A ESTRADA
-Teatro -
Personagens
Uma mulher
1º vagabundo
2º vagabundo
Um casal: Iaco e Flora
1º ACTO
Anoitece. A rapariga está sentada na beira de uma estrada.
Absorta. Aproximam-se dois vagabundos
1º vagabundo Eh lá, estás a ver o que vejo?
2º vagabundo
Vejo muito bem, porquê, não devia olhar?
1º vagabundo
Claro que deves olhar. Gostas do que estás a ver?
2º vagabundo
Não sei, achas que devo gostar?
1º vagabundo
Estás sempre a perguntar a minha opinião, já reparaste?
2º vagabundo
Nem sempre. Lembras-te daquela vez...
1º vagabundo De quê? Não me distraias agora.
2º vagabundo
Daquela vez em que eu não voltei para a tua companhia...
1º ------ Voltaste, voltaste!
2º ------ Sim, mas demorei alguns dias.
1º ------ Mas voltaste. E com o rabo entre as
pernas.
2º ------ Não foi bem assim, tu estás sempre a
deitar-me isso à cara!
1º ------ O quê? Não te oiço bem.
2º ------ Porquê? Já não te interessa o rumo
da conversa?
1º ------ Estou a observar a rapariga.
2º ------ Qual rapariga??
1º ------ Aquela ali! Não vês uma gaja ali
sentada?
2º ------- Tu sabes que eu vejo pessimamente ao
longe. Aproximemo-nos mais. (aproximam-se) Ah, vejo qualquer coisa sim,
uma coisa bem estranha, uma tipa! A estas horas, neste sítio?? Isto é muito
estranho.
1º vagabundo Achas tudo estranho. O que se passa é que
já não pões os olhos em cima de uma mulher há um ror de tempo.
2º vagabundo É verdade, eis uma grande verdade. Mas isso
que importa, não tenho sentido muita falta.
1º vagabundo Mau, mau, começas a ficar senil, ou vem ao
de cima a tua inclinação sexual um bocado esquisita?
2º vagabundo Lá vens tu com as tuas insinuações torpes...
1º Torpes?? He lá, cá temos
de volta o professor!
2º E
porque não? Ainda o sou, embora aposentado.
1º Qual
aposentado, qual carapuça, deste à sola, foi o que foi!
2º Bom, tudo isso são histórias
que já conheces. Retirei-me, digamos assim..
1º ( Acendendo uma beata.) Ó como
eu te compreendo! Mas não eram piores os teus meninos meliantes do que os meus coleguinhas do escritório.
Filhos da puta.
2º Escolhe as
palavras, Roxo, se realmente estamos em frente de uma senhora, ou menina, ou
mulher, eu sei lá! Quem a cumprimenta primeiro?
1º
Primeiro não me chames Roxo!
2º Desculpa. Quem a cumprimenta?
1º Eu, é claro. Sabes bem que
comigo as mulheres nem respiram.
2º Pois, pois, um sedutor da mais
fina cepa. E eu, nem sequer consigo contar as mulheres que já tive.
1º Força, campeão! Como é que as engatavas? (Enquanto
assim vai falando, observa a rapariga, que desperta da prostração; agora já os
observa com receio.)
2º Não engato, nem engatava. Nem
nunca me ouviste usar a palavra «comer», pois não?
1º Realmente...és um animal de museu.(pausa)
Bom, como é que as seduzias, se preferes? Com cartas de amor?
2º
(Tira os óculos e finge que os limpa.) Normalmente não as seduzia
directamente, era seduzido; só depois é que as seduzia.
1º Isso era defeito ou qualidade? No meu caso,
caçava-as, deitava-lhes a rede, fazia-lhes esperas...Não passamos de
predadores, homenzinho, o instinto está cá, a caça é o nosso desporto favorito.
(Coça as virilhas.)
2º Seja o que tu quiseres. Mas gostamos de
ser caçados, ao contrário dos animais.
1º Qual quê? Qualquer macho adora ser caçado
por uma fêmea.
2º Mesmo o tal aranhiço que é a
seguir digerido pela fêmea?
1º É claro, e também o Louva-a-Deus
macho. Enquanto a fêmea lhe devora a
cabeça, o gajo vem-se que se farta.
2º A rapariga não nos ouve??
1º Ah, pois claro, a rapariga. ( Aproxima-se.)
Viva! como te chamas encantadora criatura que te encontras solitariamente
sentada à beira deste caminho? Necessitas de ajuda? Andas perdida nestes ermos?
Tranquiliza-te, somos ambos boa gente.
A RAPARIGA Boa noite, boa noite digo bem, porque a
noite já está vindo...Está tudo bem, obrigada, estou à espera apenas...
2º Desculpe, mas à espera de quê? Por aqui não
passam autocarros! Veja lá se precisa de alguma coisa. (Dá um jeito ao
casaco como para se compor.)
1º (Sussurrando para o companheiro.) Não
será puta?
2º Aqui?? (Falando para a rapariga.)
Bem, se não necessita de nada, então está tudo bem. (Sussurrando para o
companheiro.) Até me custa! Será maluca?
A RAPARIGA Estou com medo. Não estou à espera de
ninguém. Estou com medo. Quero ir-me embora mas não consigo. (Desata a
chorar.).
1º ( Aproximando-se completamente.) Ora
essa, a chorar! Não vale de nada gastar as suas preciosas lágrimas (Sussurrando
para o outro.) Que bonita que ela é!
2º Não chore não, nós ajudamo-la no que for
preciso.
1º (Falando baixo.) Não
ajudes muito porque só nos sobra uma côdea.
2º Pode ser que não tenha fome.
1º Mas depressa a terá. (Falando para ela.) Vamos lá adivinhar o que lhe aconteceu.
A RAPARIGA Eu conto.
1º Não é preciso. A falar e a chorar resulta
uma mistura assaz dramática.
2º (Batendo-lhe
amigavelmente no ombro.) Assaz?? Eis que voltam os tempos em que sabias
exprimir-te.
1º « (Senta-se ao lado da rapariga, coça
uma perna.) Nada mais me agrada do
que puxar pelo cérebro e pela criminologia; portanto, vou pôr-me a deduzir o
que lhe aconteceu, é tudo uma questão de lógica. (Coça a cabeça.)
2º (Senta-se do outro lado da rapariga.)
Ultimamente não tens feito muito uso desses instrumentos. Ainda ontem, numa
bifurcação, teimaste que o caminho correcto era o da direita.
1º Não me lembro disso; e se bem me lembro,
tu concordaste. O que prova que confias na minha argúcia.
2º Reconheço que o és mais do que eu. Sou
mais idealista, mais ingénuo.
1º Ingénuo uma porra! Um pateta que acredita
nos outros, é o que és!
2º
Sempre me disseram que sou boa pessoa.
1º Eu também, somos todos. Mas não é preciso
ser pateta. Acreditaste naquele filho da mãe que fingia que era ceguinho e
viste o resultado: roubou-nos a lata de salsichas!
A RAPARIGA (Mais recomposta.) Vocês até são
engraçados! Então, vamos lá, porque razão estou aqui?
1º Pois vamos então ao jogo! A menina...
A RAPARIGA Sou uma mulher , embora pareça muito nova.
1º Bem vejo. Isto é, bem vejo que é uma
mulher feita. Vinte e ?
A RAPARIGA Vinte e oito anos. Mas pareço mais nova,
toda a gente o diz.
2º Ai, isso parece, sem dúvida que parece.
Muito novinha. Onde é que já vão os nossos vinte e oito anos, onde é que já
vão.
1º (Para o companheiro.) Deixa-te de
lamúrias. Como te chamas?
A RAPARIGA Isso é importante?
1º Costuma ser. Uma denominação por si nada
significa, mas abre caminho.
A RAPARIGA Chamo-me Marta.
2º Um nome vulgar. Porque não escolhes
outro?
A RAPARIGA Não posso. Os meus pais deram-me este nome
por causa de uma avó, que lhes deixou uma farta herança.
2º Ah, então está adequado. Fui eu que
escolhi o nome da minha filha.
A RAPARIGA O senhor tem uma filha?
1º Ele tem e não tem. Quem a tem é a mulher.
A mulher deu à sola.
2º Não
sejas grosseiro! Não só a Rita gosta do pai, como a mãe e eu continuamos bons
amigos.
1º
Claro, ficou-te com a casa e com o carro. E com a filha. (Acende
outra beata.)
2º Isso são águas passadas. O amor é
passageiro, o que o torna comprido é o casamento, não é isso que costumas
dizer?
A RAPARIGA A sério? Eu acredito que o casamento faça
durar o amor.
1º Deixa lá, o meu companheiro ficou como o
gato com a água escaldada. No fundo, é um romântico: acredita no amor eterno. É
um tipo porreiro! E não tem este maldito vício do tabaco. (Mas puxa com
força uma fumaça.) Olha lá, aqui que ninguém nos ouve, por acaso não tens
aí um ervazita para se enrolar um cigarrito, daqueles, percebes?
A RAPARIGA Desculpe, não tenho. Já a fumei toda. E que
falta me faz!
1º Paciência. Não trazes comidinha, nem
ervinha... Paciência. Bem podias ser um anjo da guarda (pausa) mas não
és.
A RAPARIGA Desculpe...
1º Vá, não te desculpes tanto. É um sinal de
fraqueza.
A RAPARIGA E você, também é divorciado? Viúvo?
2º Nem é uma coisa, nem outra. Mulher alguma
jamais confiou nele.
1º Olha lá, isso são assuntos que se
tragam para a conversa? De resto, era antes eu que não me fiava nelas.(Abre
o bornal, retira a côdea, observa-a com muita atenção. Volta a
aguardá-la.) A noite já caiu. Vamos mas é abrigar-nos em qualquer toca,
sítio quero dizer. A Marta vem, ou fica?
A RAPARIGA Não sei que fazer, não sei o que escolher,
não sei o que decidir.
2º Ou confia em nós, ou não confia. Ou fica
sozinha neste ermo, ou não fica.
1º Falaste com o rigor que te ensinei. A lógica,
minha filha, a lógica!
A RAPARIGA Talvez me decida acompanhar-vos. Ele
já não vem...
1º Ele? Quem é ele? Ora cá está,
como eu adivinhava, temos um gato com o rabo de fora. Onde encontrares uma
mulher sozinha...
A RAPARIGA -
Triste.
1º -...a chorar, temos
drama passional!
2º Coitada da moça. Pode ser órfã.
A RAPARIGA Não sou órfã. Mas não gosto
particularmente dos meus progenitores.
2º Os nossos pais são e serão sempre os nossos
pais.
1º E
os tiranos. Não me diga que foi abusada pelo pai?? Então tínhamos um drama de
todo o tamanho.
A RAPARIGA De modo nenhum. Não se trata disso, Jesus! O
que se passa é que ele abusa da bebida e ela abusa do jogo.
2º Isso chega para
estragar uma infância. (Para o companheiro.) Traumas, recalcamentos,
amnésia infantil.
1º (Para ele.) Enfim, uma neurose, é
isso, psicólogo? E sabes se aquilo que ela diz é verdade? (Para ela.)
Bom, mas não foi por isso que se encontra aqui, abandonada, como diz. Vamos
tratar-nos por tu, à espanhola, o .k.?
A RAPARIGA Claro, claro. Tu chamas-te?
1º Carlos Miguel de Santana e Vilhena...
2º O meu amigo é fidalgo.
1º E este aqui, é o Tiago...
2º ...dos Santos. Professor.
1º Do
ensino básico, ou lá como se chama agora. Mas retirado...
2º Por vontade própria! E ele é jurista.
1º Empregado de escritório. Retirado por
vontade própria.
A RAPARIGA (Enxugando as
lágrimas.) Pessoas bem formadas, que confiança isso me dá. É pena o vosso
aspecto ser assim, um bocado...
2º Um bocado desmazelado; pois, na
verdade...bem precisávamos de mudar de fato.
1º Não damos importância a marcas. O
consumismo, minha filha, é a alienação das massas! Comparada connosco tu és
mesmo um anjo caído do céu.
A RAPARIGA Ah, se me vissem noutras alturas!
2º Não duvido, mas, mesmo assim, estás muito
bem. O teu cabelo é pintado, ou natural? É bem bonito.
1º Que perguntas! Se essa conversa continua
não sei a que naturezas chegarás.
A RAPARIGA (Baixando a cabeça
sobre os joelhos. Como se falasse para si mesma.) Que faço aqui?
Indefesa, com dois homens desconhecidos...(pausa) Quem me dera dormir e
não acordar mais!
(Subitamente ouve-se um grande
estrondo.)
1º Ouviram? Um desastre! Um carro contra uma
árvore, tenho a certeza que se esbarrou contra uma árvore! Foda-se! (Desata
a correr. O companheiro fica algum tempo especado, sacode o torpor e
segue-o. A rapariga caminha vagarosamente, observando a cena de longe. O carro
não se mostra em cena. Dois cadáveres são arrastados para o palco pelos dois
vagabundos. Nessa tarefa, o mais enérgico é o 1º vagabundo.)
2º Que horror, que horror!
A RAPARIGA Ó meu Deus, ó meu Deus!
1º Ambos mortos e bem mortos! Fodidos! Deviam
ser marido e mulher.
2º ( Profundamente perturbado. Encosta-se à
árvore para não cair.) Despistaram-se na curva. Estarão mesmo mortos?
1º (Ausculta-os
com o ouvido, apalpa-lhes o pulso e as carótidas.) Completamente. Ele tem
os miolos de fora, dela jorra esta sangria da cratera do peito. Têm ambos a
cara semi desfeita. Quase irreconhecíveis.
2º Chamamos quem? A polícia, o INEM, quem, meu
Deus, quem? (Cobre o rosto com as mãos.)
1º Acalma-te homem, pensa com a cabeça. Temos
telemóvel? Não, não temos. Há alguma casa aqui perto? Não se topa nenhuma a
quilómetros. Não estão bem falecidos? Estão. Por conseguinte, deixa estar o que
está e piremo-nos mas é daqui.
2º Com assim?? Abandonamos os corpos aos cães??
1º Quais cães?? Amanhã, ou mesmo de madrugada,
alguém os encontrará. Não é a primeira vez, nem será a última, que estas coisas
acontecem. Ou és tão tolo que queres enterrá-los? (Entretanto, busca alguma
coisa no casaco do homem, retira-lhe a carteira, fica com o dinheiro; faz o
mesmo com a bolsa da mulher; depois, enche o bornal com os comestíveis que
encontra no automóvel.) Ala, que se faz tarde!
2º (Correndo atrás do companheiro, em
direcção ao ponto elevado onde a rapariga os observa.) Tu também és capaz
de tudo! Onde é que arranjas tanto sangue frio?
1º Vais tê-lo bem quentinho quando papares
estas iguarias.
( Apressam-se a afastar-se. A
luz deixa de incidir sobre os corpos, que são retirados do palco.)
2º ACTO
(Os três abrigam-se sob um
pardieiro. A rapariga sentada, as mãos nos joelhos, meditativa. Tiago limpa a
boca com um lenço. Roxo, trinca ruidosamente
uma maçã.)
2º Que bela noite! O firmamento brilha com mil
olhos. Vê-se bem pelo buraco da porta. Este pardieiro nem porta tem. Enfim e
adiante, é no campo que se vê como é belo o firmamento.
1º Não tivesses enchido a barriga, e nem para
ele olhavas.
2º Falas assim mas eu sei que possuis uma alma
sensível.
1º Enganas-te. Se a possuísse já estava morto
há que tempos. A vida é uma merda, temos de mexer nela com alicates.
2º Então porque não queres morrer, porque te
resguardas para não morrer? Onde está a tua soberba lógica?
1º Puro instinto, meu caro, puro instinto. O
meu corpo é que decide (tenta comer outra maçã, mas já está saciado.)
Neste momento o sacaninha está contente. Se a morte é o nada, no nada já nós
estamos. Vou mas é dormir uma soneca. Boa noite Marta! (aproveita para lhe
espreitar para as pernas.)
A RAPARIGA (com voz desfalecida.)Boa noite!
( O 1º vagabundo remexe as
folhas com as costas para se pôr a jeito, e adormece com rapidez.)
2º É surpreendente este homem, não é? Enfrenta
tudo com uns nervos de aço, resolve tudo com um auto controlo espantoso, come,
dorme, e daqui a pouco ressona. Carpe diem.
A RAPARIGA Bem gostava de ser assim. Sou tão diferente!
( começa a choramingar. O 2º vagabundo logo se aproxima dela,
rodeia-a com o braço, paternalmente. Ela chora mais forte, deixando a cabeça
tombar para o ombro dele.)
2º Chora à vontade. Chorar até faz bem. Sofres
muito?
A RAPARIGA Muito, muito. Não sei o que fazer. Procurava
quem me ajudasse e logo que te vi pensei que eras tu...
2º Mas mal me viste!?
A RAPARIGA Já te tinha visto. Eu conheço-te.
2º Como assim?? Donde?
A RAPARIGA De quando trabalhavas, isto é, de uma escola
onde estiveste a dar aulas.
2º Essa é boa! O mundo é pequeno! Isso foi há
quanto tempo?
A RAPARIGA Há uns três anos. No Barreiro.
2º Ai sim?
A RAPARIGA Via-te ás vezes, no parque, estavas sempre a
ler, e no cinema. Não te recordas mesmo? Logo na primeira vez que te vi
achei-te simpático, uma pessoa distinta. Procurei aproximar-me de ti, mas não
me vias.
2º Estranho. Ou talvez não. Sou muito distraído.
Mas pergunto-me: como é que não me chamaste a atenção, sendo tão bonita como és
?
A RAPARIGA Isso não sei, mas obrigada pelo elogio. Realmente
não sei porque não me ligaste nenhuma. Não quero ser vaidosa, mas os homens até
costumam olhar.. Nem sequer eras altivo. Julguei-te apenas uma pessoa distante,
até perguntei o que é tu fazias, disseram-me que eras professor. Das duas ou
mais vezes que te vi, andavas sozinho. Mas é claro, não ias prestar atenção a
uma catraia. Não foste à festa de fim do ano escolar da Escola ? Da Escola
Secundária....Foi muita gente. Houve teatro...Não te lembras?
2º Estranho. Não me recordo. E muito menos de
ti. Aliás, não me recordo de ninguém.
A RAPARIGA Isso é muito estranho, realmente. Estiveste
doente?
2º Não sei, não me lembro de estar doente.
Lembro apenas o dia em que fiz uma trouxa, onde meti estes livros que tu podes
ver, e parti.
A RAPARIGA Mas se calhar foste a uma Junta Médica, não
foste? Não ias abandonar sem mais nem menos...
2º Devo ter ido. Pelo menos sei que vou
recebendo ordenado.
A RAPARIGA É isso que me deixa espantada: até recebes um
ordenado, podias ter uma situação razoável...
2º Digna.
A RAPARIGA Não
queria dizer isso, mas...enfim, escusavas de andar assim, não percebo...
2º Também não é preciso
perceberes. Ou melhor, nem eu percebo. Desisti. Devia dizer: desviei-me da
normalidade.
A RAPARIGA E o teu amigo, também se passou...desculpa,
também...
2º Também. Num pardieiro como este encontrei o
Roxo...
A RAPARIGA-- Porque lhe chamas
assim?
2º É o nome verdadeiro dele: Manuel Roxo,
apelido ou alcunha de alentejano, da mais pura cepa. Era um cumpridor empregado
até ao dia em que fez uma trouxa, tal como eu fiz, e zarpou de casa. Nunca me
explicou claramente porquê. ( pausa) Vou contar-te uma coisa sobre ele,
não gosta que falem nisso, mas eu conto: é filho de um guardador de cabras, o
pai trabalhava num monte, assim se chamava no Alentejo à terra do
latifundiário...
A RAPARIGA Os latifundiários eram aqueles ricaços que
possuíam terras que nunca mais acabavam.
2º Exacto. Nunca mais acabavam. Bom, o garoto
saiu esperto, foi estudar para Évora, a expensas do tal latifundiário, porque a
mulher deste engraçou com o puto, a fulana não tinha filhos, fazendo um
parêntesis, a ricaça era maluca, foi um caso muito badalado o suicídio dela,
numa figueira, imagina, à maneira do Judas Iscariote. (Pausa.)Bem, mas
dizia eu, o puto fez os estudos liceais e, depois, o curso superior em
Lisboa; como o dinheiro era escasso ou
nenhum, teve de trabalhar e estudar.
Casou com uma advogada, acho que era advogada, nunca a conheci como
calculas, construíram uma vida boa, mas mesmo boa, uma família normalíssima...e
um belo dia de repente, sai do doce lar e não volta mais! Deixou uma carta para
a mulher, sabe-se lá o que ele lhe dizia, e nunca mais voltou, até hoje.
A RAPARIGA Ai, que coisa tão esquisita! Realmente sois
muito estranhos. Quem é que larga uma boa vida?
2º Pois é, mas foi mesmo assim. Muitos não a
têm e querem-na, outros, pelo contrário, possuem uma alma nómada. Mas olha que
o Coxo tem um passado do caraças! Tu és muito nova, contudo deves saber com
certeza que vivemos antigamente sob uma ditadura, existia uma polícia
terrorista...
A RAPARIGA Eu sei, era a pide.
2º Exacto. Pois, digo-te, o nosso amigo que
agora ressona no chão deste pardieiro, foi um bravo anti-fascista, passou as
passas do Algarve nos calabouços da pide, torturaram-no noites e dias, e não
denunciou ninguém, um perfeito valente! Para vós, gente nova, isso não terá
valor, mas, para nós, é motivo de grande respeito.
A RAPARIGA Ainda não tinha nascido. Admira-lo bastante,
já se vê. Sinto-me uma ignorante ao vosso lado. E não percebo nada de política.
Mas agora noto: tu dizes que não te lembras de nada do teu passado, mas sabes
muito sobre o passado do Roxo!
2º É claro. Ele foi-me contando. Mas aos poucos.
O gajo é mesmo alentejano: vai abrindo a torneira aos pinguinhos. Então dizias
tu que de política não pescas nada. Não admira, eu sou mais velho e nunca
beneficiei nada com os políticos.
A RAPARIGA O Roxo é
mais velho do que tu, vê-se bem, e tu, tens que idade?
2º Não sei ao certo, mas acho que devo estar nos
quarenta.
A RAPARIGA És da idade dele...bem, mudemos de
assunto...Gosto mais de artes.
2º E fazes bem gostar de artes. Eu também é
disso que gosto. Gostas de representar, pelo que presumo? Possuis algum curso?
A RAPARIGA Claro.
Tirei o curso superior. O emprego é que está difícil. Na nossa área, então...
2º ( Limpa os óculos.) Sim, sim, calculo;
está mesmo bera para muita gente com cursos superiores. Mesmo bera! Eu nunca
fiz teatro a sério. Gosto de assistir, é claro. Já que tenho aqui ao pé uma
actriz, explica-me lá uma coisa: que é sentes quando estás a representar? Ou
porque é gostas disso?
A RAPARIGA É complicado explicar, mas acho que , por
cima de tudo o mais, desejo a estima do público. Observar tantos olhos fixados
em mim, é muito agradável. Dirás que é vaidade, não sei, talvez seja, mas
cria-se um laço entre nós e o público, percebes não é verdade? E sei que quero,
que preciso de trabalhar muito, para conquistar esse aplauso. Já fiz
espectáculos muito bonitos, sabes? Possuo um currículo que me orgulha bastante.
Nas aulas, no palco, sou outra pessoa completamente diferente.
2º Acredito, porque não havia de acreditar?
Somos sempre alguma coisa melhor do que parecemos. Há quem pareça mais do que é
realmente, e quem é mais do que parece. O Roxo, por exemplo, fez tudo no
passado, pelo menos é o que ele acha, no tempo da ditadura e, depois, na
Revolução. Quando os cravos murcharam, como se costuma dizer, ele murchou
também.
A RAPARIGA Foi-se abaixo.
2º Com este género de indivíduos não sei se
é apropriado aplicar-se essa expressão. Talvez devêssemos dizer que ele detesta
o país que veio depois. Detesta tudo, menos as mulheres. Se antes as apreciava,
depois foi um ver se te avias. Cá para mim, o Roxo vive no passado.
A RAPARIGA Apre, tenho de te ter cuidado com ele!
2º Está tranquila: o meu amigo é um caçador
experiente: só ataca a presa que deseja que ele a cace.
A RAPARIGA E você, quero dizer, tu, também vives no
passado?
2º Não sei. Esqueci. Zás, apagou-se tudo, delete,
puff! Nunca devo ter feito grande coisa.
A RAPARIGA Ora, muita coisa deves ter feito. Sofreste
foi algum desgosto.
2º Farto, estava farto. Ou os livros deram-me a
volta ao miolo.
A RAPARIGA
E eu, o que é que eu te pareço?
2º Uma criatura infeliz, talvez adoentada...
se calhar também tu vives no passado. Conheces a história de Eurídice e de
Orfeu? Provavelmente nós os três somos a Eurídice: bem nos avisaram: «Não olhes
nunca para trás!» E nós olhámos...
A RAPARIGA E lá ficámos outra vez no inferno...
2º Cada um carrega o seu próprio inferno. É uma
frase-feita mas continua a servir perfeitamente. Mas olha lá, eu pude abandonar
a minha actividade, e não me arrependo, mas tu não podes abandonar a tua! Ou és
uma actriz nata, ou é isso é postiço.
A RAPARIGA Podes acreditar que amo completamente a minha
actividade, o teatro...Mas agora devo
estar realmente muito doente. Só me apetece chorar.
2º Compreendo. Pareces estar muito deprimida.
Quem é ele, esse dito cujo que te roubou a vitalidade?
A RAPARIGA Pois, é isso, deitou-me ao fundo e, contudo,
não me sai da cabeça. Apareceu vai uns três anos. Eu estava a dar aulas no
Barreiro, como te disse, não tinha contrato é claro, fiquei sem trabalho no ano
seguinte, ou melhor, poderia tê-lo assim naquelas condições que também deves
ter conhecido, num lugar muito longe e desconhecido (Pausa) Mas ele
surgiu, e fizemos uma equipa, era experiente, mais velho, ensinou-me toda a
prática, toda talvez não, ele nunca ensina tudo, guarda sempre alguma coisa
para ele, o que é certo é que me apaixonei, assim perdidamente, como escreveu
aquela poetisa que todos conhecemos (pausa) Preparámos espectáculos para
o povo, digamos assim, é certo que eu já tinha trabalhado numa boa companhia de
teatro, nada de especial...
2º Que papel tiveste?
A RAPARIGA Secundário. Estava verde, permanecer nessas
companhias grandes é muito difícil, enfim, adiante, temos andado daqui para ali
a apresentar o nosso espectáculo, as receitas são fracas, mas fui fazendo mais
algum dinheiro com trabalhos provisórios, percebes, a dar umas aulas
particulares...( Pára. Apura o ouvido.) Não ouviste nada?
2º Sim, também me pareceu ouvir...qualquer
coisa...lá fora...Passos...Vou espreitar.
A RAPARIGA ( Estremecendo.
Encolhe-se.)Tem cuidado!
2º (Espreitando com
manifesto medo.) Não vejo nada. Mas pareceu-me ouvir...assim...uns
passos...talvez de duas pessoas...Podem ser cães, é isso! devem ser cães! (Mostra-se
afoito, descontraído. Assoma à porta, olha para fora com ousadia.) Miau! He lobos! Cachorros! miau!
(ri-se.)
A RAPARIGA Não é melhor acordar o Roxo? Mesmo sendo
cães, podem atacar-nos. (Mostra-se nervosa. Manifesta sintomas de um
princípio de ataque fóbico, ou de pânico.)
2º (Observando-a com surpresa.)
Tranquiliza-te, também não é caso para tanto! Isso foi de não comeres quase
nada. Bebe água, anda, bebe!
(A Rapariga bebe da água de
uma garrafa de plástico; deita-se para tentar relaxar.)
A RAPARIGA Há uns dias atrás não aguentei mais.
Garanto-te que não foi o trabalho, eu adorava representar aquele espectáculo,
era mesmo bonito, acredita, e o dinheiro até ia chegando...não, foi que comecei
a sentir-me muito mal com ele...é difícil explicar...
(Escutam-se novamente passos.
O 2º fica especado no lugar onde está. A rapariga inicia o ataque de pânico. O
2º sacode o Roxo com força.)
1º (Mal abrindo os olhos. Afasta com alguma
violência o companheiro, como se estivesse a libertar-se de algum pesadelo.
Depois senta-se, olha primeiro à volta do pardieiro, reconhece o lugar.)
Que aconteceu? Porra, que é que ela tem?
2º
Está a ter um ataque, de histeria suponho, não sei...Ouvimos uns passos
lá fora!
1º
Mau, mau, isto é que estou fodido, porra para isto! Primeiro vamos lá
ver o que a nossa menina tem. (Levanta-se com agilidade bastante. Senta-se
de novo ao lado dela, senta-a quase ao colo, abraça-a.) Ok, ok, nada
aconteceu, estamos aqui para te proteger, acalma-te, já passou, é tudo
imaginação tua, vá, rapariga, vá! ( Apalpa-lhe as mãos.) Mãos
suadas. O coração a bater forte, não é? ( A rapariga treme.) Tremuras. (
A rapariga manifesta claras dificuldades em respirar.) O que é
sentes?
A RAPARIGA (Com extremo esforço.) Quero
respirar...quero respirar!
1º E consegues, procura fixar-me nos
olhos...exacto...respira...inspira....expira....isso! Vais escutar-me com muita
atenção: estás aqui completamente segura, não sofres do coração, nem dos
pulmões, nada!
A RAPARIGA Estou cheia de medo...não vai acontecer uma
grande desgraça, pois não?
1º Nenhuma. A desgraça que aconteceu já
aconteceu, e não foi contigo...todos os dias acontecem acidentes mais ou menos
graves. Connosco estás completamente protegida
2º
(que os estava observando, encolhido a um canto. ) Não tenho os
teus nervos de aço. Nunca tive nervos de aço. Pobre rapariga!
1º (Continuando a abraçá-la.) Sabes,
rapariguinha, este meu amigo de cobarde não tem nada, ele julga que é cobarde,
mas não é, eu sei e já vi isso, é apenas sensível, nervoso. Bom, e tu também és
um bocado nervosa! Mas aqui o velhote não te deixa ter medo, ah!?
A RAPARIGA (Recompondo-se.) Tu não és velho!
1º Isso, isso, diz-me coisas bonitas, ainda
que pouco verdadeiras!
A RAPARIGA Estou a ser sincera! Vocês sois ambos
maravilhosos! (Desata a chorar.)
2º (Erguendo-se com relutância.)
Obrigado. Eu não fui de grande préstimo.
A RAPARIGA Foste, é claro que foste. Que sorte ter-vos
encontrado. (Desprende-se suavemente do abraço dele. Bebe água
que lhe dão. Penteia os cabelos com os dedos. Esfrega as pernas.)
1º Respira fundo...isso...outra vez.....mais
outra....
A RAPARIGA Tenho frio.
1º Pega, cobre-te com o meu blusão.
(Assoma um vulto à porta do
casebre.)
A RAPARIGA (Assustando-se
violentamente.) É ele, é ele!
1º (Parece não ter visto coisa nenhuma.)
Ele quem? Deus nosso Senhor? Deus e o Diabo são apenas projecções dos nossos
medos, minha filha...
2º E anseios...
1º De qualquer modo não existem. Só existimos
nós os três, aqui, neste pardieiro. Lá fora rondam provavelmente cães, ou
gatos, ou qualquer espécime em vias de extinção. (A rapariga olha para ele,
olha para a porta, olha para ele, não sabendo em quem acreditar.)
1º
( Levanta-se, dirige-se à porta – o pardieiro na realidade não tem
porta – senta-se de costas voltadas para o exterior.) Eu sou a porta que a
merda deste pardieiro não tem. Olha para mim rapariga e vê se topas algum deus!
(com voz autoritária.) Olha!
A RAPARIGA (Reage. O método
resulta. Tira o casaco.) Tens razão, imagino tudo.
1º E se fossem os mortos que deixámos lá
atrás? (Ri-se.)
A RAPARIGA Credo, Jesus, não digas isso!
1º É para substituir na tua imaginação outra
coisa, isso faz-te bem. Conta-nos lá a tua história. Quem é esse ele?
2º Já ma contou. Eu resumo: é actriz, tem
andado...
A RAPARIGA Já não ando...
2º - ...com um fulano que organiza
espectáculos, ou qualquer coisa assim. Um gajo aí para que idade?
A RAPARIGA Quarenta.
2º Pois. Viveu com ele uns anos, dois, três...
A RAPARIGA Quase quatro.
2º O tipo ensinou-lhe algumas coisas, homem
sabido, estás a topar...
A RAPARIGA É um
bom técnico. É mesmo bom naquilo que faz. E devo-lhe muito.
1º Pois com certeza. Todos devemos alguma
coisa uns aos outros. Devo ao meu pai, devo à minha mãe...e fiquei a dever ao
merceeiro. A propósito, como é que te dás com os teus pais? Tens irmãos?
A RAPARIGA Tenho um irmão. Dou-me com os meus pais mais
ou menos. A minha mãe é depressiva, a última vez que a vi estava completamente
no fundo.
1º O teu pai, como era noutros tempos?
A RAPARIGA Desprendido, desprendido da mulher e dos
filhos. Ignoro se teve amantes, mas a minha mãe tinha uns ciúmes horríveis
dele...
1º (Como se falasse para si próprio)
Ah, pois, faz sentido....
2º Faz sentido??
A RAPARIGA Ele tinha uma maneira muito própria de
amar-nos, se é que nos amou.
1º É claro que vos amou. À maneira dele. Não
tinha ciúmes da tua mãe?
A RAPARIGA Mais que uma vez lhe bateu. Pelo menos uma
vez nós assistimos. De resto, ela era muito vistosa, uma mulher espectacular.
Agora...agora está um farrapo...desmazelada...isso revolta-me.
1º
Percebo.
2º Estás a perceber tudo. Quem me dera
perceber metade.
1º Fugiste de casa alguma vez?
A RAPARIGA Sim, mais que uma vez.
Não era bem fugir. Por exemplo, quando estávamos no início da adolescência, o
meu irmão é mais novo três anos, bom, eu era um bocado mais crescida, íamos
para as discotecas e só voltávamos de manhã. Mas antes disso já havíamos feito
muita tropelia..
1º Para
chatear o papá, sobretudo.
A RAPARIGA Suponho. Assim, pelo menos, ele acordava para
a merda que andava a fazer.
2º Então, não se fala assim dos nossos pais!
A RAPARIGA Desculpa!
2º Com certeza que ele gostava de vós. Os
filhos têm a tendência para culpar de tudo os pais. Se calhar tu e o teu irmão
tinham cá um destes temperamentos! E a
mãe, não teve responsabilidade alguma?
1º Claro, mas é no Pai que se bate.
A RAPARIGA Acho que ela se foi viciando no jogo para
fugir das frustrações que ele lhe provocava.
1º Provavelmente. E ele refugiava-se em
contrapartida em qualquer outra coisa. Um círculo vicioso. Impotência de um e
de outro. Ouve uma coisa, tu tens conhecimento de que há pouco estavas a
começar a ter um ataque de pânico?
A RAPARIGA Claro.
Cada vez vou tendo mais. Foi do hospital que saí precisamente hoje, quero dizer
ontem! até já perdi a noção do tempo (pausa) Sofri uma ataque horrível e
levaram-me lá...
2º Que pena
tenho desta mocinha...Anda cheia de medo de sofrer outro...Pânico de entrar em
pânico. Que loucos que nós somos!
1º (Para o companheiro.) E só
descobriste agora? (Para a rapariga.) Quando é que tu tiveste o primeiro
ataque de pânico, lembras-te?
A RAPARIGA Não me lembro exactamente, também já me
perguntaram isso, mas era muito nova com certeza, aí com uns oito ou nove anos.
O pior que passei foi quando rompi com ele (pausa) Sim, porque fui eu que rompi, não aguentei
mais... esse período foi muito difícil...estive muito doente.
2º Coitada da mocinha!
1º (Falando para si próprio) Humm...(
Para a rapariga.) Desejaste morrer, provavelmente sofreste de alguma
paralisia temporária dos membros?...cegueira?...perdeste algum cabelo?..
A RAPARIGA É verdade. Tu sabes muito!
2º. É, o meu companheiro é um Sherlock Holmes
ignorado.
1º A experiência ensina. No tempo da ditadura -
antes do 25 de Abril, minha menina!- soube de camaradas meus que sofreram de
distúrbios incríveis por terem sido vítimas das torturas da pide.
2º ( Ironicamente.) Bem, bem, o ex desta mocinha, o senhor
X, o grande ausente-presente desta conversa, não é propriamente um agente da
pide.
1º Brincas. Sem ofensa, o que é que a Marta saberá
que foram, o que fizeram esses torcionários? Referia-me naturalmente aos casos,
por exemplo, em que eles privavam do sono os presos políticos. Salvaguardadas
estas enormes diferenças, reconheçamos, porém, que o tal senhor X torturava a
namorada à sua maneira.
2º Tens razão. Há por aí muita gente a torturar
muita gente.
1º Não sou dos que duvidam de que os machos
torturam mais que o género oposto...
2º Pois. Com o preconceito de que elas são o género
oposto, vão torturando-as...
1º Bem visto, camarada, vinte valores! Mas
estava a lembrar-me daquele escândalo no Iraque, aquelas torturas que guardas
norte-americanos exerceram sobre prisioneiros iraquianos...
2º Ah, já percebo!, um
deles era uma mulher, exacto, a fotografia da safada correu mundo.
A RAPARIGA Bem se vê que sois pessoas cultas e bem
formadas. Ainda estou para perceber
porque razão andais...
1º Porque somos vagabundos? Razões
existenciais, minha filha, filosóficas. Muito complicado.
2º Para mim foi ficar livre, ser livre. Quanto
mais pobre, mais livre. Não tenho horários para cumprir, como dizia o Poeta.
1º Então foste tu que rompeste o noivado,
chamemo-lhe assim.
A RAPARIGA Fui.
1º Não estavas completamente apaixonada por
ele? Pelo que te sucedeu em consequência, não há dúvidas sobre isso.
A RAPARIGA Não aguentei mais a situação; quero dizer,
ele era insuportável...Tratava-me mal...Chamava-me nomes feios, gritava comigo,
não sei se percebes.
1º Calculo. Censurava-te mais do que
elogiava.
A RAPARIGA Eu, na boca dele, era uma garota que ele não
tinha paciência para educar, chamou-me burra até, e mais...
1º E tu, ficavas no teu canto, suponho.
Sentias-te mesmo uma mulher mal crescida e desajeitada. Duvidavas de ti mesma.
A RAPARIGA Sim. E chorava. Ás vezes nem me conseguia
olhar ao espelho.
1º Dizia que não prestavas nem como mulher, ou
quase. Que tinhas um corpo ...qualquer coisa assim.
A RAPARIGA (Surpreendida.)
Como é que advinhas tudo?? Exactamente: só via defeitos no meu corpo.
2º O meu companheiro advinha tudo, e não é
bruxo.
1º Não, não adivinho tudo; deduzo apenas. Não
achas que na realidade o tipo era um fraco?
2º Se calhar. Pois, se calhar...quem
inferioriza assim a mulher que o ama, ou é um fraco ou um grandíssimo estúpido.
1º Parece, parece...mas estamos apenas a dar
palpites. E já agora dou mais um: esse desapreço dele em relação a ti, das duas
uma: ou ele andava interessado noutra mulher, ou sentia no fundo uma grande
insegurança. Faz lembrar a fábula da raposa e das uvas...
2º Ora bem, talvez esteja
aí realmente a chave do enigma: como a raposa não tinha pedalada para chegar às
uvas apetecíveis, desatou a dizer mal delas!
1º Quem não domina algo, dá-lhe pontapés.
2º Nem todos. Tu e eu não agimos assim.
Comportaste-te desse modo alguma vez?
1º Com certeza. Simplesmente tinha apenas cinco
anos!
A Rapariga As coisas que vocês dizem! O meu irmão nunca
mas soube dizer...nem a minha mãe.
1º Bom, isto é apenas um supúnhamos, como dizia
o outro...Presumo que também sexualmente as coisas não marchavam bem com o dito
cujo...se é que não te custa falar nisso, por nós, fica à vontade, se fossemos
violadores já te havíamos violado.
2º Credo, ó homem! A pobre rapariga...
A RAPARIGA No aspecto que referiste, muito mal.
1º E alguma vez pensaste que o erro disso
também podia encontrar-se em ti? Não continuaste a cometê-lo com outros, vamos
lá: com outro, depois dele?
A RAPARIGA Sim e não. Tenho um bocado de vergonha de
falar nisso.
2º Com certeza. Mas eu sei que a intenção do meu
companheiro é pura.
1º Meu caro, se bebêssemos apenas água
completamente pura, morríamos...Bom, e agora que fazemos? Ou melhor, que
pretendes fazer tu? Queres e não queres, é claro. Ouve uma coisa: não aconteceu
recentemente algum facto, digo eu, uma violenta ciumeira da tua parte, por
exemplo?
A RAPARIGA Não sou ciumenta. Não suportei foi
aquilo...dele a haver convidado para trabalharem ambos no estrangeiro (pausa)
Duas semanas.
2º Ela, ah! sempre temos uma ela!
1º Mas é claro. Temos sempre mais alguém. Nunca
falta o trio. Expliquemo-nos: o senhor tem uma namorada, provavelmente já a
tinha quando ainda te levava para a cama – não me leves a mal, mas temos de ser
directos e objectivos - se é que não continuou a levar-te sempre que lhe
apeteceu...Não te aflijas, não precisas de responder! O que sucedeu é que,
depois da ruptura, continuaram juntos, a trabalhar juntos, «querido» para aqui,
«querido» para acolá, as coisas funcionavam numa espécie de espera, ou de
tréguas, arranjaste outro namorado com certeza...
A RAPARIGA É verdade, continuas a acertar. Na verdade,
não rompi a relação só há dias...
1º Minha filha, é tão óbvio, tão igual! O
comportamento humano repete-se com uma frequência fastidiosa. Tudo é vulgar.
Julgamo-nos uns mártires e umas vítimas excepcionais, quando, na verdade, neste
mesmo instante uma multidão de outros fazem o mesmo, sentem o mesmo, sofrem o
mesmo.
2º Nem sempre da mesma maneira. Tu não
passaste por isto.
1º Mas passaste tu. É claro que o modo de
reagir não é idêntico em todo o mundo. O nosso temperamento, o tipo de cultura,
tudo bem ou mal cozinhado resulta naquilo que somos. Dito assim é uma
banalidade. Mas ataquemos o caso concreto da nossa menina; vou avançar com mais
um palpite: ela fez o mesmo que muitas fazem: projectou no tal senhor tiranete
o seu paizinho!
A RAPARIGA Nunca pensei em tal coisa!
1º Pois não. Aliás, não és a única. Mesmo os
mais inteligentes e cultos fazem exactamente a mesma coisa, e não se dão conta.
Não quero magoar-te, mas vou ser um pouco bruto: pedinchaste o amor dele como
desejavas ter tido o amor exclusivo do papá! O dito senhor educou-te, sem
aspas, como costuma proceder um papá que é demasiado parvo para perceber quando
uma filha está a crescer, ou demasiado egoísta! Tratava-te desajeitadamente,
até com aqueles excessos de cólera que viste, se calhar, no teu papá
impaciente...enfim, convenhamos que o tipo exagerou. O gajo também deve andar
em busca de alguma coisa que não teve. Provavelmente da mamã. E vou dizer-te
outra coisa de que não vais gostar mesmo nada.
A RAPARIGA Ai, o quê?
1º Toma isto que vou dizer
como um palpite e não como uma fatalidade: tu estás a reproduzir o casamento
dos teus pais.
A RAPARIGA Essa é forte!
2º Tem lógica, temos de reconhecer. Aqui o nosso
companheiro pode ser mais perspicaz do que eu, e é com certeza absoluta, mas eu
também li alguma coisa. Talvez os sintomas da tua, e da minha doença, sejam
mensageiros de um significado...
1º E só venham a desaparecer quando a sua
mensagem for compreendida! Obrigado. Com esse estímulo que tu me dás até me
apetece afirmar peremptoriamente que somos tentados a reproduzir, e não me
refiro à reprodução sexual...
2º Percebo. Uma certa pessoa notável costumava
dizer: quando tencionares casar-te, olha para a filha com mais vinte anos em cima
e verás a mãe dela!
1º Ora bem, é mais ou menos isso. É claro que
não estou a referir-me apenas ao aspecto físico. Em suma, e reconheço que é
duro ouvir isto, se a nossa menina não se põe a pau, mergulha em paixões
tristes. Em vez de desviar-se desse buraco, cai nele. Comparemos com
umanestrada que temos de abrir à força dos braços, e uma ponte que se oferece
para nos encurtar o caminho...
(A rapariga escuta com
profunda atenção.)
A RAPARIGA Custa a acreditar. Perturba-me imenso ouvir
isso. Então se o que vi e vivi me traumatizou tanto, como é que é possível que
eu repita? Escolho sempre a mesma ponte??
1º Escolhes exactamente por causa do recalcado.
O teu inconsciente leva-te com uma trela se não lhe fizeres uma limpeza.
Precisamos de limpar a chaminé de vez em quando, não é senhor professor?
(Subitamente a rapariga e o 2º
vagabundo ficam especados, paralisados, com o terror estampado nos rostos,
fixando o olhar no exterior do casebre.)
A RAPARIGA Meu Deus, meu Deus! Está atrás de ti uma
coisa!..
2º Uma coisa, ó sim, um vulto! Vem para
dentro, foge!
( O 1º vagabundo dá um valente salto para o interior, mas voltando-se
imediatamente para a abertura, em posição de ataque.)
1º He lá, o que é que se passa, eu fodo já o
primeiro que se atrever! Eu fodo-o já! (como nada vê, aproxima-se lentamente
da abertura, salta para o exterior com surpreendente agilidade. Demora-se. Os
outros estão agarrados um ao outro. Regressa.)
1º Nada.
Não há nada lá fora, meus queridos, nada, nadinha. Os meninos andam com
alucinações.
2º (tremendamente confundido.) Mas eu
vi...eu vi um indivíduo...que me fez lembrar alguém...
A RAPARIGA Eu também vi! Vi-o a ele!
1º Ele quem, porra!
A RAPARIGA O meu ex, o tal!
1º Foda-se...Agora passamos para os delírios...E
eu que não tenho Xanax nem coisa nenhuma. Vamos todos mas é lá para fora, e já!
( Não queriam, mas ele
arrastou-os para o exterior.)
1º (Autoritário.) Onde é que se
escondeu o espectro, ah? O fantasma, ah? Esperem lá, lembrei-me de uma coisa!
Deixem-se ficar aí, que eu volto já.
A rapariga e o 2º ( Em
uníssono.) Não demores!
( O 1º dirigiu-se ao automóvel
acidentado, remexeu no porta-luvas e trouxe de lá uma garrafa de uísque.)
1º Meus queridos, arrebitem! Trago-vos um
presente, uma dádiva dos deuses: a água da vida!
( Beberam da garrafa, à vez. A rapariga
mais do que os outros. O efeito demorou pouco tempo a manifestar-se.)
2º
He pá, estás a bebê-la toda, deixa alguma coisa para a gente! (Ri-se
muito)
A RAPARIGA Deixa, deixa, seu bebedor! Seu safadinho!
Sabes que és lindo?
1º (Mais sóbrio que os outros.) Algumas
mo disseram, mas agora, minha filha, estou velho!
A RAPARIGA ( Começa a mostrar sinais de embriaguez.) Qual velho, tu não és velho! És muito
interessante, e aqui o nosso amigo também um bocadito. Quantas mulheres já
tiveste, meu querido (pausa) amigo?
1º Não conto mulheres, só euros. Meninos, vou
contar uma história, muito pequenina e muito gira!
A RAPARIGA (Batendo palmas.) Conta, conta!
1º ( Bate com um pau no chão três vezes, a
simular a abertura do teatro. ) Oiçam, oiçam, a maravilhosa história da
bela Perséfone! Oiçam, crianças! (Pausa. Teatral.) Estava a bela e
virgem Perséfone penteando seus cabelos, sentada de pernas abertas num campo de
margaridas, quando viu Adónis, e imediatamente por ele se apaixonou; a ele
caiu-lhe a baba da boca quando filou o suculento fruto que a virgem mal
escondia entre as belas coxas. Porém, Adónis, era na verdade o seu tio Hades
disfarçado, o deus dos mortos e do Inferno, que logo para lá a levou é claro. A
mãe da Virgem ficou desesperada e exigiu a Zeus que a filha lhe fosse
restituída. O deus dos deuses acabou por dar seguimento às súplicas, pois a
senhora moía-lhe o juízo a toda a hora, e chamou Hades à ordem: « Ou libertas
Perséfone, ou dou-te cabo dos
cornos!» Contudo, o deus dos mortos
somente o poderia fazer se Perséfone não tivesse ingerido alimento algum no
Inferno; ora, a menina-mulher já havia
comido um bago de romã, o que cá para nós que ninguém nos ouve, significava que
Perséfone já não tinha os três. Estava, portanto, condenada
definitivamente. Na mente augusta de Zeus faiscou uma solução de compromisso:
Perséfone partilharia o ano entre o reino do Inferno e sua mãe, ou seja, a
liberdade cá fora no quentinho. Assim, quando ela sobe, começa a Primavera;
quando ela desce, começa o inverno, a estação triste e estéril!...Gostaram,
meus filhos?
A RAPARIGA (Batendo palmas.
O 2º também aplaude.) Adorei!
1º Espero que quando te passar o pifão, este
mito te ajude a conheceres-te a ti mesma. De ora em diante chamar-te-ás
Perséfone! Ordens de Zeus! Eu sou Hermes, seu mensageiro!
A RAPARIGA Viva a Perséfone, morra a Marta!
1º Então que o teu ex vá prá puta que o
pariu! Pró inferno já com ele!
A RAPARIGA Prá
puta que o pariu! Já aprendi muito contigo. Tenho cá uma destas admirações por
ti, nem calculas! És forte, inteligente, entras na alma da gente!
1º Até rima. Meninos, vamos todos imaginar uma
cena!
A RAPARIGA Vamos, vamos!
1º (Retira do bornal uma vela de cera. Acende-a.
Coloca-a em cima de um caixote. Tapa o rosto com um lenço. Cobre-se com a
manta.) Eu sou o feiticeiro bom! (Transforma a voz.) Concentrai em
mim os vossos olhos terrestres, ó criaturas! (Deixa tombar, sobre a chama da
vela, um punhado de pó que arde estralejando.) Òóóó!! Uhhhhh!! (Imita
movimentos de xamã.) Já vejo! Já vejo uma águia com as asa abertas, tão
grande, tão imensa, que cobre o céu! Óóó, uhhhh! Ó Grande Pássaro, protege-nos!
Vede, vede, ó criaturas, como a águia nos arrebata do chão pesado e nos conduz
para o ar leve! Voemos (Move os braços como asas.) Voemos! Ó como tudo é
limpo cá em cima! Tantas cores, tantas luzes!
( A rapariga está fascinada.
Participa completamente no encantamento. Entra num estado de transe. Executa
movimentos desordenados com intensa emoção. O 2º bate com os pés no chão
consecutivamente.)
1º Voamos tão alto! Não há mal que entre nos
nossos corações! ( (Retira o lenço do rosto e espaneja-o em movimentos
largos e repetidos. Executa-os cada vez mais perto do rosto da rapariga.) Vai-te ó mal, sai de nós para longe e não
voltes mais! Vai-te! (Ergue a
rapariga do chão e dança com ela ao colo.)
A RAPARIGA (Saindo do transe.) Quero dançar,
apetece-me dançar! Sinto-me nas nuvens, vou dançar, sabes que eu costumo dançar
muito quando estou sozinha? (Põe-se a dançar com grande
voluptuosidade.)
2º Que bem que dança! E que corpo, que
sensualidade!
1º Não te
ponhas com ideias, ó camarada! O que estamos a ver é apenas uma mulher bêbada,
aliás, duas pessoas bêbadas, tu também estás de caixão à cova.
2º (Levantado
–com dificuldade - em atitude declamatória.) Então estou bêbado! Viva a
alegre loucura quando a razão só traz tristeza! Viva a vida que Deus nos deu,
quero dizer, os deuses, ou melhor, qualquer coisa nos deu! A Gabriela que vá
pró raio que a parta mais o idiota do gajo que a anda a comer! Quem primeiro a
comeu fui eu, ora bem!
1º (Falando em surdina.) É curioso, nunca
lhe ouvi uma asneira...
2º ...A Terra é esférica e anda à volta do sol,
a lua é um calhau mas na lua-cheia fico com um tesão dos diabos! Ah, como é
porreiro dizer asneiras! Vomitar esta merda toda que trago cá dentro! Que se
lixe. Quando morrermos vamos prá cova, sete palmos de terra. Aqueles biltres
fodiam-me o juízo, os filhos dos outros, estão a ver? E as vacas das mães
deles, com as devidas e ponderadas excepções. Sabem qual foi o meu mal, qual é
o meu mal? Não sabem? Eu também não. Pois então explico-vos, meus queridos
comparsas, o que fiz, o que faço: amnésia, amnésia total, ou seja, não recordo
nada, mas mesmo nada! Nem sei sequer quem sou, quem realmente fui! Zás,
catrapás, foi-se! A Terra é grande e eu sou medíocre. Tão pequenino que não sou
nada. Quando esticar o pernil quero uma cova bem funda!
(Canta com voz avinagrada.) Quando morrer
enterrem-me bem fundo,
para que eu acredite,
que estou no centro do mundo!
Fui palhaço e tutor,
Estive sempre nas bordas do mundo,
Fosse antes uma grande estupor,
E não teria ido ao fundo!
Quando eu morrer,
Enterrem-me bem fundo
Tralálá, tralalá!
(A rapariga tira o casaquinho
de lã, fica com uma leve blusa , já aberta no colo, desalinhada.)
2º Isso,
isso! Descalça-te! (Em jeito de desculpa para o companheiro.) Adoro os
pés das mulheres!
( O 1º observa-a, numa
atitude apreciativa. A rapariga descalça-se. O movimento das ancas é sensual.)
1º Ò minha querida, tu danças como a Salomé
antes de cortar a cabeça ao santo! ( Levanta-se e dança com ela, com energia,
uma espécie de tango. A rapariga olha-o nos olhos, desafiadora, a
seduzir o homem.)
A RAPARIGA E tu também danças! Hhuum... não tens medo de
perder a cabeça?
1º Com o meu companheiro ao pé não a perco
não...
( A rapariga despe a blusa.
O 2º está com os olhos esbugalhados. O 1º está contido,
o olhar fixo nos olhos dela. Quando a rapariga se prepara para despir o
soutien, ele trava-lhe a mão.)
1º Chega, minha querida! Agora dança até caíres
de cansaço!
A RAPARIGA (Tropeça. Murmura.)
Sabes, adorava ser bailarina. Adorava ser...
( Roxo sai para o exterior. Olha para o
firmamento por uns momentos. Depois fala para a escuridão, que, entretanto, já
clareava com os primeiros raios da aurora.)
1º Perturbou-me...conseguiu perturbar-me...
Somos um corpo que sente e pensa o que sente. As minhas ideias são as ideias
que o meu corpo tem. O resto são tretas. Princípios e valores sem carne e osso
não são mais do que meras palavras. Eros, o governante impertinente e
impositivo! Porque haveria de surpreender-me com a paixão triste da Marta? Um
ser humano inteligente e dotado que sofre passivamente uma espécie de
escravidão. Que posso fazer por ela? Quase nada. Somente um hábito mais forte
pode substituir outro hábito, somente uma paixão positiva mais potente nos
liberta de uma paixão negativa. É mais fácil dizer do que fazer. Ainda bem que
ela agora esgrime a sedução como uma íman. Instintivamente ela reconhece o
homem no indivíduo que a protege, o masculino com as suas fraquezas. Pelo outro
foi humilhada, por mim julga-se levantada. Tiago defende-se com o remédio do
esquecimento, mas a Marta salva-se porventura se representar no palco da vida
um papel diferente. (pausa)
A ansiedade é universal. O tempo
cura uma dor, para que a Dor continue. Sofre-se quando se nasce, sofre-se
quando se ama, vamos morrendo até à morte final. A mim, quanto tempo me resta?
Quando é que voltarei a ter nos braços uma mulher jovem e bonita, dançando para
mim? (Pausa.) Para me agradecer... O que é que eu sinto, o que é que ela
me faz sentir? Compaixão? Estaria eu tão desperto se ela fosse uma velha
desdentada? Pois seja: que ela se exprima com o seu bonito corpo, não é ela uma
actriz? Que existência real possui um actor sem um corpo?...Mas tudo passa.
Amanhã estará sóbria. Depois lembrar-se-á de mim de vez em quando. Voltará ou
não voltará ao amante? Ao jogo do gato e
do rato? Quem é o rato? O mais certo é voltar, porque o jogo é o veneno que
sabe ao mel. O drama continua, a menos que o masoquismo possua um limite. (Pausa)
( Dirige-se ao público.) Encenamos a morte e o mais negro desejo.
Encenamos a ponte que tão fortemente os une.
Uma paixão funesta que não vale a
ponta de um caracol comparada com a multidão de cadáveres no Iraque, a multidão
de esfomeados no Sudão, a multidão de meninos a fazerem-se homens nas sarjetas
e nas oficinas! Mas nela é tudo. Porque a sua dor faz dela o centro do mundo. É
assim. Tudo passa, somente a guerra, a fome, a miséria, o sofrimento, a
crueldade permanecem, acaba ali, recomeça acolá. Para quê tanta ilusão triste
se a realidade bastava? Por uma razão muito simples: porque não suportamos a
realidade.
(Recita.) «A vossa razão e
a vossa paixão são o leme e as velas da vossa alma navegante.
Se as vossas velas se rasgarem ou o
vosso leme se romper, mais não podeis fazer se não andar aos balanços à deriva,
ou ficar imóvel ao largo dos mares.
Pois a razão, governando sozinha, é
uma força restritiva; e a paixão sem controlo é uma chama que queima para vossa
própria destruição.
Possa então a vossa alma exaltar a
vossa razão até à altitude da paixão e que ela cante;
E possa ele, pela razão, governar a
vossa paixão, e que a vossa paixão viva pela sua própria ressurreição
quotidiana e, qual Fénix, se eleve acima das suas próprias cinzas.»
(Apura o ouvido. Uma coruja chama um
parceiro. Um cão uiva ao longe com um cio urgente. Uns passos no matagal. Estremece.»
1º Que quero eu afinal? Quem me procura a mim?
Também eu já oiço passos... Desinteressei-me de tudo, renunciei a tudo, tanto
ao mal como ao bem. ( Pausa.) Está a pôr-se frio. Por hoje assustei a
solidão.( Pausa) O teatro não imita a vida. Talvez fosse bem melhor que
a vida imitasse o teatro. Onde cada um inventasse sempre novos papeis.
3º ACTO
( O 1º vagabundo desperta. Espreguiça-se, olha para os
companheiros que ainda dormem a sono solto. Sorri com complacência. Esfrega os
olhos. Olha o fundo da garrafa de uísque, e volta a sorrir. Ergue-se e
dirige-se para o exterior do casebre. A manhã vai alta.)
1º Porra,
mas que é isto?? (Boquiaberto: no chão encontram-se os cadáveres do
automóvel desfeito.) Não é possível!
Estarei ainda bêbado? Nunca me julguei tão bêbado! (Mexe e remexe os
cadáveres. Belisca-se. Cerra os olhos para se controlar.)
Raios me partam! Não há dúvida que esta merda está mesmo
aqui! Alguém os trouxe. Alguém nos persegue. Que estão mortos e já cheiram mal,
não há dúvida nenhuma!
(O 2º tinha, entretanto, assomado à porta. Está
estarrecido a contemplar o espectáculo. O 1º vira-se para trás e encara-
o.)
1º Aguenta
camarada! Isto está complicado, mas tem de haver uma explicação lógica. Tenho
de encontrar uma explicação para esta merda. Não há mistério que não se
solucione. Tem calma. Anda cá!
(O 2º vagabundo continua estarrecido. Balbucia
qualquer coisa. Por fim, consegue articular.)
2º
Mas...mas....é a Gabriela...o marido... (Cambaleia. O 1º acorre
e segura- o. Abana- o .)
1º Aguenta-te camarada! Qual Gabriela! Ainda não curaste a bebedeira, acorda! (Agarra-o e coloca-o à sua frente.) Olha bem. Pouco se aproveita dele: como é possível veres neste corpo desfigurado a madame Gabriela? Ah? Estás com paranóias ou quê? Mas vamos tirar as dúvidas. Deixei lá a carteira dele, espera aqui, volto já.
1º Aguenta-te camarada! Qual Gabriela! Ainda não curaste a bebedeira, acorda! (Agarra-o e coloca-o à sua frente.) Olha bem. Pouco se aproveita dele: como é possível veres neste corpo desfigurado a madame Gabriela? Ah? Estás com paranóias ou quê? Mas vamos tirar as dúvidas. Deixei lá a carteira dele, espera aqui, volto já.
2º Não,
quero ir contigo!
1º Está bem.
(Espreita para o interior do casebre: a rapariga continua a dormir. Desaparecem
do palco. Reaparecem.)
1º Está
resolvido o teu problema (Mostra a carteira.) Ele chama-se Adalberto da
Cruz e Silva, ela, Maria da Luz Fonseca. O falecido era técnico de informática,
um gajo novo. Aqui tens: nem gabrielas nem maridos!
2º Certo.
Está bem. Mas havia qualquer coisa neles que me faziam lembrar...Bem, sejamos
fortes!... e agora, o mistério?
1º Sim, o mistério. Falecidos como estão, não
poderiam ter sido eles a arrastarem-se para aqui. Portanto, foi alguém que o
fez. Ou talvez os cães vadios. É isso, foram com certeza cães vadios! Acho que
serve bem como solução do enigma.
2º ( Voltando-se.)
Meus Deus, a rapariga!
( A rapariga está estendida no exterior. Sangra da cabeça.)
1º
Foda-se! (Segura-a nos braços.
Ergue-a. Volta a colocá-la no chão. Corre a buscar água a um ribeiro ali ao pé
- imaginar a cena com dispositivos cénicos - Molha um lenço. Humedece a testa
da rapariga.)
Vá, reage mulher,
reage! (Dá-lhe palmadinhas no rosto. A rapariga desperta do desmaio.
Mostra-se aterrorizada. Agarra-se violentamente a ele.)
A RAPARIGA É ele,
é ele!
1º Lá
voltamos nós à mesma merda! (Procurando infundir calma.) Olha bem! Estão
quase irreconhecíveis. Apenas vejo que era gente de pouco mais de trinta anos,
um pouco do cabelo, menos que metade do rosto. Eu conheci a Gabriela e esta não
é a Gabriela. E o teu gajo, ou ex gajo, é mais velho. De resto, temos aqui o
nome deles. (Tira a carteira.) Ele chama-se Adalberto?
A RAPARIGA Não.
1º E ela,
chama-se Maria da Luz?
A RAPARIGA Não.
1º Então,
estás a ver apenas o que não queres. Ou, pensando bem, o que tu desejavas que
fosse. Que o gaja e a gaja estivessem bem mortos e falecidos. Já pensaste
nisso? Ora pensa. E tu também, ó camarada! Também estou a falar para ti!
A RAPARIGA (Ergue-se. Apalpa a ferida na cabeça.) Não
desejo a morte deles...
2º Eu,
muito menos desejo a morte da mãe da minha filha...
1º Tu,
minha querida actriz, tu desejas, ai que não desejas!, embora não a queiras de
verdade. Pelo menos não os matarás. Aqui o meu camarada, que não tem
decididamente estômago para uma bebedeira, a única coisa de que se lembra da
merda da vida é da cara da Gabriela...(Pausa.) Bom, vamos lá tratar
dessa ferida! (Humedece e limpa a ferida ligeira.) Pronto, ficas boa num
instante. Agora o que vamos fazer é o seguinte: pirarmo-nos daqui e depressa.
Dar corda aos sapatos! Se nos encontram com estes falecidos, estamos fodidos,
quero dizer, fritos!
( Afastam-se depressa, a rapariga e o 2º com
alguma dificuldade. O 1º auxilia-os .Sob o escuro os corpos e o casebre
desaparecem. Estão agora sentados ao pé de uma
ribanceira na margem de um rio profundo.)
2º Que
mistérios! Nas últimas horas aconteceram-nos mais coisas que num ano inteiro!
1º Num ano
inteiro tivemos sossego. Nada aconteceu, porque tivemos sossego. Foi naquela
curva do caminho que tudo começou.
A RAPARIGA (Mostra-se transida. Frio e medo. Tem
convulsões. ) Quando eu vos apareci, eu sei. Foi tudo por culpa minha. Peço
tantas desculpas! (Chora.)
2º Não,
não, minha querida, não! Não foste tu, de modo nenhum! O que tinha de
acontecer, aconteceu, só isso!
1º (Como
falando para si mesmo. ) Este agora vem com destinos e fatalidades!
2º O que
disseste?
1º Nada,
nada. A Marta evidentemente que não provocou tudo isto, pelo menos o desastre
daqueles desgraçados.
A RAPARIGA Quem sabe?
2º (Anda
de um lado para o outro. Desorientado. Nervoso.) Não, não, não teve culpa
nenhuma. Mas parecia-me a Gabriela...Que Deus me perdoe, mas parecia mesmo ela.
Tenho de lhe telefonar... tenho de saber...Estou cansado, ó como estou tão
cansado!
1º Estamos
todos. Também, depois de uma piela daquelas! Ó camarada, aguenta firme! Escusas
de telefonar, já sabes que não é ela. Que é feita da tua inteligência, da tua
cultura? Juízo, homem, juízo! (Mas mostra-se preocupado.)
( A rapariga aproxima-se perigosamente da ribanceira.
Fica a olhar para baixo, para as rochas, para as águas escuras do rio.)
2º Mesmo
assim devia telefonar-lhe... Já não lhe telefono há tanto tempo... Nem sei nada
da minha filha, da minha querida menina... Já namora, eu sei, já namora, é boa
estudante, já namora, a minha filhinha...(Agarra a cabeça com ambas as mãos.
Não pára de andar de um lado para o outro.) A culpa foi minha, claro
que foi minha. Foi sempre minha a culpa. Metia-me nos livros, encafuava-me nos
livros, na preparação das aulas... mudavam-me de escola...longe, sempre
longe...Um dia tinha de acontecer.
1º Não
penses nisso, camarada. Vamos mas é arranjar com que se afie o dente.
(De repente, a rapariga parece querer saltar da
ribanceira. O 1º agarra-a .)
1º Alto aí,
menina! Nada de loucuras, o.k.?
A RAPARIGA Deixa-me,
deixa-me! Só me apetece morrer!
1º Não
morrerás hoje, que eu não deixo. Vais ver: amanhã será outro dia. Recomeças a
trabalhar, encontras logo quem te queira, não te faltarão gajos. E teatro,
muito teatro! Porque é nisso que tu és valiosa para a humanidade, ouviste! Para
a humanidade e para ti! Afinal, és Perséfone ou a Marta?
A RAPARIGA Não quero
ser a Perséfone! Não quero partilhar a minha vida entre o céu e o inferno! Mais
vale vencer o meu destino matando-me!
2º Ah,
pudéssemos nós apagar a memória com uma esponja!
1º Não podemos
varrê-la, mas podemos integrá-la naquilo que somos. Torna-te no que és, Marta:
uma artista que incendeia o coração e a mente de um público ansioso! E tu, meu
querido camarada, torna-te no mestre sensível, honesto e bondoso que na verdade
és!
IV ACTO
( Escondem-se numa antigo palacete abandonado, em um dos
lados do palco coloca-se uma placa com a palavra «Vende-se». O cenário deve
representar o antigo palacete e o seu abandono, dando a sugestão de degradação,
velhice, memórias das vidas que ali habitaram através de sinais. Chove
copiosamente lá fora.)
A RAPARIGA O Roxo
desapareceu, nunca mais volta para nós!
2º Qual quê,
volta sim. Foi com toda a certeza comprar víveres para a gente.
A RAPARIGA Dois
estranhos vagabundos...
2º Três.
A RAPARIGA Pois. Eu
partirei, hoje ou amanhã. Vós sois aquilo que escolhestes.
2º É verdade.
Tu irás embora necessariamente. Tens recebido muitas chamadas no telemóvel?
A RAPARIGA Dos meus
pais, do meu irmão, do meu namorado, muitas. Estão preocupadíssimos.
2º E que lhes tens dito?
A RAPARIGA Que me
encontro na casa de uma amiga. Na verdade eu até tenho um pequeno apartamento
alugado; eles sabem que me refugio lá em certos períodos. Já não se admiram.
Entretanto, gastou-se-me a bateria do telemóvel.
2º É altura de
te perguntar: como é que foste parar àquele sítio onde te encontrámos?
A RAPARIGA Nem eu
sei. Estive hospitalizada algumas horas por causa de um violento ataque de
pânico, o Zé, o meu namorado...
2º Não o ex...
A RAPARIGA Claro,
refiro-me ao actual, que é um excelente rapaz...
2º E que
ignora muita coisa da tua vida...
A RAPARIGA Sabe
bastante, mas não tudo, principalmente não se apercebe da atracção que o outro
continua a exercer...é mais novo do que eu...Bom, dizia eu que o Zé esperou no
hospital aquelas horas todas, e levou-me naturalmente para casa dele. No dia
seguinte senti-me horrivelmente sufocada, oprimida, não tinha perto de mim
ninguém capaz de me ouvir, com quem pudesse desabafar, que fosse capaz de me
dar um auxílio que eu já não conseguia encontrar no Zé, no meu irmão, e muito
menos nos meus pais...
2º Que sempre te aconselharam a romperes com o outro,
é claro.
A RAPARIGA Certamente.
Mas falta-lhes saúde e autoridade para me ajudarem nas decisões...
2º Compreendo.
O teu respeito por eles não é famoso, inclusivamente pelo teu irmão?
A RAPARIGA Além de
ser muito mais novo, é desbragado nas relações com sexo feminino...As mulheres
para ele são objectos de que ele se serve e logo deita fora. Por isso não sabe
fornecer outra explicação senão esta: o Carlos, o meu ex, serviu-se
simplesmente de mim e quando se fartou deitou-me fora
2º E tu, é
claro, não queres que isso seja verdade.
A RAPARIGA Não nego
que isso possa ser verdade, mas tenho-me recusado a admitir. Como já te disse,
continuamos a trabalhar juntos, eu também preciso dele por causa disso, de
resto ele possui muitos e bons contactos, e o meu mundo é o dele, dos espectáculos...
2º Pois, essas
dependências, se calhar mútuas, transtornam completamente os teus sentimentos.
Terás de te afirmar a ti própria, sem qualquer dependência. Não te resta outra
saída.
A RAPARIGA Claro que
eu sei isso. Ou, pelo menos, às vezes percebo isso perfeitamente. Fui capaz de
romper com (pausa) o namoro, digamos assim...mas nunca pensei seriamente
em romper com aquilo que nos une.
2º É o diabo.
Essas coisas são de facto muito complicadas. Não é muito diferente de passarmos
o resto das nossas vida a vermos semanalmente a mulher de quem nos divorciámos,
por causa dos filhos. Até tudo passar com o tempo, é muito penoso. Mas este
caso tem que ser mesmo assim, trata-se de seres inocentes que estão em jogo,
agora o teu caso parece-me menos eterno.
A RAPARIGA Quando
sinto o que eu sinto, o presente é eterno. É como se estivesse engaiolada num
cubo, sem portas e sem janelas.
1º (Que já
se encontrava à porta, em silêncio.)
Foste tu que te meteste nesse cubo, ou que o construíste à tua volta!
(A Rapariga assustas-se.)
A RAPARIGA Poça,
assustaste-me!
1º Está bem,
está bem, foi só um pequenino susto. Trago aqui a nossa comidinha neste saco.
2º E no outro?
1º Estou completamente encharcado. Lá fora é um
dilúvio. Neste saco trago algumas roupas que comprei, para ti, para mim, e uma
capa para a chuva, espero que gostes dela, Marta. (Retira e mostra.)
Veste este casaco ó camarada! (O 2º enverga-o e dá uma volta sobre si
próprio com ar trocista.) Maravilha! Acertei em cheio no teu tamanho! Para mim
comprei este blusão (Veste-o .) Que acham?
A RAPARIGA Óptimo. E
é de marca! Ai, ai, estamos a ceder ao consumismo, ou quê?
1º Estamos,
estamos, sempre estivemos. Olha, para ti não comprei mais nada, é muito
complicado comprar roupa de mulher...
A RAPARIGA Não, deixa
lá, não preciso. Aliás, eu vou-me embora daqui a pouco. Com essa capa tapo as
nódoas. Só preciso mesmo é de um banho. Sinto-me horrivelmente suja.
2º É fácil,
vais lá fora com esta chuvada toda e lavas-te.
A RAPARIGA Olha que
até é um boa ideia! E não está frio.
1º É uma boa
ideia, sim senhor. Despes-te lá fora, pões a capa por cima e toca a andar!
Entretanto, nós pomos esta lareira em acção. Temos aqui umas cadeiras velhas
que vão servir muito bem.
(A rapariga sai.
Pouco depois solta pequenos gritos
quando a chuva cai com alguma violência sobre o corpo desnudo.)
2º Então
decidiste que devíamos regressar à civilização?
1º Para ti
não tenho dúvidas de que era o melhor.
2º Pois.
Realmente tenho que me apresentar novamente à Junta Média, sou obrigado quer
queira quer não queira, senão perco tudo.
1º Aí está.
E fores dado como apto para algum serviço mais leve, tens de voltar ao teu
mundo. E como não estás completamente maluco...
2º Ai sim?
Mas já estou um bocado?
1º Não estou a
brincar com coisas sérias. Não sou médico nem coisa nenhuma, mas tens problemas
de saúde que necessitam de tratamento. Aliás, vejo-te poucas melhoras nessa
espécie de trauma em que tu vives. Tens de te reconciliar com a tua profissão,
em primeiro lugar...o resto há de vir com a passagem do tempo.
2º Portanto,
segundo a tua opinião, tenho vivido este último ano como se tivesse sido umas
férias.
1º De alguma
maneira até foi. O mês de férias que as pessoas gozam não serve de facto como
aquela separação necessária para retomar a realidade? Não poderás tu
reconciliares-te com a Gabriela?
2º Não há
hipótese.
1º Porquê??
2º Primeiro,
do meu lado, o amor ficou ferido de morte...
1º Ora, ora,
uma grande ferida também se cura.
2º Era uma
prova, um desafio demasiado grande para mim; e depois, há uma razão de monta:
já estamos separados há dois anos, e ela casou com outro... Como queres que
seja possível??
1º Enfim,
assim seja. Um parêntesis: anda por aí basta polícia...
2º Não à
procura da gente...
1º Claro que
não. Devem andar à procura dos cadáveres...mas isso já foi de manhãzinha cedo,
quando saí, entretanto já devem ter resolvido o imbróglio.
2º Portentoso
mistério...esse dos cadáveres!
(A rapariga entra,
embrulhada na capa.)
A RAPARIGA Até que
não está frio. Está fixe! Posso colocar aí a roupa a secar?
(O Roxo ajuda-a a colocar a roupa interior perto do lume.)
1º Rapariga
do século vinte e um: prega com a roupa íntima a secar à frente dos olhos de
dois marmanjos e pronto!
A RAPARIGA Se te
incomoda eu tiro-as! (Ri-se.)
1º Todas
encharcadas não incomodam a nossa líbido. Olhem lá, de que é que falavam quando
eu cheguei lá de fora?
A RAPARIGA Estava a
relatar o sucedido comigo, como é que fui parar àquele sítio onde me
encontraram...
1º E então?
A RAPARIGA Então foi
que, como eu dizia ao Tiago, depois de sair do hospital...
1º Com o
grande ataque de pânico que sofreste...
A RAPARIGA Exacto. O
Zé levou-me para casa dele...o meu namorado...mas no dia seguinte , estava ele
ainda a dormir - costumamos deitarmo-nos
muito tarde -, não sei se eu estava acordada ou se estava a dormir, quase não
me lembro o que fiz, vesti-me, saí e nem me lembrei que tinha o meu carro ali à
porta, pus-me a andar como um autómato, saí da vila – que é relativamente
pequena - vi-me em plena estrada a circular ao lado dos carros...um carro parou
ao meu lado, dois senhores ofereceram-me boleia, acharam com certeza que eu não
ia lá muito bem...
2º E tu
aceitaste?? Confiaste em dois tipos desconhecidos??
A RAPARIGA Ora, eu
sabia lá o que fazia! Já te disse que era um autêntico autómato, devia estar
sonâmbula. Bem, nada de mal aconteceu, no caminho eles só falavam de assuntos
que não percebia... tinha o cérebro bloqueado...quando se encontravam perto do
destino, uma elegante vivenda, eu pedi para sair...
2º E eles, o
que disseram eles?
A RAPARIGA Qualquer
coisa como «Você não está nada bem, porque não nos deixa levá-la ao hospital?»,
até me ofereceram hospitalidade em casa deles...arranjei uma desculpa qualquer,
e pronto...foi aí perto que os meus amigos me encontraram...acho que,
entretanto, despertei completamente para a realidade.
1º Para a
realidade? Falta saber qual delas é.
2º Credo,
homem! Mas existem mesmo duas dimensões?? Encontramo-nos noutro mundo??
1º Nem tanto
assim, nem tanto assim. Referia-me à Marta. Ainda não se ajustou à realidade.
A RAPARIGA Perdi a coragem, é só isso. Tenho de
regressar, talvez queira até regressar, mas tenho medo de ter medo...
2º Expressão
forte, Marta, expressão forte!
1º Quem sofre
de ataques de pânico, tem medo deles, não é compreensível?
A RAPARIGA Se ele se
transformasse num príncipe, beijá-lo-ia na boca, e talvez desaparecessem os
pânicos...
1º Vê lá se te
sai um sapo outra vez. De qualquer modo, já sofrias de ataques antes dele. É
esse fundo, esse lastro que tu carregas, que devias contra-atacar, já que
falamos em ataques. E nenhum de nós, nem eu, nem o Tiago, e menos ainda tu,
temos condições para te curar disso. Terás de regressar também e submeteres-te a
um terapia rigorosa. Mas que sei eu dessas coisas?
2º Já
repararam na quantidade de objectos, de velharias, espalhadas pelos quartos
desta mansão? Já percorri todas as divisões. Está tudo esburacado, estuques a
cair, papel de parede rasgado, tanta coisa que devia ter sido de boa qualidade.
A RAPARIGA Eu também
já explorei uma parte. Não esquadrinhei tudo porque mete medo....tenho nojo das
ratazanas...durante a noite nem sei como vou conseguir dormir. Encontrei uma
coisa espectacular, vou mostrar-vos! (Traz uma boneca.) Não deve ter
sido muito bonita? (Finge que a adormece ao colo.)
2º Ah, deve
ter sido o encanto de alguma criança! Alguma menina de cabelos loiros, com
laçarotes...que se tornou mulher, teve filhos, netos talvez, e depois
apagou-se.
1º O teu
instinto puxa-te para a maternidade, Marta. Está nos teus projectos?
A RAPARIGA Até que
gostava! Quando regressar vou ter uma conversa muito séria com o Zé, resolver a
nossa situação...sei lá, talvez me case. Esta gente que viveu aqui deve ter
sido mesmo muito rica!
1º Ah sim,
mesmo muito. Cá para mim a história deste palacete deve ter sido assim: viveram
aqui sucessivas gerações; da última só restou uma mulher, que viu morrer todos
os outros, e ficou só...
A RAPARIGA Ou a
família dispersou-se, foram viver para outros lugares, e abandonaram a senhora,
muito velhinha...
2º Que não
quis largar a casa onde nascera...
1º Se calhar
ainda se encontra por aí o esqueleto.
A RAPARIGA Jesus, a
tua imaginação é mesmo negra! Já não saio mais deste salão!
1º Pode ser
que o esqueleto esteja aqui mesmo...
A RAPARIGA Mau, estou
a ficar com pele de galinha! Acho que vou dormir no meio de vós os dois...
1º É mais
sensato não o fazeres. Pelo menos eu não sou feito de pau.
2º O mais
perigoso serei eu, que tenho insónias. Tu cais a dormir que nem uma pedra.
1º Com a Marta
aconchegada a mim?? Vê lá, vê lá Marta! Não me responsabilizo!
A RAPARIGA Uma ménage
à trois. Ficariam felizes se isso acontecesse?
2º Ai, ai, ó
Marta! Nessas festanças não alinho! O que vale é que a Marta está a fazer
teatro.
1º O camarada
Tiago ficou na pré-história. Neste ano inteiro só falou de uma mulher, e todos
nós sabemos de quem foi. A bem dizer a Marta também tem na cabeça só um homem.
Não seria uma ménage à trois, mas com demasiada gente...Também não
alinho.
A RAPARIGA E eu ia
sofrer um ataque de pânico do caraças!
1º Ainda não
consegui descortinar se é o teu inconsciente que os provoca, se é o teu grande
Super-Ego.
2º
Provavelmente os dois não se entendem.
1º
Provavelmente. Olhem para isto, descobri no sótão esta caixa de latão!
A RAPARIGA O que é
tem lá dentro?
1º Fotografias, antigas que se fartam. Vejam! (Retira
um punhado de fotografias e vai mostrando-as.) Aqui temos uma senhora
bastante idosa, vestida de negro, com ar altivo...nesta, a mesma senhora,
porque é ela de certeza, é uma mulher jovem, lindíssima...
A RAPARIGA Com um
vestido espectacular!
1º Soberbo.
Soberbo vestido e soberba mulher. E aqui a senhora quando era menina...Caracóis
claros, deviam ser loiros, laçarotes...botins nos pézinhos, como se usavam
naqueles tempos.
2º Depois o
tempo varreu tudo, o pó cobriu todas as coisas que fazem a vida de uma pessoa.
As memórias são os objectos inúteis que acumulámos durante a vida.
A RAPARIGA Eu cá
possuo poucos. Já mudei de terra e de apartamento umas quatro ou cinco vezes.
Prefiro-os já mobilados.
1º Talvez seja
altura de começares a construir o teu ninho. As aves emigram, mas retornam
sempre ao lugar onde nasceram.
A RAPARIGA Isso tanto
se aplica a mim como a ti.
1º Tens razão.
2º Vou lá
acima arranjar mais lenha! (Tiago sai de cena.)
A RAPARIGA (Colocando a cabeça no ombro do Roxo.) Não
quero perder-te nunca! És tão inteligente, tens sido tão bom para mim! (Pausa.)
Conhecemo-nos apenas há uns poucos de dias, e, no entanto, sinto já por ti uma
a amizade tão profunda que não consigo explicar...e tu mostras-te
indiferente...
1º
Indiferente?? Olha que não...
A RAPARIGA Não é
indiferente...comportas-te comigo como se não acreditasses na veneração que
sinto por ti...adoro-te, não acreditas?
1º Dizem que a
admiração não é amor...
A RAPARIGA E que raio de coisa será o amor?
( Ele acaricia-lhe os cabelos, beija-lhe
repetidamente as faces, coloca-lhe as mãos nos seios, desce a boca para a boca
dela. Ela sorri e dá-lhe os lábios. Porém, quando a mão dele desce para
o interior das coxas, ela afasta-a.)
A RAPARIGA É melhor
não! Quase de certeza que vou ter uma ataque de pânico a seguir!
1º Uff, estou
a arder...vou transformar-me em cinzas!
A RAPARIGA Desculpa!
Gosta sempre de mim, está bem? Não me desprezes, não?
1º Desprezar
este anjo que subiu à terra? A Perséfone? Jamais! Vivemos tempos muito
estranhos. Andamos tensos, ansiosos, cada de nós carrega às costa um pesado
problema para resolver...que tem urgentemente de resolver!
2º (Gritando
das dependências superiores. Não entra em cena.) Meninos! Encontrei o esqueleto!
A RAPARIGA e o 1º (Em uníssono.) O esqueleto
da velha??
2º O esqueleto
de uma enorme ratazana! Foi nesta mansão assombrada que fizeram os filmes do Allien!
(Marta abraça o Roxo e riem-se ambos.)
1º Bem, pelo
menos o Tiago já começa a recordar-se dos filmes que viu. É um bom começo!
V ACTO
2º Há dois dias e duas noites que chove sem
parar, é demais! E eu que gosto tanto de caminhar...E os barulhos estranhos que
oiço de noite, neste casarão! Parece o cenário perfeito de um filme de
terror...
A RAPARIGA (Com voz cansada.) Na verdade está a ficar
um ambiente saturado...Já esgotámos os víveres e até as conversas.
1º Não, as
conversas não se esgotaram, estamos muito longe de esgotá-las (pausa.) O
que sucede é que tu andas sempre à volta do mesmo...
A RAPARIGA
Desculpem-me, por favor desculpem-me!
2º Ó Marta,
estás sempre desculpada!
1º Com
certeza, sobre isso não tenhas receios. Eu e o Tiago encontramo-nos em férias,
e até foi óptimo tu apareceres. Sem ti, imagina a cena: dois velhos resmungões
a ressonar cada um para o seu lado!
A RAPARIGA Então,
então, onde é que estão aqui dois velhos? Eu é que vim tirar-vos do sossego...
1º Não, nada
disso. Vamo-nos entender de uma vez por todas: o Tiago tem de regressar à vida
que o espera lá fora, tu surgiste no fim das nossas férias.
2º Das tuas
também??
1º
Provavelmente, muito provavelmente....Tenho andado a magicar na minha
vida...sempre soube que isto não podia continuar indefinidamente. Na realidade
não somos, nem poderíamos ser jamais, uns pobres-diabos sem-abrigo...temos
obrigações para com outros seres humanos, temos casa, o Tiago é professor, eu
posso montar uma actividade por conta própria.
2º Estivemos a
viver no passado ou no futuro?
1º Sei lá. Nem
tínhamos futuro no passado, nem agora, onde estamos, temos grande futuro. Em
suma, não vamos com certeza regressar ao mesmo.
2º Nem já
somos os mesmos.
1º Eis essa
certeza pelo menos.
A RAPARIGA Tornemo-nos
no que somos, como costumas dizer, amigo.
1º Nem mais.
Torna-te no que és. Se vivesse no deserto seria um verdadeiro beduíno, mas não
vivo. Aqui não há mais lugar para
nómadas. Ou integramo-nos, ou somos excluídos.
2º Não te
vejo a submeteres-te. A tua neura é bem diferente das nossas....nós, eu e a
Marta, sofremos de um mal que talvez seja curável, tu...
1º Já não
sei se será muito diferente. Sofremos os três de paixões tristes. Se calhar
somos tão normais como toda a anormalidade que enche as cidades...
2º Só que nós
fugimos da cidade.
1º É. É uma
escapatória como outra qualquer. Já não existem paraísos naturais, excepto nos
folhetos turísticos. Já não existe mais liberdade no exterior da civilização.
2º Todavia,
que terrível é esta civilização!
1º A História
avança pelo lado mau. Porém há muita resistência, camarada.
2º O
terrorismo?
1º Esse é
horrível, mas não deixa de ser resistência de algum modo, bem, do pior dos
modos é claro. E não existe terrorismo nos Estados, nos impérios e nesta
globalização?
2º Parece-me
bem que sim. Quantos serões já passámos os dois a conversar sobre isso...
1º Ora bem,
então é tempo de passarmos a outras formas de resistência. A vagabundagem de
quem recebe um ordenado mensalmente como tu, e possui contas poupança, é apenas
um exílio, um luxo...
2º Estás a
desistir visivelmente do projecto que traçámos.
1º Os nossos projectos são, sempre foram, diferentes;
apenas coincidiram. Marta, como eram esses dois que te deram boleia? Qual era o
aspecto deles?
A RAPARIGA
Sinceramente não me lembro. Não estava cega, mas não via nada. Vou dizer
uma coisa que até me faz arrepiar...
1º Sim...
A RAPARIGA Quando
vos vi, quando tu e o Tiago vos sentastes ao meu lado, naquela curva da
estrada, tive a esquisita sensação de que já vos tinha visto, que vos conhecia
de algum lado...
2º Outro
mistério!
1º Pois, outro
mistério. Ouve uma coisa: como era a vivenda para onde eles se dirigiram,
falaste numa vivenda...
A RAPARIGA Sim,
falei, mas é engraçado: não sei porque é que falei nisso, numa vivenda...
1º Não??
A RAPARIGA Acredita,
agora não me lembro de vivenda alguma...saiu-me aquilo pela boca fora...
2º Não terás
sonhado com isso? Se calhar vieste no teu carro, deixaste-o em qualquer sítio,
não terás sonhado?
A RAPARIGA Ai, já
estou com suores frios! Qual das situações sonhei: o hospital e a casa do Zé? A
minha fuga? Ou estes dias que temos passado juntos?
1º O que
seria óptimo é que te convencesses que o teu ex não fora mais que um
pesadelo...
A RAPARIGA Tens
razão. No entanto, tenho sentido uma estranheza nestes últimos dias, como se eu
já não existisse...vou vestir-me, estou a ficar com muito frio...
2º Se não
existisses não sentirias frio.
A RAPARIGA E se
fosseis vós que não existisses? Mais este palacete que parece um sepulcro?
2º Então
nesse caso estarias a apanhar uma valente chuvada.
A RAPARIGA Talvez
nem esteja a chover.
1º Tira a capa
que te cobre!
2º Alto lá,
não estás a exagerar?
1º Cala-te um
bocadinho se fazes favor!
A RAPARIGA ( Sorrindo
com malícia.) Queres provar que não existo, ou que sois vós que não
existis?
2º Bem, pelo
menos conseguiste que ela sorrisse, já não é mau!
1º Aceitas o
desafio? Arriscas? Vamos a uma aposta! Conheço duas apostas famosas: a primeira
diz mais ou menos assim: eu não tenho a certeza que Deus existe; vou
comportar-me correctamente nesta vida; se ele existir, serei premiado; se não
existir, portei-me correctamente.
2º E a outra
aposta?
1º Também a
deves conhecer: escolho a minha vida como se fosse uma escolha para toda a
eternidade; portanto, escolhê-la-ei o melhor possível; se existir um eterno
retorno, isto é, se as vidas se repetirem, eu voltarei a viver a escolha
correcta que fiz.
2º
Extraordinárias apostas! Não me lembro de as ter ouvido alguma vez. Esta
amnésia deixou-me sem referências.
1º Voltarás a
recuperar a tua memória, meu amigo, e que excelente deve ter sido! Então, que
decides Marta?
A RAPARIGA Entendo.
Tenho de escolher. O acto que vou praticar, seja ele qual for, é uma escolha para
toda a eternidade!
1º Nem mais.
Assim como decidires voltar para os braços doentios do teu ex, ou nunca
mais.
(Marta despe repentinamente a capa. O momento é fugaz.
Logo a escuridão se estabelece. Estalam trovões, a tempestade abate-se. Soam
violentos estrondos quando bocados do telhado caem.)
VI ACTO
(Encontram-se novamente na mesma curva da estrada onde a
peça se iniciou.)
1º É chegada a
hora de nos despedirmos uns dos outros.
2º Tem que ser
mesmo?
1º Tem.
2º Não me acho
ainda preparado.
1º O próprio
regresso irá preparar-te. A vida é a soma das decisões que tomamos.
2º Sinto-me
tão débil e cobarde, como um soldado na terra de ninguém. Aconteceram tantas
coisas nestes dias que o meu coração não se mostra lá muito forte para tomar
decisões.
1º É ansiedade
com certeza. É curioso, nunca te perguntei onde é que vives, isto é, onde é que
vivias...
2º Pois, mas
mais curioso ainda é que não recordo exactamente em que terra habitava! Cidade?
Aldeia? Perto ou longe? Lembro-me, no entanto, de que era uma vivenda, moderna,
espaçosa, pertence a um casal que me alugou uma parte da casa.
1º Recordas
isso? Óptimo. A tua memória está a regressar aos poucos. Acharemos a casa.
2º Não é tão
certo assim: recordo isso porque sonho com ela muitas vezes. Nesse sonho
deambulo dentro da casa como se estivesse perdido num labirinto.
1º Não sabes
que a casa simboliza o nosso inconsciente?
2º Devo ter
lido com certeza. E se a casa existir realmente? Regresso ao labirinto?
1º Podes mudar
sempre de casa (pausa) e de inconsciente.
2º Tenho de me
encontrar a mim mesmo, em suma.
1º Recordas o
tal casal, os proprietários? Vê lá, faz um esforço, quem eram? Ao falarmos
neles, sentes maus sentimentos, ou bons?
2º Boa
pergunta! Não me lembro como eram, o que faziam, nada...porém, sinto uma emoção
agradável ao falar nesse casal desconhecido...Devo ter ido para lá quando se
verificou o divórcio.
1º Sim, isso
sabemos nós: a Gabriela ficou com a casa onde vocês viviam. E tu, como és uma
excelente pessoa, só levaste contigo os teus livros, não foi?
2º Pois, deve
ter sido assim.
1º De que
maneira ocupavas o tempo? Na casa para onde foste...
2º Não me
lembro, já te disse que não me lembro de coisa nenhuma. Contudo...
1º Diz.
2º ...neste
ano de vagabundagem fui acometido às vezes, até foram vezes bastantes, de uma
vontade de escrever...Talvez me ocupasse escrevendo...
1º Chegámos
muito perto de alguma coisa. Talvez sejas escritor. Quando regressares poderás
escrever uma novela...
2º Ou uma peça
de teatro...
1º Ora bem.
2º Mas agora
tornou-se-me nítida uma ideia...
1º Ora diz,
camarada.
2º Tu também
não recordas muita coisa! Onde vivias tu? Quem era a tua mulher? Sim, porque
pelo menos já me contaste que eras, ou melhor, que és casado...
1º
Apanhaste-me em cheio, camarada! Na verdade, tenho andado a dissimular a
minha amnésia...Perguntas-me e não sei responder-te. Apenas tenho a certeza de
que estava farto da vida que levava. Devia ser uma chatice de vida burguesa!
2º Então vamos
ter um regresso muito complicado: tu para a vida burguesa, eu, para o
labirinto...
A RAPARIGA E eu para
um namorado por quem não estou apaixonada!
1º E que
importância é que isso tem? É melhor a paixão pelo outro? É melhor uma
obsessão, uma doença? Ama este namorado actual, e apaixona-te pelo teatro!
Corta com o passado e cria futuro!
A RAPARIGA É fácil de
dizer. Até o Tiago está assustado com o regresso, quanto mais eu! Até tu, se
calhar! Sinto que as minhas forças chegaram ao fim...e não vejo saída. (Cobre
a cabeça com as mãos.) Vou ter muitas saudades de ti, e do Tiago...Não me
queres acompanhar? Não me ajudas mais?
1º Claro que
vou acompanhar-te até à tua casa, seja ela onde for! Primeiro vamos achar a do
Tiago, depois segue-se a tua. E continuaremos amigos sempre. (Abraça-a carinhosamente.)
Iaco Ora viva! (O casal dos falecidos está
sentado atrás deles. Exibem curiosidade, sem medo e sem surpresa. Os
outros três viram-se para trás e assoma-lhes nos rostos o mais profundo
espanto. Reconhecem imediatamente os mortos. A rapariga é acometida por um
violento ataque de pânico. O 2º agarra com força a cabeça, seguidamente
leva a mão ao lugar do coração. O 1º sacode o susto e o assombro, e
tenta, com esforço, reagir. Os dois mortos não apresentam qualquer ferimento.)
Iaco Quem sois, afinal? Andamos a ver-vos há já
uma data de tempo. Não vivem num pardieiro? Vagabundos ou mendigos?
1º ( Com
um enorme esforço.) És o Adalberto?
Iaco
Nunca tal me chamaram. O meu nome é Iaco, mas bastante gente conhece-me
pelo nome de Dioniso, e aqui a minha consorte (Olha para ela com carinho.)
chama-se...
Flora
Flora...
Iaco Somos biólogos, biólogos de profissão é
claro. Investigamos umas avezinhas em vias de extinção, percebem? Vimos-vos a
cirandar por aqui e por ali, desde ontem. Fizeram um grande berreiro no
casebre...uma bebedeirazinha, ah?
1º Vimos
um desastre...dois mortos....
Iaco Não vimos nada. Foi aqui perto?
1º
Sim, bem perto...um carro contra uma árvore.
Iaco
Népia, nicles, não vimos nem ouvimos nada. Tínhamos preferido dormir no
casebre, mas já estavam a ocupá-lo. Servimo-nos dele com frequência. Acabamos
por dormir ao relento, mas temos sacos-cama, estamos habituados (Dá um beijo
carinhoso na companheira, que lho retribui.)
Flora
Mas ouve lá, querido, é verdade que não vimos nem ouvimos o desastre de
que fala este senhor, mas aconteceu realmente um acidente horroroso. Deve haver
aí uma confusão.
Iaco Ah, sim, é verdade!
Flora
É que soubemos na aldeia, hoje de manhãzinha, que houve realmente uma
tragédia: um automóvel despenhou-se da ponte, dizem que morreram três pessoas,
dois homens e uma mulher. Horrível! Não fomos lá, é claro, nem vamos, deve
estar tudo cheio de polícia e mirones. Logo três! Que desgraça!
Iaco É verdade, é verdade. Acontecem acidentes
todos os dias (pausa)
Afinal, sois mendigos, ou quê?
Flora É
melhor deixá-los sossegados. Parecem tão tristes! Talvez tenham fome...
( O 2º vagabundo tomba mortalmente com um ataque
cardíaco. O companheiro acorre, verifica rapidamente que o amigo está morto.
Abraça-o, faz-lhe uma carícia no rosto. Subitamente, a rapariga tomba no
solo desamparada. Fica inerte e rígida.)
1º (Com
desespero.) Horror, horror! Derrotado! A minha razão é um fracasso.
Fantoches. Somos apenas maquinismos accionados pelo desejo...Já estávamos
mortos e não sabíamos! Estivemos a viver apenas o lapso de segundo entre a vida
e a morte. ( Prostra-se de joelhos,
ergue as mãos para o alto.) Nada em mim se eleva para o céu. Nada!
( Os mortos levantam-se tranquilamente e afastam-se.)
Iaco Okei, então adeus, se não quereis falar,
fiquem bem! Realmente é estranho o quadro que vemos: um homem e uma mulher
deitados ao lado um do outro e que parecem dormir; um terceiro indivíduo
ajoelhado, parecendo rezar! Pergunto-me, Flora, se nos estão vendo e ouvindo.
Seremos nós os vivos e eles os outros, ou ao contrário?
Flora Iaco,
a droga faz das pessoas autênticos zombies...
Iaco De
facto...estarão? Pobres diabos que desistiram de viver! Deixamos alguma coisa
para comerem. Flora, vamos tratar das nossas aves em vias de extinção!
Flora A mulher é bem bonita. Porém, tem no rosto
uma expressão fechada, rígida, talvez seja uma pessoa dura, insensível, não
achas?
Iaco Talvez
se pareça com a nossa prima Perséfone, só desperta na primavera.
Flora Quem
sabe, meu querido? A nossa prima anda por aí metida em tanta gente!
Iaco Então
traz tu depressa a primavera!
Flora E tu,
a quem chamam Dionísio?
Iaco Eu
trago a desmesura, o excesso, a folia!
Flora É
isso que me atrai para ti!
Iaco Vamos
embora, ao nosso infindável trabalho de reconstituir o mundo.
FIM
NOZES PIRES
Agosto 2005
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