é que as engatavas? (Enquanto assim vai falando, observa a rapariga, que desperta da prostração; agora já os observa com receio.)
               Não engato, nem engatava. Nem nunca me ouviste usar a palavra «comer», pois não?
        Realmente...és um animal de museu.(pausa) Bom, como é que as seduzias, se preferes? Com cartas de amor?
     (Tira os óculos e finge que os limpa.) Normalmente não as seduzia directamente, era seduzido; só depois é que as seduzia.
    Isso era defeito ou qualidade? No meu caso, caçava-as, deitava-lhes a rede, fazia-lhes esperas...Não passamos de predadores, homenzinho, o instinto está cá, a caça é o nosso desporto favorito. (Coça as virilhas.)
     Seja o que tu quiseres. Mas gostamos de ser caçados, ao contrário dos animais.
   Qual quê? Qualquer macho adora ser caçado por uma fêmea.
              Mesmo o tal aranhiço que é a seguir digerido pela fêmea?
          É claro, e também o Louva-a-Deus macho. Enquanto a fêmea  lhe devora a cabeça, o gajo vem-se que se farta.
   A rapariga não nos ouve??
          Ah, pois claro, a rapariga. ( Aproxima-se.) Viva! como te chamas encantadora criatura que te encontras solitariamente sentada à beira deste caminho? Necessitas de ajuda? Andas perdida nestes ermos? Tranquiliza-te, somos ambos boa gente.
A RAPARIGA   Boa noite, boa noite digo bem, porque a noite já está vindo...Está tudo bem, obrigada, estou à espera apenas...
   Desculpe, mas à espera de quê? Por aqui não passam autocarros! Veja lá se precisa de alguma coisa. (Dá um jeito ao casaco como para se compor.)
   (Sussurrando para o companheiro.) Não será puta?
   Aqui?? (Falando para a rapariga.) Bem, se não necessita de nada, então está tudo bem. (Sussurrando para o companheiro.) Até me custa! Será maluca?
A RAPARIGA  Estou com medo. Não estou à espera de ninguém. Estou com medo. Quero ir-me embora mas não consigo. (Desata a chorar.).
  ( Aproximando-se completamente.) Ora essa, a chorar! Não vale de nada gastar as suas preciosas lágrimas (Sussurrando para o outro.) Que bonita que ela é!
    Não chore não, nós ajudamo-la no que for preciso.
               (Falando baixo.) Não ajudes muito porque só nos sobra uma côdea.
           Pode ser que não tenha fome.
    Mas depressa a terá. (Falando para ela.)  Vamos lá adivinhar o que lhe aconteceu.
A RAPARIGA    Eu conto.
   Não é preciso. A falar e a chorar resulta uma mistura assaz dramática.
          (Batendo-lhe amigavelmente no ombro.) Assaz?? Eis que voltam os tempos em que sabias exprimir-te.
      « (Senta-se ao lado da rapariga, coça uma perna.)  Nada mais me agrada do que puxar pelo cérebro e pela criminologia; portanto, vou pôr-me a deduzir o que lhe aconteceu, é tudo uma questão de lógica. (Coça a cabeça.)
   (Senta-se do outro lado da rapariga.) Ultimamente não tens feito muito uso desses instrumentos. Ainda ontem, numa bifurcação, teimaste que o caminho correcto era o da direita.
     Não me lembro disso; e se bem me lembro, tu concordaste. O que prova que confias na minha argúcia.
     Reconheço que o és mais do que eu. Sou mais idealista, mais ingénuo.
    Ingénuo uma porra! Um pateta que acredita nos outros, é o que és!
           Sempre me disseram que sou boa pessoa.
     Eu também, somos todos. Mas não é preciso ser pateta. Acreditaste naquele filho da mãe que fingia que era ceguinho e viste o resultado: roubou-nos a lata de salsichas!
A RAPARIGA  (Mais recomposta.) Vocês até são engraçados! Então, vamos lá, porque razão estou aqui?
    Pois vamos então ao jogo! A menina...
A RAPARIGA   Sou uma mulher , embora pareça muito nova.
1º      Bem vejo. Isto é, bem vejo que é uma mulher feita. Vinte e ?
A RAPARIGA    Vinte e oito anos. Mas pareço mais nova, toda a gente o diz.
     Ai, isso parece, sem dúvida que parece. Muito novinha. Onde é que já vão os nossos vinte e oito anos, onde é que já vão.
    (Para o companheiro.) Deixa-te de lamúrias. Como te chamas?
A RAPARIGA   Isso é importante?
     Costuma ser. Uma denominação por si nada significa, mas abre caminho.
A RAPARIGA   Chamo-me Marta.
      Um nome vulgar. Porque não escolhes outro?
A RAPARIGA  Não posso. Os meus pais deram-me este nome por causa de uma avó, que lhes deixou uma farta herança.
     Ah, então está adequado. Fui eu que escolhi o nome da minha filha.
A RAPARIGA  O senhor tem uma filha?
      Ele tem e não tem. Quem a tem é a mulher. A mulher deu à sola.
       Não sejas grosseiro! Não só a Rita gosta do pai, como a mãe e eu continuamos bons amigos.
        Claro, ficou-te com a casa e com o carro. E com a filha. (Acende outra beata.)
      Isso são águas passadas. O amor é passageiro, o que o torna comprido é o casamento, não é isso que costumas dizer?
A RAPARIGA  A sério? Eu acredito que o casamento faça durar o amor.
      Deixa lá, o meu companheiro ficou como o gato com a água escaldada. No fundo, é um romântico: acredita no amor eterno. É um tipo porreiro! E não tem este maldito vício do tabaco. (Mas puxa com força uma fumaça.) Olha lá, aqui que ninguém nos ouve, por acaso não tens aí um ervazita para se enrolar um cigarrito, daqueles, percebes?
A RAPARIGA  Desculpe, não tenho. Já a fumei toda. E que falta me faz!
    Paciência. Não trazes comidinha, nem ervinha... Paciência. Bem podias ser um anjo da guarda (pausa) mas não és.
A RAPARIGA  Desculpe...
    Vá, não te desculpes tanto. É um sinal de fraqueza.
A RAPARIGA  E você, também é divorciado? Viúvo?
   Nem é uma coisa, nem outra. Mulher alguma jamais confiou nele.
          Olha lá, isso são assuntos que se tragam para a conversa? De resto, era antes eu que não me fiava nelas.(Abre o bornal, retira a côdea, observa-a com muita atenção. Volta a aguardá-la.) A noite já caiu. Vamos mas é abrigar-nos em qualquer toca, sítio quero dizer. A Marta vem, ou fica?
A RAPARIGA  Não sei que fazer, não sei o que escolher, não sei o que decidir.
   Ou confia em nós, ou não confia. Ou fica sozinha neste ermo, ou não fica.
  Falaste com o rigor que te ensinei. A lógica, minha filha, a lógica!
A RAPARIGA  Talvez me decida acompanhar-vos. Ele já não vem...
    Ele? Quem é ele? Ora cá está, como eu adivinhava, temos um gato com o rabo de fora. Onde encontrares uma mulher sozinha...
A RAPARIGA  -  Triste.
-...a chorar, temos drama passional!
          Coitada da moça. Pode ser órfã.
A RAPARIGA     Não sou órfã. Mas não gosto particularmente dos meus progenitores.
    Os nossos pais são e serão sempre os nossos pais.
         E os tiranos. Não me diga que foi abusada pelo pai?? Então tínhamos um drama de todo o tamanho.
A RAPARIGA  De modo nenhum. Não se trata disso, Jesus! O que se passa é que ele abusa da bebida e ela abusa do jogo.
Isso chega para estragar uma infância. (Para o companheiro.) Traumas, recalcamentos, amnésia infantil.
   (Para ele.) Enfim, uma neurose, é isso, psicólogo? E sabes se aquilo que ela diz é verdade? (Para ela.) Bom, mas não foi por isso que se encontra aqui, abandonada, como diz. Vamos tratar-nos por tu, à espanhola, o .k.?
A RAPARIGA  Claro, claro. Tu chamas-te?
     Carlos Miguel de Santana e Vilhena...
      O meu amigo é fidalgo.
      E este aqui, é o Tiago...
     ...dos Santos. Professor.
     Do ensino básico, ou lá como se chama agora. Mas retirado...
     Por vontade própria! E ele é jurista.
     Empregado de escritório. Retirado por vontade própria.
A RAPARIGA (Enxugando as lágrimas.) Pessoas bem formadas, que confiança isso me dá. É pena o vosso aspecto ser assim, um bocado...
     Um bocado desmazelado; pois, na verdade...bem precisávamos de mudar de fato.
    Não damos importância a marcas. O consumismo, minha filha, é a alienação das massas! Comparada connosco tu és mesmo um anjo caído do céu.
A RAPARIGA  Ah, se me vissem noutras alturas!
   Não duvido, mas, mesmo assim, estás muito bem. O teu cabelo é pintado, ou natural? É bem bonito.
     Que perguntas! Se essa conversa continua não sei a que naturezas chegarás.
A RAPARIGA (Baixando a cabeça sobre os joelhos. Como se falasse para si mesma.) Que faço aqui? Indefesa, com dois homens desconhecidos...(pausa) Quem me dera dormir e não acordar mais!
(Subitamente ouve-se um grande estrondo.)
   Ouviram? Um desastre! Um carro contra uma árvore, tenho a certeza que se esbarrou contra uma árvore! Foda-se! (Desata a correr. O companheiro fica algum tempo especado, sacode o torpor e segue-o. A rapariga caminha vagarosamente,  observando a cena de longe. O carro não se mostra em cena. Dois cadáveres são arrastados para o palco pelos dois vagabundos. Nessa tarefa, o mais enérgico é o 1º vagabundo.)
    Que horror, que horror!
A RAPARIGA  Ó meu Deus, ó meu Deus!
    Ambos mortos e bem mortos! Fodidos! Deviam ser marido e mulher.
  ( Profundamente perturbado. Encosta-se à árvore para não cair.) Despistaram-se na curva. Estarão mesmo mortos?
   (Ausculta-os com o ouvido, apalpa-lhes o pulso e as carótidas.) Completamente. Ele tem os miolos de fora, dela jorra esta sangria da cratera do peito. Têm ambos a cara semi desfeita. Quase irreconhecíveis.
   Chamamos quem? A polícia, o INEM, quem, meu Deus, quem? (Cobre o rosto com as mãos.)
  Acalma-te homem, pensa com a cabeça. Temos telemóvel? Não, não temos. Há alguma casa aqui perto? Não se topa nenhuma a quilómetros. Não estão bem falecidos? Estão. Por conseguinte, deixa estar o que está e piremo-nos mas é daqui.
  Com assim?? Abandonamos os corpos aos cães??
  Quais cães?? Amanhã, ou mesmo de madrugada, alguém os encontrará. Não é a primeira vez, nem será a última, que estas coisas acontecem. Ou és tão tolo que queres enterrá-los? (Entretanto, busca alguma coisa no casaco do homem, retira-lhe a carteira, fica com o dinheiro; faz o mesmo com a bolsa da mulher; depois, enche o bornal com os comestíveis que encontra no automóvel.) Ala, que se faz tarde!
   (Correndo atrás do companheiro, em direcção ao ponto elevado onde a rapariga os observa.) Tu também és capaz de tudo! Onde é que arranjas tanto sangue frio?
   Vais tê-lo bem quentinho quando papares estas iguarias.

( Apressam-se a afastar-se. A luz deixa de incidir sobre os corpos, que são retirados do palco.)



2º ACTO

(Os três abrigam-se sob um pardieiro. A rapariga sentada, as mãos nos joelhos, meditativa. Tiago limpa a boca com um lenço. Roxo, trinca ruidosamente  uma maçã.)

    Que bela noite! O firmamento brilha com mil olhos. Vê-se bem pelo buraco da porta. Este pardieiro nem porta tem. Enfim e adiante, é no campo que se vê como é belo o firmamento.
    Não tivesses enchido a barriga, e nem para ele olhavas.
     Falas assim mas eu sei que possuis uma alma sensível.
   Enganas-te. Se a possuísse já estava morto há que tempos. A vida é uma merda, temos de mexer nela com alicates.
    Então porque não queres morrer, porque te resguardas para não morrer? Onde está a tua soberba lógica?
     Puro instinto, meu caro, puro instinto. O meu corpo é que decide (tenta comer outra maçã, mas já está saciado.) Neste momento o sacaninha está contente. Se a morte é o nada, no nada já nós estamos. Vou mas é dormir uma soneca. Boa noite Marta! (aproveita para lhe espreitar para as pernas.)
A RAPARIGA  (com voz desfalecida.)Boa noite!
( O 1º vagabundo remexe as folhas com as costas para se pôr a jeito, e adormece com rapidez.)
    É surpreendente este homem, não é? Enfrenta tudo com uns nervos de aço, resolve tudo com um auto controlo espantoso, come, dorme, e daqui a pouco ressona. Carpe diem.
A RAPARIGA  Bem gostava de ser assim. Sou tão diferente! ( começa a choramingar. O 2º vagabundo logo se aproxima dela, rodeia-a com o braço, paternalmente. Ela chora mais forte, deixando a cabeça tombar para o ombro dele.)
    Chora à vontade. Chorar até faz bem. Sofres muito?
A RAPARIGA  Muito, muito. Não sei o que fazer. Procurava quem me ajudasse e logo que te vi pensei que eras tu...
    Mas mal me viste!?
A RAPARIGA   Já te tinha visto. Eu conheço-te.
   Como assim?? Donde?
A RAPARIGA  De quando trabalhavas, isto é, de uma escola onde estiveste a dar aulas.
    Essa é boa! O mundo é pequeno! Isso foi há quanto tempo?
A RAPARIGA  Há uns três anos. No Barreiro.
  Ai sim?
A RAPARIGA   Via-te ás vezes, no parque, estavas sempre a ler, e no cinema. Não te recordas mesmo? Logo na primeira vez que te vi achei-te simpático, uma pessoa distinta. Procurei aproximar-me de ti, mas não me vias.
  Estranho. Ou talvez não. Sou muito distraído. Mas pergunto-me: como é que não me chamaste a atenção, sendo tão bonita como és ?
A RAPARIGA  Isso não sei, mas obrigada pelo elogio. Realmente não sei porque não me ligaste nenhuma. Não quero ser vaidosa, mas os homens até costumam olhar.. Nem sequer eras altivo. Julguei-te apenas uma pessoa distante, até perguntei o que é tu fazias, disseram-me que eras professor. Das duas ou mais vezes que te vi, andavas sozinho. Mas é claro, não ias prestar atenção a uma catraia. Não foste à festa de fim do ano escolar da Escola ? Da Escola Secundária....Foi muita gente. Houve teatro...Não te lembras?
    Estranho. Não me recordo. E muito menos de ti. Aliás, não me recordo de ninguém.
A RAPARIGA   Isso é muito estranho, realmente. Estiveste doente?
   Não sei, não me lembro de estar doente. Lembro apenas o dia em que fiz uma trouxa, onde meti estes livros que tu podes ver, e parti.
A RAPARIGA  Mas se calhar foste a uma Junta Médica, não foste? Não ias abandonar sem mais nem menos...
   Devo ter ido. Pelo menos sei que vou recebendo ordenado.
A RAPARIGA  É isso que me deixa espantada: até recebes um ordenado, podias ter uma situação razoável...
   Digna.
A RAPARIGA  Não queria dizer isso, mas...enfim, escusavas de andar assim, não percebo...
Também não é preciso perceberes. Ou melhor, nem eu percebo. Desisti. Devia dizer: desviei-me da normalidade.
A RAPARIGA   E o teu amigo, também se passou...desculpa, também...
   Também. Num pardieiro como este encontrei o Roxo...
A RAPARIGA-- Porque lhe chamas assim?
    É o nome verdadeiro dele: Manuel Roxo, apelido ou alcunha de alentejano, da mais pura cepa. Era um cumpridor empregado até ao dia em que fez uma trouxa, tal como eu fiz, e zarpou de casa. Nunca me explicou claramente porquê. ( pausa) Vou contar-te uma coisa sobre ele, não gosta que falem nisso, mas eu conto: é filho de um guardador de cabras, o pai trabalhava num monte, assim se chamava no Alentejo à terra do latifundiário...
A RAPARIGA  Os latifundiários eram aqueles ricaços que possuíam terras que nunca mais acabavam.
2º  Exacto. Nunca mais acabavam. Bom, o garoto saiu esperto, foi estudar para Évora, a expensas do tal latifundiário, porque a mulher deste engraçou com o puto, a fulana não tinha filhos, fazendo um parêntesis, a ricaça era maluca, foi um caso muito badalado o suicídio dela, numa figueira, imagina, à maneira do Judas Iscariote. (Pausa.)Bem, mas dizia eu, o puto fez os estudos liceais e, depois, o curso superior em Lisboa;  como o dinheiro era escasso ou nenhum, teve de trabalhar e estudar.  Casou com uma advogada, acho que era advogada, nunca a conheci como calculas, construíram uma vida boa, mas mesmo boa, uma família normalíssima...e um belo dia de repente, sai do doce lar e não volta mais! Deixou uma carta para a mulher, sabe-se lá o que ele lhe dizia, e nunca mais voltou, até hoje.
A RAPARIGA  Ai, que coisa tão esquisita! Realmente sois muito estranhos. Quem é que larga uma boa vida?
      Pois é, mas foi mesmo assim. Muitos não a têm e querem-na, outros, pelo contrário, possuem uma alma nómada. Mas olha que o Coxo tem um passado do caraças! Tu és muito nova, contudo deves saber com certeza que vivemos antigamente sob uma ditadura, existia uma polícia terrorista...
A RAPARIGA   Eu sei, era a pide.
    Exacto. Pois, digo-te, o nosso amigo que agora ressona no chão deste pardieiro, foi um bravo anti-fascista, passou as passas do Algarve nos calabouços da pide, torturaram-no noites e dias, e não denunciou ninguém, um perfeito valente! Para vós, gente nova, isso não terá valor, mas, para nós, é motivo de grande respeito.
A RAPARIGA  Ainda não tinha nascido. Admira-lo bastante, já se vê. Sinto-me uma ignorante ao vosso lado. E não percebo nada de política. Mas agora noto: tu dizes que não te lembras de nada do teu passado, mas sabes muito sobre o passado do Roxo!
  É claro. Ele foi-me contando. Mas aos poucos. O gajo é mesmo alentejano: vai abrindo a torneira aos pinguinhos. Então dizias tu que de política não pescas nada. Não admira, eu sou mais velho e nunca beneficiei nada com os políticos.
A RAPARIGA  O Roxo é mais velho do que tu, vê-se bem, e tu, tens que idade?
  Não sei ao certo, mas acho que devo estar nos quarenta.
A RAPARIGA  És da idade dele...bem, mudemos de assunto...Gosto mais de artes.
    E fazes bem gostar de artes. Eu também é disso que gosto. Gostas de representar, pelo que presumo? Possuis algum curso?
A RAPARIGA  Claro. Tirei o curso superior. O emprego é que está difícil. Na nossa área, então...
  ( Limpa os óculos.) Sim, sim, calculo; está mesmo bera para muita gente com cursos superiores. Mesmo bera! Eu nunca fiz teatro a sério. Gosto de assistir, é claro. Já que tenho aqui ao pé uma actriz, explica-me lá uma coisa: que é sentes quando estás a representar? Ou porque é gostas disso?
A RAPARIGA   É complicado explicar, mas acho que , por cima de tudo o mais, desejo a estima do público. Observar tantos olhos fixados em mim, é muito agradável. Dirás que é vaidade, não sei, talvez seja, mas cria-se um laço entre nós e o público, percebes não é verdade? E sei que quero, que preciso de trabalhar muito, para conquistar esse aplauso. Já fiz espectáculos muito bonitos, sabes? Possuo um currículo que me orgulha bastante. Nas aulas, no palco, sou outra pessoa completamente diferente.
   Acredito, porque não havia de acreditar? Somos sempre alguma coisa melhor do que parecemos. Há quem pareça mais do que é realmente, e quem é mais do que parece. O Roxo, por exemplo, fez tudo no passado, pelo menos é o que ele acha, no tempo da ditadura e, depois, na Revolução. Quando os cravos murcharam, como se costuma dizer, ele murchou também.
A RAPARIGA   Foi-se abaixo.
      Com este género de indivíduos não sei se é apropriado aplicar-se essa expressão. Talvez devêssemos dizer que ele detesta o país que veio depois. Detesta tudo, menos as mulheres. Se antes as apreciava, depois foi um ver se te avias. Cá para mim, o Roxo vive no passado.
A RAPARIGA   Apre, tenho de te ter cuidado com ele!
  Está tranquila: o meu amigo é um caçador experiente: só ataca a presa que deseja que ele a cace.
A RAPARIGA  E você, quero dizer, tu, também vives no passado?
    Não sei. Esqueci. Zás, apagou-se tudo, delete, puff! Nunca devo ter feito grande coisa.
A RAPARIGA     Ora, muita coisa deves ter feito. Sofreste foi algum desgosto.
   Farto, estava farto. Ou os livros deram-me a volta ao miolo.
 A RAPARIGA   E eu, o que é que eu te pareço?
    Uma criatura infeliz, talvez adoentada... se calhar também tu vives no passado. Conheces a história de Eurídice e de Orfeu? Provavelmente nós os três somos a Eurídice: bem nos avisaram: «Não olhes nunca para trás!» E nós olhámos...
A RAPARIGA   E lá ficámos outra vez no inferno...
   Cada um carrega o seu próprio inferno. É uma frase-feita mas continua a servir perfeitamente. Mas olha lá, eu pude abandonar a minha actividade, e não me arrependo, mas tu não podes abandonar a tua! Ou és uma actriz nata, ou é isso é postiço.
A RAPARIGA  Podes acreditar que amo completamente a minha actividade, o teatro...Mas agora  devo estar realmente muito doente. Só me apetece chorar.
    Compreendo. Pareces estar muito deprimida. Quem é ele, esse dito cujo que te roubou a vitalidade?
A RAPARIGA  Pois, é isso, deitou-me ao fundo e, contudo, não me sai da cabeça. Apareceu vai uns três anos. Eu estava a dar aulas no Barreiro, como te disse, não tinha contrato é claro, fiquei sem trabalho no ano seguinte, ou melhor, poderia tê-lo assim naquelas condições que também deves ter conhecido, num lugar muito longe e desconhecido (Pausa) Mas ele surgiu, e fizemos uma equipa, era experiente, mais velho, ensinou-me toda a prática, toda talvez não, ele nunca ensina tudo, guarda sempre alguma coisa para ele, o que é certo é que me apaixonei, assim perdidamente, como escreveu aquela poetisa que todos conhecemos (pausa) Preparámos espectáculos para o povo, digamos assim, é certo que eu já tinha trabalhado numa boa companhia de teatro, nada de especial...
    Que papel tiveste?
A RAPARIGA  Secundário. Estava verde, permanecer nessas companhias grandes é muito difícil, enfim, adiante, temos andado daqui para ali a apresentar o nosso espectáculo, as receitas são fracas, mas fui fazendo mais algum dinheiro com trabalhos provisórios, percebes, a dar umas aulas particulares...( Pára. Apura o ouvido.) Não ouviste nada?
     Sim, também me pareceu ouvir...qualquer coisa...lá fora...Passos...Vou espreitar.
A RAPARIGA ( Estremecendo. Encolhe-se.)Tem cuidado!
(Espreitando com manifesto medo.) Não vejo nada. Mas pareceu-me ouvir...assim...uns passos...talvez de duas pessoas...Podem ser cães, é isso! devem ser cães! (Mostra-se afoito, descontraído. Assoma à porta, olha para fora com ousadia.) Miau! He lobos! Cachorros! miau! (ri-se.)
A RAPARIGA  Não é melhor acordar o Roxo? Mesmo sendo cães, podem atacar-nos. (Mostra-se nervosa. Manifesta sintomas de um princípio de ataque fóbico, ou de pânico.)
   (Observando-a com surpresa.) Tranquiliza-te, também não é caso para tanto! Isso foi de não comeres quase nada. Bebe água, anda, bebe!
(A Rapariga bebe da água de uma garrafa de plástico; deita-se para tentar relaxar.)
A RAPARIGA  Há uns dias atrás não aguentei mais. Garanto-te que não foi o trabalho, eu adorava representar aquele espectáculo, era mesmo bonito, acredita, e o dinheiro até ia chegando...não, foi que comecei a sentir-me muito mal com ele...é difícil explicar...
(Escutam-se novamente passos. O 2º fica especado no lugar onde está. A rapariga inicia o ataque de pânico. O 2º sacode o Roxo com força.)
   (Mal abrindo os olhos. Afasta com alguma violência o companheiro, como se estivesse a libertar-se de algum pesadelo. Depois senta-se, olha primeiro à volta do pardieiro, reconhece o lugar.) Que aconteceu? Porra, que é que ela tem?
      Está a ter um ataque, de histeria suponho, não sei...Ouvimos uns passos lá fora!
     Mau, mau, isto é que estou fodido, porra para isto! Primeiro vamos lá ver o que a nossa menina tem. (Levanta-se com agilidade bastante. Senta-se de novo ao lado dela, senta-a quase ao colo, abraça-a.) Ok, ok, nada aconteceu, estamos aqui para te proteger, acalma-te, já passou, é tudo imaginação tua, vá, rapariga, vá! ( Apalpa-lhe as mãos.) Mãos suadas. O coração a bater forte, não é? ( A rapariga treme.) Tremuras. ( A rapariga manifesta claras dificuldades em respirar.) O que é sentes?
A RAPARIGA  (Com extremo esforço.) Quero respirar...quero respirar!
   E consegues, procura fixar-me nos olhos...exacto...respira...inspira....expira....isso! Vais escutar-me com muita atenção: estás aqui completamente segura, não sofres do coração, nem dos pulmões, nada!
A RAPARIGA   Estou cheia de medo...não vai acontecer uma grande desgraça, pois não?
   Nenhuma. A desgraça que aconteceu já aconteceu, e não foi contigo...todos os dias acontecem acidentes mais ou menos graves. Connosco estás completamente protegida
    (que os estava observando, encolhido a um canto. ) Não tenho os teus nervos de aço. Nunca tive nervos de aço. Pobre rapariga!
   (Continuando a abraçá-la.) Sabes, rapariguinha, este meu amigo de cobarde não tem nada, ele julga que é cobarde, mas não é, eu sei e já vi isso, é apenas sensível, nervoso. Bom, e tu também és um bocado nervosa! Mas aqui o velhote não te deixa ter medo, ah!?
A RAPARIGA  (Recompondo-se.) Tu não és velho!
    Isso, isso, diz-me coisas bonitas, ainda que pouco verdadeiras!
A RAPARIGA   Estou a ser sincera! Vocês sois ambos maravilhosos! (Desata a chorar.)
   (Erguendo-se com relutância.) Obrigado. Eu não fui de grande préstimo.
A RAPARIGA   Foste, é claro que foste. Que sorte ter-vos encontrado. (Desprende-se suavemente do abraço dele. Bebe água que lhe dão. Penteia os cabelos com os dedos. Esfrega as pernas.)
    Respira fundo...isso...outra vez.....mais outra....
A RAPARIGA   Tenho frio.
   Pega, cobre-te com o meu blusão.
(Assoma um vulto à porta do casebre.)
A RAPARIGA (Assustando-se violentamente.) É ele, é ele!
   (Parece não ter visto coisa nenhuma.) Ele quem? Deus nosso Senhor? Deus e o Diabo são apenas projecções dos nossos medos, minha filha...
     E anseios...
    De qualquer modo não existem. Só existimos nós os três, aqui, neste pardieiro. Lá fora rondam provavelmente cães, ou gatos, ou qualquer espécime em vias de extinção. (A rapariga olha para ele, olha para a porta, olha para ele, não sabendo em quem acreditar.)
   ( Levanta-se, dirige-se à porta – o pardieiro na realidade não tem porta – senta-se de costas voltadas para o exterior.) Eu sou a porta que a merda deste pardieiro não tem. Olha para mim rapariga e vê se topas algum deus! (com voz autoritária.) Olha!
A RAPARIGA (Reage. O método resulta. Tira o casaco.) Tens razão, imagino tudo.
     E se fossem os mortos que deixámos lá atrás? (Ri-se.)
A RAPARIGA  Credo, Jesus, não digas isso!
   É para substituir na tua imaginação outra coisa, isso faz-te bem. Conta-nos lá a tua história. Quem é esse ele?
     Já ma contou. Eu resumo: é actriz, tem andado...
A RAPARIGA  Já não ando...
      - ...com um fulano que organiza espectáculos, ou qualquer coisa assim. Um gajo aí para que idade?
A RAPARIGA   Quarenta.
    Pois. Viveu com ele uns anos, dois, três...
A RAPARIGA Quase quatro.
   O tipo ensinou-lhe algumas coisas, homem sabido, estás a topar...
A RAPARIGA   É um bom técnico. É mesmo bom naquilo que faz. E devo-lhe muito.
    Pois com certeza. Todos devemos alguma coisa uns aos outros. Devo ao meu pai, devo à minha mãe...e fiquei a dever ao merceeiro. A propósito, como é que te dás com os teus pais? Tens irmãos?
A RAPARIGA  Tenho um irmão. Dou-me com os meus pais mais ou menos. A minha mãe é depressiva, a última vez que a vi estava completamente no fundo.
    O teu pai, como era noutros tempos?
A RAPARIGA Desprendido, desprendido da mulher e dos filhos. Ignoro se teve amantes, mas a minha mãe tinha uns ciúmes horríveis dele...
     (Como se falasse para si próprio) Ah, pois, faz sentido....
      Faz sentido??
A RAPARIGA    Ele tinha uma maneira muito própria de amar-nos, se é que nos amou.
     É claro que vos amou. À maneira dele. Não tinha ciúmes da tua mãe?
A RAPARIGA  Mais que uma vez lhe bateu. Pelo menos uma vez nós assistimos. De resto, ela era muito vistosa, uma mulher espectacular. Agora...agora está um farrapo...desmazelada...isso revolta-me.
      Percebo.
     Estás a perceber tudo. Quem me dera perceber metade.
     Fugiste de casa alguma vez?
A RAPARIGA Sim, mais que uma vez. Não era bem fugir. Por exemplo, quando estávamos no início da adolescência, o meu irmão é mais novo três anos, bom, eu era um bocado mais crescida, íamos para as discotecas e só voltávamos de manhã. Mas antes disso já havíamos feito muita tropelia..
    Para chatear o papá, sobretudo.
A RAPARIGA  Suponho. Assim, pelo menos, ele acordava para a merda que andava a fazer.
    Então, não se fala assim dos nossos pais!
A RAPARIGA  Desculpa!
   Com certeza que ele gostava de vós. Os filhos têm a tendência para culpar de tudo os pais. Se calhar tu e o teu irmão tinham cá um destes temperamentos!  E a mãe, não teve responsabilidade alguma?
     Claro, mas é no Pai que se bate.
A RAPARIGA  Acho que ela se foi viciando no jogo para fugir das frustrações que ele lhe provocava.
    Provavelmente. E ele refugiava-se em contrapartida em qualquer outra coisa. Um círculo vicioso. Impotência de um e de outro. Ouve uma coisa, tu tens conhecimento de que há pouco estavas a começar a ter um ataque de pânico?
A RAPARIGA  Claro. Cada vez vou tendo mais. Foi do hospital que saí precisamente hoje, quero dizer ontem! até já perdi a noção do tempo (pausa) Sofri uma ataque horrível e levaram-me lá...
  Que pena tenho desta mocinha...Anda cheia de medo de sofrer outro...Pânico de entrar em pânico. Que loucos que nós somos!
   (Para o companheiro.) E só descobriste agora? (Para a rapariga.) Quando é que tu tiveste o primeiro ataque de pânico, lembras-te?
A RAPARIGA   Não me lembro exactamente, também já me perguntaram isso, mas era muito nova com certeza, aí com uns oito ou nove anos. O pior que passei foi quando rompi com ele (pausa)  Sim, porque fui eu que rompi, não aguentei mais... esse período foi muito difícil...estive muito doente.
        Coitada da mocinha!
      (Falando para si próprio) Humm...( Para a rapariga.) Desejaste morrer, provavelmente sofreste de alguma paralisia temporária dos membros?...cegueira?...perdeste algum cabelo?..
A RAPARIGA  É verdade. Tu sabes muito!
2º.    É, o meu companheiro é um Sherlock Holmes ignorado.
  A experiência ensina. No tempo da ditadura - antes do 25 de Abril, minha menina!- soube de camaradas meus que sofreram de distúrbios incríveis por terem sido vítimas das torturas da pide.
( Ironicamente.)  Bem, bem, o ex desta mocinha, o senhor X, o grande ausente-presente desta conversa, não é propriamente um agente da pide.
  Brincas. Sem ofensa, o que é que a Marta saberá que foram, o que fizeram esses torcionários? Referia-me naturalmente aos casos, por exemplo, em que eles privavam do sono os presos políticos. Salvaguardadas estas enormes diferenças, reconheçamos, porém, que o tal senhor X torturava a namorada à sua maneira.
 Tens razão. Há por aí muita gente a torturar muita gente.
  Não sou dos que duvidam de que os machos torturam mais que o género oposto...
  Pois. Com o preconceito de que elas são o género oposto, vão torturando-as...
  Bem visto, camarada, vinte valores! Mas estava a lembrar-me daquele escândalo no Iraque, aquelas torturas que guardas norte-americanos exerceram sobre prisioneiros iraquianos...
Ah, já percebo!, um deles era uma mulher, exacto, a fotografia da safada correu mundo.
A RAPARIGA  Bem se vê que sois pessoas cultas e bem formadas. Ainda estou para perceber  porque razão andais...
   Porque somos vagabundos? Razões existenciais, minha filha, filosóficas. Muito complicado.
    Para mim foi ficar livre, ser livre. Quanto mais pobre, mais livre. Não tenho horários para cumprir, como dizia o Poeta.
      Então foste tu que rompeste o noivado, chamemo-lhe assim.
A RAPARIGA    Fui.
   Não estavas completamente apaixonada por ele? Pelo que te sucedeu em consequência, não há dúvidas sobre isso.
A RAPARIGA  Não aguentei mais a situação; quero dizer, ele era insuportável...Tratava-me mal...Chamava-me nomes feios, gritava comigo, não sei se percebes.
     Calculo. Censurava-te mais do que elogiava.
A RAPARIGA  Eu, na boca dele, era uma garota que ele não tinha paciência para educar, chamou-me burra até, e mais...
     E tu, ficavas no teu canto, suponho. Sentias-te mesmo uma mulher mal crescida e desajeitada. Duvidavas de ti mesma.
A RAPARIGA  Sim. E chorava. Ás vezes nem me conseguia olhar ao espelho.
   Dizia que não prestavas nem como mulher, ou quase. Que tinhas um corpo ...qualquer coisa assim.
A RAPARIGA (Surpreendida.) Como é que advinhas tudo?? Exactamente: só via defeitos no meu corpo.
     O meu companheiro advinha tudo, e não é bruxo.
    Não, não adivinho tudo; deduzo apenas. Não achas que na realidade o tipo era um fraco?
   Se calhar. Pois, se calhar...quem inferioriza assim a mulher que o ama, ou é um fraco ou um grandíssimo estúpido.
  Parece, parece...mas estamos apenas a dar palpites. E já agora dou mais um: esse desapreço dele em relação a ti, das duas uma: ou ele andava interessado noutra mulher, ou sentia no fundo uma grande insegurança. Faz lembrar a fábula da raposa e das uvas...
Ora bem, talvez esteja aí realmente a chave do enigma: como a raposa não tinha pedalada para chegar às uvas apetecíveis, desatou a dizer mal delas!
  Quem não domina algo, dá-lhe pontapés.
  Nem todos. Tu e eu não agimos assim. Comportaste-te desse modo alguma vez?
  Com certeza. Simplesmente tinha apenas cinco anos!
A Rapariga   As coisas que vocês dizem! O meu irmão nunca mas soube dizer...nem a minha mãe.
   Bom, isto é apenas um supúnhamos, como dizia o outro...Presumo que também sexualmente as coisas não marchavam bem com o dito cujo...se é que não te custa falar nisso, por nós, fica à vontade, se fossemos violadores já te havíamos violado.
    Credo, ó homem! A pobre rapariga...
A RAPARIGA  No aspecto que referiste, muito mal.
    E alguma vez pensaste que o erro disso também podia encontrar-se em ti? Não continuaste a cometê-lo com outros, vamos lá: com outro, depois dele?
A RAPARIGA  Sim e não. Tenho um bocado de vergonha de falar nisso.
  Com certeza. Mas eu sei que a intenção do meu companheiro é pura.
  Meu caro, se bebêssemos apenas água completamente pura, morríamos...Bom, e agora que fazemos? Ou melhor, que pretendes fazer tu? Queres e não queres, é claro. Ouve uma coisa: não aconteceu recentemente algum facto, digo eu, uma violenta ciumeira da tua parte, por exemplo?
A RAPARIGA  Não sou ciumenta. Não suportei foi aquilo...dele a haver convidado para trabalharem ambos no estrangeiro (pausa) Duas semanas.
    Ela, ah! sempre temos uma ela!
   Mas é claro. Temos sempre mais alguém. Nunca falta o trio. Expliquemo-nos: o senhor tem uma namorada, provavelmente já a tinha quando ainda te levava para a cama – não me leves a mal, mas temos de ser directos e objectivos - se é que não continuou a levar-te sempre que lhe apeteceu...Não te aflijas, não precisas de responder! O que sucedeu é que, depois da ruptura, continuaram juntos, a trabalhar juntos, «querido» para aqui, «querido» para acolá, as coisas funcionavam numa espécie de espera, ou de tréguas, arranjaste outro namorado com certeza...
A RAPARIGA   É verdade, continuas a acertar. Na verdade, não rompi a relação só há dias...
    Minha filha, é tão óbvio, tão igual! O comportamento humano repete-se com uma frequência fastidiosa. Tudo é vulgar. Julgamo-nos uns mártires e umas vítimas excepcionais, quando, na verdade, neste mesmo instante uma multidão de outros fazem o mesmo, sentem o mesmo, sofrem o mesmo.
    Nem sempre da mesma maneira. Tu não passaste por isto.
   Mas passaste tu. É claro que o modo de reagir não é idêntico em todo o mundo. O nosso temperamento, o tipo de cultura, tudo bem ou mal cozinhado resulta naquilo que somos. Dito assim é uma banalidade. Mas ataquemos o caso concreto da nossa menina; vou avançar com mais um palpite: ela fez o mesmo que muitas fazem: projectou no tal senhor tiranete o seu paizinho!
A RAPARIGA  Nunca pensei em tal coisa!
   Pois não. Aliás, não és a única. Mesmo os mais inteligentes e cultos fazem exactamente a mesma coisa, e não se dão conta. Não quero magoar-te, mas vou ser um pouco bruto: pedinchaste o amor dele como desejavas ter tido o amor exclusivo do papá! O dito senhor educou-te, sem aspas, como costuma proceder um papá que é demasiado parvo para perceber quando uma filha está a crescer, ou demasiado egoísta! Tratava-te desajeitadamente, até com aqueles excessos de cólera que viste, se calhar, no teu papá impaciente...enfim, convenhamos que o tipo exagerou. O gajo também deve andar em busca de alguma coisa que não teve. Provavelmente da mamã. E vou dizer-te outra coisa de que não vais gostar mesmo nada.
A RAPARIGA  Ai, o quê?
Toma isto que vou dizer como um palpite e não como uma fatalidade: tu estás a reproduzir o casamento dos teus pais.
A RAPARIGA  Essa é forte!
  Tem lógica, temos de reconhecer. Aqui o nosso companheiro pode ser mais perspicaz do que eu, e é com certeza absoluta, mas eu também li alguma coisa. Talvez os sintomas da tua, e da minha doença, sejam mensageiros de um significado...
  E só venham a desaparecer quando a sua mensagem for compreendida! Obrigado. Com esse estímulo que tu me dás até me apetece afirmar peremptoriamente que somos tentados a reproduzir, e não me refiro à reprodução sexual...
  Percebo. Uma certa pessoa notável costumava dizer: quando tencionares casar-te, olha para a filha com mais vinte anos em cima e verás a mãe dela!
  Ora bem, é mais ou menos isso. É claro que não estou a referir-me apenas ao aspecto físico. Em suma, e reconheço que é duro ouvir isto, se a nossa menina não se põe a pau, mergulha em paixões tristes. Em vez de desviar-se desse buraco, cai nele. Comparemos com umanestrada que temos de abrir à força dos braços, e uma ponte que se oferece para nos encurtar o caminho...
(A rapariga escuta com profunda atenção.)
A RAPARIGA  Custa a acreditar. Perturba-me imenso ouvir isso. Então se o que vi e vivi me traumatizou tanto, como é que é possível que eu repita? Escolho sempre a mesma ponte??
  Escolhes exactamente por causa do recalcado. O teu inconsciente leva-te com uma trela se não lhe fizeres uma limpeza. Precisamos de limpar a chaminé de vez em quando, não é senhor professor?

(Subitamente a rapariga e o 2º vagabundo ficam especados, paralisados, com o terror estampado nos rostos, fixando o olhar no exterior do casebre.)
A RAPARIGA    Meu Deus, meu Deus! Está atrás de ti uma coisa!..
      Uma coisa, ó sim, um vulto! Vem para dentro, foge!
  ( O 1º vagabundo dá um valente salto para o interior, mas voltando-se imediatamente para a abertura, em posição de ataque.)
    He lá, o que é que se passa, eu fodo já o primeiro que se atrever! Eu fodo-o já! (como nada vê, aproxima-se lentamente da abertura, salta para o exterior com surpreendente agilidade. Demora-se. Os outros estão agarrados um ao outro. Regressa.)
     Nada. Não há nada lá fora, meus queridos, nada, nadinha. Os meninos andam com alucinações.
    (tremendamente confundido.) Mas eu vi...eu vi um indivíduo...que me fez lembrar alguém...
A RAPARIGA  Eu também vi! Vi-o a ele!
     Ele quem, porra!
A RAPARIGA  O meu ex, o tal!
   Foda-se...Agora passamos para os delírios...E eu que não tenho Xanax nem coisa nenhuma. Vamos todos mas é lá para fora, e já!
( Não queriam, mas ele arrastou-os para o exterior.)
    (Autoritário.) Onde é que se escondeu o espectro, ah? O fantasma, ah? Esperem lá, lembrei-me de uma coisa! Deixem-se ficar aí, que eu volto já.
A rapariga e o 2º ( Em uníssono.)    Não demores!

( O 1º dirigiu-se ao automóvel acidentado, remexeu no porta-luvas e trouxe de lá uma garrafa de uísque.)
    Meus queridos, arrebitem! Trago-vos um presente, uma dádiva dos deuses: a água da vida!
 ( Beberam da garrafa, à vez. A rapariga mais do que os outros. O efeito demorou pouco tempo a manifestar-se.)
     He pá, estás a bebê-la toda, deixa alguma coisa para a gente! (Ri-se muito)
A RAPARIGA     Deixa, deixa, seu bebedor! Seu safadinho! Sabes que és lindo?
    (Mais sóbrio que os outros.) Algumas mo disseram, mas agora, minha filha, estou velho!
A RAPARIGA (  Começa a mostrar sinais de embriaguez.)   Qual velho, tu não és velho! És muito interessante, e aqui o nosso amigo também um bocadito. Quantas mulheres já tiveste, meu querido (pausa) amigo?
    Não conto mulheres, só euros. Meninos, vou contar uma história, muito pequenina e muito gira!
A RAPARIGA  (Batendo palmas.) Conta, conta!
     ( Bate com um pau no chão três vezes, a simular a abertura do teatro. ) Oiçam, oiçam, a maravilhosa história da bela Perséfone! Oiçam, crianças! (Pausa. Teatral.) Estava a bela e virgem Perséfone penteando seus cabelos, sentada de pernas abertas num campo de margaridas, quando viu Adónis, e imediatamente por ele se apaixonou; a ele caiu-lhe a baba da boca quando filou o suculento fruto que a virgem mal escondia entre as belas coxas. Porém, Adónis, era na verdade o seu tio Hades disfarçado, o deus dos mortos e do Inferno, que logo para lá a levou é claro. A mãe da Virgem ficou desesperada e exigiu a Zeus que a filha lhe fosse restituída. O deus dos deuses acabou por dar seguimento às súplicas, pois a senhora moía-lhe o juízo a toda a hora, e chamou Hades à ordem: « Ou libertas Perséfone, ou  dou-te cabo dos cornos!»  Contudo, o deus dos mortos somente o poderia fazer se Perséfone não tivesse ingerido alimento algum no Inferno; ora, a menina-mulher  já havia comido um bago de romã, o que cá para nós que ninguém nos ouve, significava que Perséfone já não tinha os três. Estava, portanto, condenada definitivamente. Na mente augusta de Zeus faiscou uma solução de compromisso: Perséfone partilharia o ano entre o reino do Inferno e sua mãe, ou seja, a liberdade cá fora no quentinho. Assim, quando ela sobe, começa a Primavera; quando ela desce, começa o inverno, a estação triste e estéril!...Gostaram, meus filhos?
A RAPARIGA (Batendo palmas. O 2º também aplaude.) Adorei!
   Espero que quando te passar o pifão, este mito te ajude a conheceres-te a ti mesma. De ora em diante chamar-te-ás Perséfone! Ordens de Zeus! Eu sou Hermes, seu mensageiro!
A RAPARIGA  Viva a Perséfone, morra a Marta!
   Então que o teu ex vá prá puta que o pariu! Pró inferno já com ele!
A RAPARIGA    Prá puta que o pariu! Já aprendi muito contigo. Tenho cá uma destas admirações por ti, nem calculas! És forte, inteligente, entras na alma da gente!
    Até rima. Meninos, vamos todos imaginar uma cena!
A RAPARIGA   Vamos, vamos!
   (Retira do bornal uma vela de cera. Acende-a. Coloca-a em cima de um caixote. Tapa o rosto com um lenço. Cobre-se com a manta.) Eu sou o feiticeiro bom! (Transforma a voz.) Concentrai em mim os vossos olhos terrestres, ó criaturas! (Deixa tombar, sobre a chama da vela, um punhado de pó que arde estralejando.) Òóóó!! Uhhhhh!! (Imita movimentos de xamã.) Já vejo! Já vejo uma águia com as asa abertas, tão grande, tão imensa, que cobre o céu! Óóó, uhhhh! Ó Grande Pássaro, protege-nos! Vede, vede, ó criaturas, como a águia nos arrebata do chão pesado e nos conduz para o ar leve! Voemos (Move os braços como asas.) Voemos! Ó como tudo é limpo cá em cima! Tantas cores, tantas luzes!
( A rapariga está fascinada. Participa completamente no encantamento. Entra num estado de transe. Executa movimentos desordenados com intensa emoção. O bate com os pés no chão consecutivamente.)
  Voamos tão alto! Não há mal que entre nos nossos corações! ( (Retira o lenço do rosto e espaneja-o em movimentos largos e repetidos. Executa-os cada vez mais perto do rosto da rapariga.)  Vai-te ó mal, sai de nós para longe e não voltes mais! Vai-te!  (Ergue a rapariga do chão e dança com ela ao colo.)
A RAPARIGA  (Saindo do transe.) Quero dançar, apetece-me dançar! Sinto-me nas nuvens, vou dançar, sabes que eu costumo dançar muito quando estou sozinha? (Põe-se a dançar com grande voluptuosidade.)
    Que bem que dança! E que corpo, que sensualidade!
    Não te ponhas com ideias, ó camarada! O que estamos a ver é apenas uma mulher bêbada, aliás, duas pessoas bêbadas, tu também estás de caixão à cova.
   (Levantado –com dificuldade - em atitude declamatória.) Então estou bêbado! Viva a alegre loucura quando a razão só traz tristeza! Viva a vida que Deus nos deu, quero dizer, os deuses, ou melhor, qualquer coisa nos deu! A Gabriela que vá pró raio que a parta mais o idiota do gajo que a anda a comer! Quem primeiro a comeu fui eu, ora bem!
(Falando em surdina.) É curioso, nunca lhe ouvi uma asneira...
    ...A Terra é esférica e anda à volta do sol, a lua é um calhau mas na lua-cheia fico com um tesão dos diabos! Ah, como é porreiro dizer asneiras! Vomitar esta merda toda que trago cá dentro! Que se lixe. Quando morrermos vamos prá cova, sete palmos de terra. Aqueles biltres fodiam-me o juízo, os filhos dos outros, estão a ver? E as vacas das mães deles, com as devidas e ponderadas excepções. Sabem qual foi o meu mal, qual é o meu mal? Não sabem? Eu também não. Pois então explico-vos, meus queridos comparsas, o que fiz, o que faço: amnésia, amnésia total, ou seja, não recordo nada, mas mesmo nada! Nem sei sequer quem sou, quem realmente fui! Zás, catrapás, foi-se! A Terra é grande e eu sou medíocre. Tão pequenino que não sou nada. Quando esticar o pernil quero uma cova bem funda!
(Canta com voz avinagrada.)  Quando morrer
enterrem-me bem fundo,
para que eu acredite,
que estou no centro do mundo!

Fui palhaço e tutor,
Estive sempre nas bordas do mundo,
Fosse antes uma grande estupor,
E não teria ido ao fundo!

Quando eu morrer,
Enterrem-me bem fundo
Tralálá, tralalá!

(A rapariga tira o casaquinho de lã, fica com uma leve blusa , já aberta no colo, desalinhada.)
   Isso, isso! Descalça-te! (Em jeito de desculpa para o companheiro.) Adoro os pés das mulheres!
( O observa-a, numa atitude apreciativa. A rapariga descalça-se. O movimento das ancas é sensual.)
  Ò minha querida, tu danças como a Salomé antes de cortar a cabeça ao santo! ( Levanta-se e dança com ela, com energia, uma espécie de tango. A rapariga olha-o nos olhos, desafiadora, a seduzir o homem.)
A RAPARIGA  E tu também danças! Hhuum... não tens medo de perder a cabeça?
  Com o meu companheiro ao pé não a perco não...
( A rapariga despe a blusa. O está com os olhos esbugalhados. O está contido, o olhar fixo nos olhos dela. Quando a rapariga se prepara para despir o soutien, ele trava-lhe a mão.)
   Chega, minha querida! Agora dança até caíres de cansaço!
A RAPARIGA (Tropeça. Murmura.) Sabes, adorava ser bailarina. Adorava ser...

(  Roxo sai para o exterior. Olha para o firmamento por uns momentos. Depois fala para a escuridão, que, entretanto, já clareava com os primeiros raios da aurora.)

   Perturbou-me...conseguiu perturbar-me... Somos um corpo que sente e pensa o que sente. As minhas ideias são as ideias que o meu corpo tem. O resto são tretas. Princípios e valores sem carne e osso não são mais do que meras palavras. Eros, o governante impertinente e impositivo! Porque haveria de surpreender-me com a paixão triste da Marta? Um ser humano inteligente e dotado que sofre passivamente uma espécie de escravidão. Que posso fazer por ela? Quase nada. Somente um hábito mais forte pode substituir outro hábito, somente uma paixão positiva mais potente nos liberta de uma paixão negativa. É mais fácil dizer do que fazer. Ainda bem que ela agora esgrime a sedução como uma íman. Instintivamente ela reconhece o homem no indivíduo que a protege, o masculino com as suas fraquezas. Pelo outro foi humilhada, por mim julga-se levantada. Tiago defende-se com o remédio do esquecimento, mas a Marta salva-se porventura se representar no palco da vida um papel diferente. (pausa)
A ansiedade é universal. O tempo cura uma dor, para que a Dor continue. Sofre-se quando se nasce, sofre-se quando se ama, vamos morrendo até à morte final. A mim, quanto tempo me resta? Quando é que voltarei a ter nos braços uma mulher jovem e bonita, dançando para mim? (Pausa.) Para me agradecer... O que é que eu sinto, o que é que ela me faz sentir? Compaixão? Estaria eu tão desperto se ela fosse uma velha desdentada? Pois seja: que ela se exprima com o seu bonito corpo, não é ela uma actriz? Que existência real possui um actor sem um corpo?...Mas tudo passa. Amanhã estará sóbria. Depois lembrar-se-á de mim de vez em quando. Voltará ou não voltará ao  amante? Ao jogo do gato e do rato? Quem é o rato? O mais certo é voltar, porque o jogo é o veneno que sabe ao mel. O drama continua, a menos que o masoquismo possua um limite. (Pausa) ( Dirige-se ao público.) Encenamos a morte e o mais negro desejo. Encenamos a ponte que tão fortemente os une.
Uma paixão funesta que não vale a ponta de um caracol comparada com a multidão de cadáveres no Iraque, a multidão de esfomeados no Sudão, a multidão de meninos a fazerem-se homens nas sarjetas e nas oficinas! Mas nela é tudo. Porque a sua dor faz dela o centro do mundo. É assim. Tudo passa, somente a guerra, a fome, a miséria, o sofrimento, a crueldade permanecem, acaba ali, recomeça acolá. Para quê tanta ilusão triste se a realidade bastava? Por uma razão muito simples: porque não suportamos a realidade.
(Recita.) «A vossa razão e a vossa paixão são o leme e as velas da vossa alma navegante.
           Se as vossas velas se rasgarem ou o vosso leme se romper, mais não podeis fazer se não andar aos balanços à deriva, ou ficar imóvel ao largo dos mares.
           Pois a razão, governando sozinha, é uma força restritiva; e a paixão sem controlo é uma chama que queima para vossa própria destruição.
           Possa então a vossa alma exaltar a vossa razão até à altitude da paixão e que ela cante;
           E possa ele, pela razão, governar a vossa paixão, e que a vossa paixão viva pela sua própria ressurreição quotidiana e, qual Fénix, se eleve acima das suas próprias cinzas.»
 (Apura o ouvido. Uma coruja chama um parceiro. Um cão uiva ao longe com um cio urgente. Uns passos no matagal. Estremece
  Que quero eu afinal? Quem me procura a mim? Também eu já oiço passos... Desinteressei-me de tudo, renunciei a tudo, tanto ao mal como ao bem. ( Pausa.) Está a pôr-se frio. Por hoje assustei a solidão.( Pausa) O teatro não imita a vida. Talvez fosse bem melhor que a vida imitasse o teatro. Onde cada um inventasse sempre novos papeis.


3º ACTO


( O 1º vagabundo desperta. Espreguiça-se, olha para os companheiros que ainda dormem a sono solto. Sorri com complacência. Esfrega os olhos. Olha o fundo da garrafa de uísque, e volta a sorrir. Ergue-se e dirige-se para o exterior do casebre. A manhã vai alta.)

    Porra, mas que é isto?? (Boquiaberto: no chão encontram-se os cadáveres do automóvel desfeito.)  Não é possível! Estarei ainda bêbado? Nunca me julguei tão bêbado! (Mexe e remexe os cadáveres. Belisca-se. Cerra os olhos para se controlar.)
Raios me partam! Não há dúvida que esta merda está mesmo aqui! Alguém os trouxe. Alguém nos persegue. Que estão mortos e já cheiram mal, não há dúvida nenhuma!

(O 2º tinha, entretanto, assomado à porta. Está estarrecido a contemplar o espectáculo. O vira-se para trás e encara- o.)

  Aguenta camarada! Isto está complicado, mas tem de haver uma explicação lógica. Tenho de encontrar uma explicação para esta merda. Não há mistério que não se solucione. Tem calma. Anda cá!
(O vagabundo continua estarrecido. Balbucia qualquer coisa. Por fim, consegue articular.)
    Mas...mas....é a Gabriela...o marido... (Cambaleia. O acorre e segura- o. Abana- o .)
1º Aguenta-te camarada! Qual Gabriela! Ainda não curaste a bebedeira, acorda! (Agarra-o e coloca-o à sua frente.) Olha bem. Pouco se aproveita dele: como é possível veres neste corpo desfigurado a madame Gabriela? Ah? Estás com paranóias ou quê? Mas vamos tirar as dúvidas. Deixei lá a carteira dele, espera aqui, volto já.
    Não, quero ir contigo!
    Está bem. (Espreita para o interior do casebre: a rapariga continua a dormir. Desaparecem do palco. Reaparecem.)
    Está resolvido o teu problema (Mostra a carteira.) Ele chama-se Adalberto da Cruz e Silva, ela, Maria da Luz Fonseca. O falecido era técnico de informática, um gajo novo. Aqui tens: nem gabrielas nem maridos!
   Certo. Está bem. Mas havia qualquer coisa neles que me faziam lembrar...Bem, sejamos fortes!... e agora, o mistério?
    Sim, o mistério. Falecidos como estão, não poderiam ter sido eles a arrastarem-se para aqui. Portanto, foi alguém que o fez. Ou talvez os cães vadios. É isso, foram com certeza cães vadios! Acho que serve bem como solução do enigma.
     ( Voltando-se.) Meus Deus, a rapariga!
( A rapariga está estendida no exterior. Sangra da cabeça.)
     Foda-se!  (Segura-a nos braços. Ergue-a. Volta a colocá-la no chão. Corre a buscar água a um ribeiro ali ao pé - imaginar a cena com dispositivos cénicos - Molha um lenço. Humedece a testa da rapariga.)
 Vá, reage mulher, reage! (Dá-lhe palmadinhas no rosto. A rapariga desperta do desmaio. Mostra-se aterrorizada. Agarra-se violentamente a ele.)
A RAPARIGA   É ele, é ele!
     Lá voltamos nós à mesma merda! (Procurando infundir calma.) Olha bem! Estão quase irreconhecíveis. Apenas vejo que era gente de pouco mais de trinta anos, um pouco do cabelo, menos que metade do rosto. Eu conheci a Gabriela e esta não é a Gabriela. E o teu gajo, ou ex gajo, é mais velho. De resto, temos aqui o nome deles. (Tira a carteira.) Ele chama-se Adalberto?
A RAPARIGA    Não.
     E ela, chama-se Maria da Luz?
A RAPARIGA    Não.
    Então, estás a ver apenas o que não queres. Ou, pensando bem, o que tu desejavas que fosse. Que o gaja e a gaja estivessem bem mortos e falecidos. Já pensaste nisso? Ora pensa. E tu também, ó camarada! Também estou a falar para ti!
A RAPARIGA (Ergue-se. Apalpa a ferida na cabeça.) Não desejo a morte deles...
      Eu, muito menos desejo a morte da mãe da minha filha...
     Tu, minha querida actriz, tu desejas, ai que não desejas!, embora não a queiras de verdade. Pelo menos não os matarás. Aqui o meu camarada, que não tem decididamente estômago para uma bebedeira, a única coisa de que se lembra da merda da vida é da cara da Gabriela...(Pausa.) Bom, vamos lá tratar dessa ferida! (Humedece e limpa a ferida ligeira.) Pronto, ficas boa num instante. Agora o que vamos fazer é o seguinte: pirarmo-nos daqui e depressa. Dar corda aos sapatos! Se nos encontram com estes falecidos, estamos fodidos, quero dizer, fritos!

( Afastam-se depressa, a rapariga e o 2º com alguma dificuldade. O auxilia-os .Sob o escuro os corpos e o casebre desaparecem. Estão agora sentados ao pé de uma  ribanceira na margem de um rio profundo.)

     Que mistérios! Nas últimas horas aconteceram-nos mais coisas que num ano inteiro!
      Num ano inteiro tivemos sossego. Nada aconteceu, porque tivemos sossego. Foi naquela curva do caminho que tudo começou.
A RAPARIGA (Mostra-se transida. Frio e medo. Tem convulsões. ) Quando eu vos apareci, eu sei. Foi tudo por culpa minha. Peço tantas desculpas! (Chora.)
     Não, não, minha querida, não! Não foste tu, de modo nenhum! O que tinha de acontecer, aconteceu, só isso!
    (Como falando para si mesmo. ) Este agora vem com destinos e fatalidades!
    O que disseste?
    Nada, nada. A Marta evidentemente que não provocou tudo isto, pelo menos o desastre daqueles desgraçados.
A RAPARIGA  Quem sabe?
   (Anda de um lado para o outro. Desorientado. Nervoso.) Não, não, não teve culpa nenhuma. Mas parecia-me a Gabriela...Que Deus me perdoe, mas parecia mesmo ela. Tenho de lhe telefonar... tenho de saber...Estou cansado, ó como estou tão cansado!
    Estamos todos. Também, depois de uma piela daquelas! Ó camarada, aguenta firme! Escusas de telefonar, já sabes que não é ela. Que é feita da tua inteligência, da tua cultura? Juízo, homem, juízo! (Mas mostra-se preocupado.)
( A rapariga aproxima-se perigosamente da ribanceira. Fica a olhar para baixo, para as rochas, para as águas escuras do rio.)

    Mesmo assim devia telefonar-lhe... Já não lhe telefono há tanto tempo... Nem sei nada da minha filha, da minha querida menina... Já namora, eu sei, já namora, é boa estudante, já namora, a minha filhinha...(Agarra a cabeça com ambas as mãos. Não pára de andar de um lado para o outro.) A culpa foi minha, claro que foi minha. Foi sempre minha a culpa. Metia-me nos livros, encafuava-me nos livros, na preparação das aulas... mudavam-me de escola...longe, sempre longe...Um dia tinha de acontecer.
    Não penses nisso, camarada. Vamos mas é arranjar com que se afie o dente.
(De repente, a rapariga parece querer saltar da ribanceira. O agarra-a .)
   Alto aí, menina! Nada de loucuras, o.k.?
A RAPARIGA  Deixa-me, deixa-me! Só me apetece morrer!
   Não morrerás hoje, que eu não deixo. Vais ver: amanhã será outro dia. Recomeças a trabalhar, encontras logo quem te queira, não te faltarão gajos. E teatro, muito teatro! Porque é nisso que tu és valiosa para a humanidade, ouviste! Para a humanidade e para ti! Afinal, és Perséfone ou a Marta?
A RAPARIGA  Não quero ser a Perséfone! Não quero partilhar a minha vida entre o céu e o inferno! Mais vale vencer o meu destino matando-me!
  Ah, pudéssemos nós apagar a memória com uma esponja!
  Não podemos varrê-la, mas podemos integrá-la naquilo que somos. Torna-te no que és, Marta: uma artista que incendeia o coração e a mente de um público ansioso! E tu, meu querido camarada, torna-te no mestre sensível, honesto e bondoso que na verdade és!

 

 

IV  ACTO



( Escondem-se numa antigo palacete abandonado, em um dos lados do palco coloca-se uma placa com a palavra «Vende-se». O cenário deve representar o antigo palacete e o seu abandono, dando a sugestão de degradação, velhice, memórias das vidas que ali habitaram através de sinais. Chove copiosamente lá fora.)

A RAPARIGA   O Roxo desapareceu, nunca mais volta para nós!
  Qual quê, volta sim. Foi com toda a certeza comprar víveres para a gente.
A RAPARIGA  Dois estranhos vagabundos...
  Três.
A RAPARIGA  Pois. Eu partirei, hoje ou amanhã. Vós sois aquilo que escolhestes.
  É verdade. Tu irás embora necessariamente. Tens recebido muitas chamadas no telemóvel?
A RAPARIGA  Dos meus pais, do meu irmão, do meu namorado, muitas. Estão preocupadíssimos.
E que lhes tens dito?
A RAPARIGA  Que me encontro na casa de uma amiga. Na verdade eu até tenho um pequeno apartamento alugado; eles sabem que me refugio lá em certos períodos. Já não se admiram. Entretanto, gastou-se-me a bateria do telemóvel.
  É altura de te perguntar: como é que foste parar àquele sítio onde te encontrámos?
A RAPARIGA  Nem eu sei. Estive hospitalizada algumas horas por causa de um violento ataque de pânico, o Zé, o meu namorado...
  Não o ex...
A RAPARIGA   Claro, refiro-me ao actual, que é um excelente rapaz...
  E que ignora muita coisa da tua vida...
A RAPARIGA  Sabe bastante, mas não tudo, principalmente não se apercebe da atracção que o outro continua a exercer...é mais novo do que eu...Bom, dizia eu que o Zé esperou no hospital aquelas horas todas, e levou-me naturalmente para casa dele. No dia seguinte senti-me horrivelmente sufocada, oprimida, não tinha perto de mim ninguém capaz de me ouvir, com quem pudesse desabafar, que fosse capaz de me dar um auxílio que eu já não conseguia encontrar no Zé, no meu irmão, e muito menos nos meus pais...
Que sempre te aconselharam a romperes com o outro, é claro.
A RAPARIGA  Certamente. Mas falta-lhes saúde e autoridade para me ajudarem nas decisões...
  Compreendo. O teu respeito por eles não é famoso, inclusivamente pelo teu irmão?
A RAPARIGA  Além de ser muito mais novo, é desbragado nas relações com sexo feminino...As mulheres para ele são objectos de que ele se serve e logo deita fora. Por isso não sabe fornecer outra explicação senão esta: o Carlos, o meu ex, serviu-se simplesmente de mim e quando se fartou deitou-me fora
    E tu, é claro, não queres que isso seja verdade.
A RAPARIGA  Não nego que isso possa ser verdade, mas tenho-me recusado a admitir. Como já te disse, continuamos a trabalhar juntos, eu também preciso dele por causa disso, de resto ele possui muitos e bons contactos, e o meu mundo é o dele, dos espectáculos...
  Pois, essas dependências, se calhar mútuas, transtornam completamente os teus sentimentos. Terás de te afirmar a ti própria, sem qualquer dependência. Não te resta outra saída.
A RAPARIGA  Claro que eu sei isso. Ou, pelo menos, às vezes percebo isso perfeitamente. Fui capaz de romper com (pausa) o namoro, digamos assim...mas nunca pensei seriamente em romper com aquilo que nos une.
   É o diabo. Essas coisas são de facto muito complicadas. Não é muito diferente de passarmos o resto das nossas vida a vermos semanalmente a mulher de quem nos divorciámos, por causa dos filhos. Até tudo passar com o tempo, é muito penoso. Mas este caso tem que ser mesmo assim, trata-se de seres inocentes que estão em jogo, agora o teu caso parece-me menos eterno.
A RAPARIGA  Quando sinto o que eu sinto, o presente é eterno. É como se estivesse engaiolada num cubo, sem portas e sem janelas.
  (Que já se encontrava à porta, em silêncio.)  Foste tu que te meteste nesse cubo, ou que o construíste à tua volta!
(A Rapariga assustas-se.)
A RAPARIGA  Poça, assustaste-me!
  Está bem, está bem, foi só um pequenino susto. Trago aqui a nossa comidinha neste saco.
E no outro?
Estou completamente encharcado. Lá fora é um dilúvio. Neste saco trago algumas roupas que comprei, para ti, para mim, e uma capa para a chuva, espero que gostes dela, Marta. (Retira e mostra.) Veste este casaco ó camarada! (O 2º enverga-o e dá uma volta sobre si próprio com ar trocista.) Maravilha! Acertei em cheio no teu tamanho! Para mim comprei este blusão (Veste-o .) Que acham?
A RAPARIGA  Óptimo. E é de marca! Ai, ai, estamos a ceder ao consumismo, ou quê?
    Estamos, estamos, sempre estivemos. Olha, para ti não comprei mais nada, é muito complicado comprar roupa de mulher...
A RAPARIGA  Não, deixa lá, não preciso. Aliás, eu vou-me embora daqui a pouco. Com essa capa tapo as nódoas. Só preciso mesmo é de um banho. Sinto-me horrivelmente suja.
  É fácil, vais lá fora com esta chuvada toda e lavas-te.
A RAPARIGA  Olha que até é um boa ideia! E não está frio.
    É uma boa ideia, sim senhor. Despes-te lá fora, pões a capa por cima e toca a andar! Entretanto, nós pomos esta lareira em acção. Temos aqui umas cadeiras velhas que vão servir muito bem.
 (A rapariga sai. Pouco depois solta pequenos gritos  quando a chuva cai com alguma violência sobre o corpo desnudo.)
     Então decidiste que devíamos regressar à civilização?
     Para ti não tenho dúvidas de que era o melhor.
     Pois. Realmente tenho que me apresentar novamente à Junta Média, sou obrigado quer queira quer não queira, senão perco tudo.
    Aí está. E fores dado como apto para algum serviço mais leve, tens de voltar ao teu mundo. E como não estás completamente maluco...
    Ai sim? Mas já estou um bocado?
  Não estou a brincar com coisas sérias. Não sou médico nem coisa nenhuma, mas tens problemas de saúde que necessitam de tratamento. Aliás, vejo-te poucas melhoras nessa espécie de trauma em que tu vives. Tens de te reconciliar com a tua profissão, em primeiro lugar...o resto há de vir com a passagem do tempo.
    Portanto, segundo a tua opinião, tenho vivido este último ano como se tivesse sido umas férias.
    De alguma maneira até foi. O mês de férias que as pessoas gozam não serve de facto como aquela separação necessária para retomar a realidade? Não poderás tu reconciliares-te com a Gabriela?
    Não há hipótese.
    Porquê??
    Primeiro, do meu lado, o amor ficou ferido de morte...
    Ora, ora, uma grande ferida também se cura.
    Era uma prova, um desafio demasiado grande para mim; e depois, há uma razão de monta: já estamos separados há dois anos, e ela casou com outro... Como queres que seja possível??
   Enfim, assim seja. Um parêntesis: anda por aí basta polícia...
   Não à procura da gente...
   Claro que não. Devem andar à procura dos cadáveres...mas isso já foi de manhãzinha cedo, quando saí, entretanto já devem ter resolvido o imbróglio.
   Portentoso mistério...esse dos cadáveres!
 (A rapariga entra, embrulhada na capa.)
A RAPARIGA  Até que não está frio. Está fixe! Posso colocar aí a roupa a secar?
(O Roxo ajuda-a a colocar a roupa interior perto do lume.)
   Rapariga do século vinte e um: prega com a roupa íntima a secar à frente dos olhos de dois marmanjos e pronto!
A RAPARIGA  Se te incomoda eu tiro-as! (Ri-se.)
  Todas encharcadas não incomodam a nossa líbido. Olhem lá, de que é que falavam quando eu cheguei lá de fora?
A RAPARIGA  Estava a relatar o sucedido comigo, como é que fui parar àquele sítio onde me encontraram...
   E então?
A RAPARIGA  Então foi que, como eu dizia ao Tiago, depois de sair do hospital...
   Com o grande ataque de pânico que sofreste...
A RAPARIGA  Exacto. O Zé levou-me para casa dele...o meu namorado...mas no dia seguinte , estava ele ainda a dormir  - costumamos deitarmo-nos muito tarde -, não sei se eu estava acordada ou se estava a dormir, quase não me lembro o que fiz, vesti-me, saí e nem me lembrei que tinha o meu carro ali à porta, pus-me a andar como um autómato, saí da vila – que é relativamente pequena - vi-me em plena estrada a circular ao lado dos carros...um carro parou ao meu lado, dois senhores ofereceram-me boleia, acharam com certeza que eu não ia lá muito bem...
    E tu aceitaste?? Confiaste em dois tipos desconhecidos??
A RAPARIGA   Ora, eu sabia lá o que fazia! Já te disse que era um autêntico autómato, devia estar sonâmbula. Bem, nada de mal aconteceu, no caminho eles só falavam de assuntos que não percebia... tinha o cérebro bloqueado...quando se encontravam perto do destino, uma elegante vivenda, eu pedi para sair...
   E eles, o que disseram eles?
A RAPARIGA  Qualquer coisa como «Você não está nada bem, porque não nos deixa levá-la ao hospital?», até me ofereceram hospitalidade em casa deles...arranjei uma desculpa qualquer, e pronto...foi aí perto que os meus amigos me encontraram...acho que, entretanto, despertei completamente para a realidade.
   Para a realidade? Falta saber qual delas é.
   Credo, homem! Mas existem mesmo duas dimensões?? Encontramo-nos noutro mundo??
  Nem tanto assim, nem tanto assim. Referia-me à Marta. Ainda não se ajustou à realidade.
 A RAPARIGA  Perdi a coragem, é só isso. Tenho de regressar, talvez queira até regressar, mas tenho medo de ter medo...
  Expressão forte, Marta, expressão forte!
  Quem sofre de ataques de pânico, tem medo deles, não é compreensível?
A RAPARIGA   Se ele se transformasse num príncipe, beijá-lo-ia na boca, e talvez desaparecessem os pânicos...
  Vê lá se te sai um sapo outra vez. De qualquer modo, já sofrias de ataques antes dele. É esse fundo, esse lastro que tu carregas, que devias contra-atacar, já que falamos em ataques. E nenhum de nós, nem eu, nem o Tiago, e menos ainda tu, temos condições para te curar disso. Terás de regressar também e submeteres-te a um terapia rigorosa. Mas que sei eu dessas coisas?
  Já repararam na quantidade de objectos, de velharias, espalhadas pelos quartos desta mansão? Já percorri todas as divisões. Está tudo esburacado, estuques a cair, papel de parede rasgado, tanta coisa que devia ter sido de boa qualidade.
A RAPARIGA  Eu também já explorei uma parte. Não esquadrinhei tudo porque mete medo....tenho nojo das ratazanas...durante a noite nem sei como vou conseguir dormir. Encontrei uma coisa espectacular, vou mostrar-vos! (Traz uma boneca.) Não deve ter sido muito bonita? (Finge que a adormece ao colo.)
  Ah, deve ter sido o encanto de alguma criança! Alguma menina de cabelos loiros, com laçarotes...que se tornou mulher, teve filhos, netos talvez, e depois apagou-se.
  O teu instinto puxa-te para a maternidade, Marta. Está nos teus projectos?
A RAPARIGA  Até que gostava! Quando regressar vou ter uma conversa muito séria com o Zé, resolver a nossa situação...sei lá, talvez me case. Esta gente que viveu aqui deve ter sido mesmo muito rica!
   Ah sim, mesmo muito. Cá para mim a história deste palacete deve ter sido assim: viveram aqui sucessivas gerações; da última só restou uma mulher, que viu morrer todos os outros, e ficou só...
A RAPARIGA  Ou a família dispersou-se, foram viver para outros lugares, e abandonaram a senhora, muito velhinha...
  Que não quis largar a casa onde nascera...
  Se calhar ainda se encontra por aí o esqueleto.
A RAPARIGA  Jesus, a tua imaginação é mesmo negra! Já não saio mais deste salão!
  Pode ser que o esqueleto esteja aqui mesmo...
A RAPARIGA  Mau, estou a ficar com pele de galinha! Acho que vou dormir no meio de vós os dois...
  É mais sensato não o fazeres. Pelo menos eu não sou feito de pau.
  O mais perigoso serei eu, que tenho insónias. Tu cais a dormir que nem uma pedra.
  Com a Marta aconchegada a mim?? Vê lá, vê lá Marta! Não me responsabilizo!
A RAPARIGA  Uma ménage à trois. Ficariam felizes se isso acontecesse?
  Ai, ai, ó Marta! Nessas festanças não alinho! O que vale é que a Marta está a fazer teatro.
  O camarada Tiago ficou na pré-história. Neste ano inteiro só falou de uma mulher, e todos nós sabemos de quem foi. A bem dizer a Marta também tem na cabeça só um homem. Não seria uma ménage à trois, mas com demasiada gente...Também não alinho.
A RAPARIGA  E eu ia sofrer um ataque de pânico do caraças!
  Ainda não consegui descortinar se é o teu inconsciente que os provoca, se é o teu grande Super-Ego.
  Provavelmente os dois não se entendem.
  Provavelmente. Olhem para isto, descobri no sótão esta caixa de latão!
A RAPARIGA  O que é tem lá dentro?
Fotografias, antigas que se fartam. Vejam! (Retira um punhado de fotografias e vai mostrando-as.) Aqui temos uma senhora bastante idosa, vestida de negro, com ar altivo...nesta, a mesma senhora, porque é ela de certeza, é uma mulher jovem, lindíssima...
A RAPARIGA  Com um vestido espectacular!
  Soberbo. Soberbo vestido e soberba mulher. E aqui a senhora quando era menina...Caracóis claros, deviam ser loiros, laçarotes...botins nos pézinhos, como se usavam naqueles tempos.
  Depois o tempo varreu tudo, o pó cobriu todas as coisas que fazem a vida de uma pessoa. As memórias são os objectos inúteis que acumulámos durante a vida.
A RAPARIGA  Eu cá possuo poucos. Já mudei de terra e de apartamento umas quatro ou cinco vezes. Prefiro-os já mobilados.
  Talvez seja altura de começares a construir o teu ninho. As aves emigram, mas retornam sempre ao lugar onde nasceram.
A RAPARIGA  Isso tanto se aplica a mim como a ti.
  Tens razão.
  Vou lá acima arranjar mais lenha! (Tiago sai de cena.)
A RAPARIGA (Colocando a cabeça no ombro do Roxo.) Não quero perder-te nunca! És tão inteligente, tens sido tão bom para mim! (Pausa.) Conhecemo-nos apenas há uns poucos de dias, e, no entanto, sinto já por ti uma a amizade tão profunda que não consigo explicar...e tu mostras-te indiferente...
  Indiferente?? Olha que não...
A RAPARIGA  Não é indiferente...comportas-te comigo como se não acreditasses na veneração que sinto por ti...adoro-te, não acreditas?
  Dizem que a admiração não é amor...
A RAPARIGA E que raio de coisa será o amor?
( Ele acaricia-lhe os cabelos, beija-lhe repetidamente as faces, coloca-lhe as mãos nos seios, desce a boca para a boca dela. Ela sorri e dá-lhe os lábios. Porém, quando a mão dele desce para o interior das coxas, ela afasta-a.)
A RAPARIGA  É melhor não! Quase de certeza que vou ter uma ataque de pânico a seguir!
  Uff, estou a arder...vou transformar-me em cinzas!
A RAPARIGA  Desculpa! Gosta sempre de mim, está bem? Não me desprezes, não?
  Desprezar este anjo que subiu à terra? A Perséfone? Jamais! Vivemos tempos muito estranhos. Andamos tensos, ansiosos, cada de nós carrega às costa um pesado problema para resolver...que tem urgentemente de resolver!
  (Gritando das dependências superiores. Não entra em cena.)  Meninos! Encontrei o esqueleto!
A RAPARIGA e o (Em uníssono.) O esqueleto da velha??
  O esqueleto de uma enorme ratazana! Foi nesta mansão assombrada que fizeram os filmes do Allien!
(Marta abraça o Roxo e riem-se ambos.)
  Bem, pelo menos o Tiago já começa a recordar-se dos filmes que viu. É um bom começo!



V  ACTO



   Há dois dias e duas noites que chove sem parar, é demais! E eu que gosto tanto de caminhar...E os barulhos estranhos que oiço de noite, neste casarão! Parece o cenário perfeito de um filme de terror...
A RAPARIGA (Com voz cansada.) Na verdade está a ficar um ambiente saturado...Já esgotámos os víveres e até as conversas.
  Não, as conversas não se esgotaram, estamos muito longe de esgotá-las (pausa.) O que sucede é que tu andas sempre à volta do mesmo...
A RAPARIGA  Desculpem-me, por favor desculpem-me!
  Ó Marta, estás sempre desculpada!
  Com certeza, sobre isso não tenhas receios. Eu e o Tiago encontramo-nos em férias, e até foi óptimo tu apareceres. Sem ti, imagina a cena: dois velhos resmungões a ressonar cada um para o seu lado!
A RAPARIGA  Então, então, onde é que estão aqui dois velhos? Eu é que vim tirar-vos do sossego...
  Não, nada disso. Vamo-nos entender de uma vez por todas: o Tiago tem de regressar à vida que o espera lá fora, tu surgiste no fim das nossas férias.
  Das tuas também??
   Provavelmente, muito provavelmente....Tenho andado a magicar na minha vida...sempre soube que isto não podia continuar indefinidamente. Na realidade não somos, nem poderíamos ser jamais, uns pobres-diabos sem-abrigo...temos obrigações para com outros seres humanos, temos casa, o Tiago é professor, eu posso montar uma actividade por conta própria.
  Estivemos a viver no passado ou no futuro?
  Sei lá. Nem tínhamos futuro no passado, nem agora, onde estamos, temos grande futuro. Em suma, não vamos com certeza regressar ao mesmo.
  Nem já somos os mesmos.
  Eis essa certeza pelo menos.
A RAPARIGA   Tornemo-nos no que somos, como costumas dizer, amigo.
   Nem mais. Torna-te no que és. Se vivesse no deserto seria um verdadeiro beduíno, mas não vivo. Aqui não há  mais lugar para nómadas. Ou integramo-nos, ou somos excluídos.
   Não te vejo a submeteres-te. A tua neura é bem diferente das nossas....nós, eu e a Marta, sofremos de um mal que talvez seja curável, tu...
    Já não sei se será muito diferente. Sofremos os três de paixões tristes. Se calhar somos tão normais como toda a anormalidade que enche as cidades...
   Só que nós fugimos da cidade.
   É. É uma escapatória como outra qualquer. Já não existem paraísos naturais, excepto nos folhetos turísticos. Já não existe mais liberdade no exterior da civilização.
  Todavia, que terrível é esta civilização!
  A História avança pelo lado mau. Porém há muita resistência, camarada.
  O terrorismo?
  Esse é horrível, mas não deixa de ser resistência de algum modo, bem, do pior dos modos é claro. E não existe terrorismo nos Estados, nos impérios e nesta globalização?
  Parece-me bem que sim. Quantos serões já passámos os dois a conversar sobre isso...
  Ora bem, então é tempo de passarmos a outras formas de resistência. A vagabundagem de quem recebe um ordenado mensalmente como tu, e possui contas poupança, é apenas um exílio, um luxo...
  Estás a desistir visivelmente do projecto que traçámos.
Os nossos projectos são, sempre foram, diferentes; apenas coincidiram. Marta, como eram esses dois que te deram boleia? Qual era o aspecto deles?
A RAPARIGA   Sinceramente não me lembro. Não estava cega, mas não via nada. Vou dizer uma coisa que até me faz arrepiar...
   Sim...
A RAPARIGA   Quando vos vi, quando tu e o Tiago vos sentastes ao meu lado, naquela curva da estrada, tive a esquisita sensação de que já vos tinha visto, que vos conhecia de algum lado...
   Outro mistério!
  Pois, outro mistério. Ouve uma coisa: como era a vivenda para onde eles se dirigiram, falaste numa vivenda...
A RAPARIGA   Sim, falei, mas é engraçado: não sei porque é que falei nisso, numa vivenda...
  Não??
A RAPARIGA  Acredita, agora não me lembro de vivenda alguma...saiu-me aquilo pela boca fora...
   Não terás sonhado com isso? Se calhar vieste no teu carro, deixaste-o em qualquer sítio, não terás sonhado?
A RAPARIGA  Ai, já estou com suores frios! Qual das situações sonhei: o hospital e a casa do Zé? A minha fuga? Ou estes dias que temos passado juntos?
   O que seria óptimo é que te convencesses que o teu ex não fora mais que um pesadelo...
A RAPARIGA   Tens razão. No entanto, tenho sentido uma estranheza nestes últimos dias, como se eu já não existisse...vou vestir-me, estou a ficar com muito frio...
  Se não existisses não sentirias frio.
A RAPARIGA   E se fosseis vós que não existisses? Mais este palacete que parece um sepulcro?
   Então nesse caso estarias a apanhar uma valente chuvada.
A RAPARIGA   Talvez nem esteja a chover.
  Tira a capa que te cobre!
  Alto lá, não estás a exagerar?
  Cala-te um bocadinho se fazes favor!
A RAPARIGA   ( Sorrindo com malícia.) Queres provar que não existo, ou que sois vós que não existis?
  Bem, pelo menos conseguiste que ela sorrisse, já não é mau!
  Aceitas o desafio? Arriscas? Vamos a uma aposta! Conheço duas apostas famosas: a primeira diz mais ou menos assim: eu não tenho a certeza que Deus existe; vou comportar-me correctamente nesta vida; se ele existir, serei premiado; se não existir, portei-me correctamente.
  E a outra aposta?
   Também a deves conhecer: escolho a minha vida como se fosse uma escolha para toda a eternidade; portanto, escolhê-la-ei o melhor possível; se existir um eterno retorno, isto é, se as vidas se repetirem, eu voltarei a viver a escolha correcta que fiz.
  Extraordinárias apostas! Não me lembro de as ter ouvido alguma vez. Esta amnésia deixou-me sem referências.
  Voltarás a recuperar a tua memória, meu amigo, e que excelente deve ter sido! Então, que decides Marta?
A RAPARIGA  Entendo. Tenho de escolher. O acto que vou praticar, seja ele qual for, é uma escolha para toda a eternidade!
  Nem mais. Assim como decidires voltar para os braços doentios do teu ex, ou nunca mais.
(Marta despe repentinamente a capa. O momento é fugaz. Logo a escuridão se estabelece. Estalam trovões, a tempestade abate-se. Soam violentos estrondos quando bocados do telhado caem.)


VI  ACTO



(Encontram-se novamente na mesma curva da estrada onde a peça se iniciou.)

  É chegada a hora de nos despedirmos uns dos outros.
  Tem que ser mesmo?
  Tem.
  Não me acho ainda preparado.
  O próprio regresso irá preparar-te. A vida é a soma das decisões que tomamos.
  Sinto-me tão débil e cobarde, como um soldado na terra de ninguém. Aconteceram tantas coisas nestes dias que o meu coração não se mostra lá muito forte para tomar decisões.
  É ansiedade com certeza. É curioso, nunca te perguntei onde é que vives, isto é, onde é que vivias...
  Pois, mas mais curioso ainda é que não recordo exactamente em que terra habitava! Cidade? Aldeia? Perto ou longe? Lembro-me, no entanto, de que era uma vivenda, moderna, espaçosa, pertence a um casal que me alugou uma parte da casa.
  Recordas isso? Óptimo. A tua memória está a regressar aos poucos. Acharemos a casa.
  Não é tão certo assim: recordo isso porque sonho com ela muitas vezes. Nesse sonho deambulo dentro da casa como se estivesse perdido num labirinto.
  Não sabes que a casa simboliza o nosso inconsciente?
  Devo ter lido com certeza. E se a casa existir realmente? Regresso ao labirinto?
  Podes mudar sempre de casa (pausa) e de inconsciente.
  Tenho de me encontrar a mim mesmo, em suma.
   Recordas o tal casal, os proprietários? Vê lá, faz um esforço, quem eram? Ao falarmos neles, sentes maus sentimentos, ou bons?
  Boa pergunta! Não me lembro como eram, o que faziam, nada...porém, sinto uma emoção agradável ao falar nesse casal desconhecido...Devo ter ido para lá quando se verificou o divórcio.
  Sim, isso sabemos nós: a Gabriela ficou com a casa onde vocês viviam. E tu, como és uma excelente pessoa, só levaste contigo os teus livros, não foi?
  Pois, deve ter sido assim.
  De que maneira ocupavas o tempo? Na casa para onde foste...
  Não me lembro, já te disse que não me lembro de coisa nenhuma. Contudo...
  Diz.
  ...neste ano de vagabundagem fui acometido às vezes, até foram vezes bastantes, de uma vontade de escrever...Talvez me ocupasse escrevendo...
  Chegámos muito perto de alguma coisa. Talvez sejas escritor. Quando regressares poderás escrever uma novela...
  Ou uma peça de teatro...
  Ora bem.
  Mas agora tornou-se-me nítida uma ideia...
  Ora diz, camarada.
  Tu também não recordas muita coisa! Onde vivias tu? Quem era a tua mulher? Sim, porque pelo menos já me contaste que eras, ou melhor, que és casado...
  Apanhaste-me em cheio, camarada! Na verdade, tenho andado a dissimular a minha amnésia...Perguntas-me e não sei responder-te. Apenas tenho a certeza de que estava farto da vida que levava. Devia ser uma chatice de vida burguesa!
 Então vamos ter um regresso muito complicado: tu para a vida burguesa, eu, para o labirinto...
A RAPARIGA   E eu para um namorado por quem não estou apaixonada!
  E que importância é que isso tem? É melhor a paixão pelo outro? É melhor uma obsessão, uma doença? Ama este namorado actual, e apaixona-te pelo teatro! Corta com o passado e cria futuro!
A RAPARIGA  É fácil de dizer. Até o Tiago está assustado com o regresso, quanto mais eu! Até tu, se calhar! Sinto que as minhas forças chegaram ao fim...e não vejo saída. (Cobre a cabeça com as mãos.) Vou ter muitas saudades de ti, e do Tiago...Não me queres acompanhar? Não me ajudas mais?
  Claro que vou acompanhar-te até à tua casa, seja ela onde for! Primeiro vamos achar a do Tiago, depois segue-se a tua. E continuaremos amigos sempre.  (Abraça-a carinhosamente.)

Iaco   Ora viva! (O casal dos falecidos está sentado atrás deles. Exibem curiosidade, sem medo e sem surpresa. Os outros três viram-se para trás e assoma-lhes nos rostos o mais profundo espanto. Reconhecem imediatamente os mortos. A rapariga é acometida por um violento ataque de pânico. O agarra com força a cabeça, seguidamente leva a mão ao lugar do coração. O sacode o susto e o assombro, e tenta, com esforço, reagir. Os dois mortos  não apresentam qualquer ferimento.)
Iaco   Quem sois, afinal? Andamos a ver-vos há já uma data de tempo. Não vivem num pardieiro? Vagabundos ou mendigos?
   ( Com um enorme esforço.) És o Adalberto?
Iaco    Nunca tal me chamaram. O meu nome é Iaco, mas bastante gente conhece-me pelo nome de Dioniso, e aqui a minha consorte (Olha para ela com carinho.) chama-se...
Flora     Flora...
Iaco      Somos biólogos, biólogos de profissão é claro. Investigamos umas avezinhas em vias de extinção, percebem? Vimos-vos a cirandar por aqui e por ali, desde ontem. Fizeram um grande berreiro no casebre...uma bebedeirazinha, ah?
      Vimos um desastre...dois mortos....
Iaco     Não vimos nada. Foi aqui perto?
          Sim, bem perto...um carro contra uma árvore.
Iaco    Népia, nicles, não vimos nem ouvimos nada. Tínhamos preferido dormir no casebre, mas já estavam a ocupá-lo. Servimo-nos dele com frequência. Acabamos por dormir ao relento, mas temos sacos-cama, estamos habituados (Dá um beijo carinhoso na companheira, que lho retribui.)
Flora    Mas ouve lá, querido, é verdade que não vimos nem ouvimos o desastre de que fala este senhor, mas aconteceu realmente um acidente horroroso. Deve haver aí uma confusão.
Iaco   Ah, sim, é verdade!
Flora    É que soubemos na aldeia, hoje de manhãzinha, que houve realmente uma tragédia: um automóvel despenhou-se da ponte, dizem que morreram três pessoas, dois homens e uma mulher. Horrível! Não fomos lá, é claro, nem vamos, deve estar tudo cheio de polícia e mirones. Logo três! Que desgraça!
Iaco    É verdade, é verdade. Acontecem acidentes todos os dias (pausa)
Afinal, sois mendigos, ou quê?
Flora  É melhor deixá-los sossegados. Parecem tão tristes! Talvez tenham fome...

( O vagabundo tomba mortalmente com um ataque cardíaco. O companheiro acorre, verifica rapidamente que o amigo está morto. Abraça-o, faz-lhe uma carícia no rosto. Subitamente, a rapariga tomba no solo desamparada. Fica inerte e rígida.)
   (Com desespero.) Horror, horror! Derrotado! A minha razão é um fracasso. Fantoches. Somos apenas maquinismos accionados pelo desejo...Já estávamos mortos e não sabíamos! Estivemos a viver apenas o lapso de segundo entre a vida e a morte.  ( Prostra-se de joelhos, ergue as mãos para o alto.) Nada em mim se eleva para o céu. Nada!

( Os mortos levantam-se tranquilamente e afastam-se.)
Iaco     Okei, então adeus, se não quereis falar, fiquem bem! Realmente é estranho o quadro que vemos: um homem e uma mulher deitados ao lado um do outro e que parecem dormir; um terceiro indivíduo ajoelhado, parecendo rezar! Pergunto-me, Flora, se nos estão vendo e ouvindo. Seremos nós os vivos e eles os outros, ou ao contrário?
Flora    Iaco, a droga faz das pessoas autênticos zombies...
Iaco   De facto...estarão? Pobres diabos que desistiram de viver! Deixamos alguma coisa para comerem. Flora, vamos tratar das nossas aves em vias de extinção!
Flora    A mulher é bem bonita. Porém, tem no rosto uma expressão fechada, rígida, talvez seja uma pessoa dura, insensível, não achas?
Iaco   Talvez se pareça com a nossa prima Perséfone, só desperta na primavera.
Flora   Quem sabe, meu querido? A nossa prima anda por aí metida em tanta gente!
Iaco      Então traz tu depressa a primavera!
Flora     E tu, a quem chamam Dionísio?
Iaco      Eu trago a desmesura, o excesso, a folia!
Flora     É isso que me atrai para ti!
Iaco   Vamos embora, ao nosso infindável trabalho de reconstituir o mundo.

FIM




NOZES PIRES

Agosto 2005