quinta-feira, 7 de maio de 2020

ALDEBARÃ


ALDEBARÃ

   Vou-me embora para Aldebarã!
  Aqui estou confinado a mim mesmo. Aqui apenas estou o que acaba em mim. Em Aldebarã não. Em Aldebarã poderei correr sobre os trilhos dos animais, ajoelhar no perfume das margaridas e das roselhas, do rosmaninho e das papoilas, dos pampilhos e das malvas, à beira dos caminhos e fazer má pontaria aos sapos com seixos do rio da minha aldeia. Ó, os sinos da minha aldeia!
Não vou para Pasárgada, meu querido poeta Manuel Bandeira, vou para Aldebarã! Não é mais longe que Pasárgada, basta um salto e um desvio. Lá tem praias macias e águas tão puras como um sorriso da criança, sei de fonte segura que é um sítio bom onde os amores perdidos são sempre achados e morre-se muito velho sem sofrimento algum. Vou-me embora!
Se acaso um dia perguntares onde fica Aldebarã, não esperes que te respondam. E mesmo que alguém entendesse a pergunta, dar-te-ia sempre respostas pragmáticas, com um sorrisinho de compaixão. Ergue-mo e digo: o que é não é sempre, passou já quando falas, o amanhã não é ainda mas pode ser, só é real o necessário.
  Na verdade, ninguém sabe. E ainda que o soubesse, tê-lo-á esquecido. Perguntarás somente àqueles em cujo olhar brilhar uma luz secreta, trazida das grutas antiquíssimas onde soprámos com ocre vermelho o contorno das nossas mãos.
  Das perdas sem remédio a vida soma e segue, mas a cicatriz não deixa de ser cicatriz, por muito que se disfarce. Conta-se aquela história do náufrago que, tendo posto o pé em terra firme, achou-se o mais feliz dos homens.
 Contudo se, ainda que em Aldebarã não creias, a tua consciência admite a sua possibilidade, é porque a desejas, e o que quer que faças, ficará doravante sob essa contradição. É o desejo por Aldebarã que subtrai sentido àquilo que na verdade não possui valor algum.
  Não sei se isto que digo é falso ou verdadeiro, mas convém acreditar que o movimento não é tudo. O que teve um início terá um fim.
 Múltiplos estuários possui o eterno fluir; já reparaste, todavia, que as águas passadas são as primeiras a alcançá-los? Eu sei, eu sei, que a vida é um fio-de-prumo: a casa que erguemos é uma teia opaca pendurada entre duas mentiras. Eu também ignoro onde fica Aldebarã, mas desejo-a desesperadamente quando me sopra um vento de aflição; quando a nostalgia se disfarça de outono no olhar cego das toupeiras das noites; quando o dia amanhece como um cadáver, e a alienação enche as ruas com cardumes agonizantes que repetem as horas.
Um destes dias vou partir para Aldebarã e pronto! Nada levarei comigo, para além desta humanidade tão nua como no instante em que nasci. Em Aldebarã voltarei a correr como um garoto, treparei ao cocuruto dos coqueiros e pintarei a manta; chapinharei na espuma das palavras, e cavarei um túnel até ao outro lado do mundo. Nenhuma culpa, nenhum pecado. Em Aldebarã a ideia corresponde à intenção, e as declarações de amor são absolutamente inúteis. As portas não têm ferrolhos, porque do que eu comer comerás tu. Só encontra Aldebarã quem possuir um coração orgulhoso; é de pé que lá se chega.
  Há quem diga que Aldebarã é uma estrela: nas noites sombrias contemplam-na à escuta de um sinal; há quem diga que é uma ilha que várias vezes emergiu e outras tantas desapareceu; há quem diga que não passa de uma miragem e que astuto é aquele que não se deixa enganar. Conforme imagino não é uma estrela ou ilha, mas constelação e arquipélago; uma cidade de pontes sobre canais, por onde navegam todas as diferenças; é Veneza à tardinha, é a Roma da Piazza Navona e Bernini, é a Florença da Ponte Vecchio e Cellini, é o Brasil de Sabará e de Ouro Preto, Barcelona e Granada, Delfos, o Nilo e o Amazonas; é uma casa comum onde a solidão é coisa do passado; um arvoredo sem muros, uma mão-cheia de amigos à volta de uma fogueira, uma merenda no campo sobre um campo de malmequeres, uma mesa redonda onde todos saciam a fome de justiça, e a palavra perfeita na hora do aperto. Não é, portanto, o outro mundo, mas este, humano simplesmente.
  Vou partir um dia destes e, se navegar for preciso, faço-me nómada ou marinheiro, mais de sete são as partidas do mundo. Não há deserto que a águia não vença, nem abuso e violência, mais tarde ou mais cedo, que não desfaleça vencido nas margens. Eu sei de ciência certa que à entrada de Aldebarã floresce a amendoeira; pelo seu fruto eu pressentirei o segredo da vida nova, a agitação rodopiante das infinitas virtualidades do possível.
Imediatamente se anularão os centros e os círculos, e o filho da noite galopará para nós trazendo o testemunho da Liberdade.
  Se chegares do Ocidente, inflecte para Oriente. Quando uma coruja te chamar pelo teu nome verdadeiro, saberás que é a Oriente que o olhar da esfinge contempla o nascer do sol.
  Não a olhes nos olhos (muitos cegaram por isso): Vê, antes, pelos olhos dela, emergir do sonho os verdes campos da atlântida naufragada. Colhe, então, a flor vermelha no lugar do coração.
  Um destes dias vou partir para Aldebarã. Levo a mente lúcida como um axioma de Espinosa e uma explicação de Marx. Definições, postulados e corolários, metáforas e metonímias, fábulas e alegorias, tudo será permitido, exceto doutrinas da cobardia e da resignação. Sem a ilusão parada dos otimismos e o sofrimento gratuito dos pessimismos. Não há paciência que resista a uma fossa de simulacros e mentiras. O lado dos vencidos é mais forte e mais verdadeiro que a história dos vencedores.
 Vou de mãos nuas, porque tudo que levasse só me empurraria para trás como um íman.
São tantos os vivos que a esperam e tantos os mortos que por ela morreram, que é mais fácil chegar a Aldebarã do que alcançares a Eternidade.
  Vou mas é partir para Aldebarã!
  Se me perguntas onde fica, não sei, mas asseguro-te que o amor e o ódio são as duas faces de Juno. Sempre que creres que és tu o horizonte, sempre te fugirá. É preciso andar muito, perseguir os rastros dos mortos derrotados, compreendendo, porém, que a boa filosofia pensa mais na vida do que na morte. Dos cemitérios e das valas comuns, soltar-se-á um clamor uníssono à tua passagem: escuta mas não pares, são os inocentes que a história da infâmia silenciou para que não se lembre Hiroxima e Nagasáqui, Estalinegrado e Dresden, Hanói e Santiago do Chile, Pinochet e Vilela, Salazar e Franco, Bagdad e São Salvador. Segue adiante, não chores, não é de lágrimas que os sem-nome, os filhos da terra, mais precisam, mas, antes, que a Terra Prometida não seja uma vã promessa.
  Dizes-me que tudo isto são palavras apenas? Que a única realidade é aquela que te dão a ver?
      E se o real fosse aquilo que Ainda-Não-É?

Nozes Pires






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