ALDEBARÃ
Vou-me embora
para Aldebarã!
Aqui estou
confinado a mim mesmo. Aqui apenas estou o que acaba em mim. Em Aldebarã não. Em
Aldebarã poderei correr sobre os trilhos dos animais, ajoelhar no perfume das
margaridas e das roselhas, do rosmaninho e das papoilas, dos pampilhos e das
malvas, à beira dos caminhos e fazer má pontaria aos sapos com seixos do rio da
minha aldeia. Ó, os sinos da minha aldeia!
Não vou para Pasárgada, meu querido poeta Manuel Bandeira,
vou para Aldebarã! Não é mais longe que Pasárgada, basta um salto e um desvio.
Lá tem praias macias e águas tão puras como um sorriso da criança, sei de fonte
segura que é um sítio bom onde os amores perdidos são sempre achados e morre-se
muito velho sem sofrimento algum. Vou-me embora!
Se acaso um dia perguntares onde fica Aldebarã, não
esperes que te respondam. E mesmo que alguém entendesse a pergunta, dar-te-ia
sempre respostas pragmáticas, com um sorrisinho de compaixão. Ergue-mo e digo:
o que é não é sempre, passou já quando falas, o amanhã não é ainda mas pode
ser, só é real o necessário.
Na verdade, ninguém sabe. E ainda que o soubesse, tê-lo-á esquecido.
Perguntarás somente àqueles em cujo olhar brilhar uma luz secreta, trazida das
grutas antiquíssimas onde soprámos com ocre vermelho o contorno das nossas
mãos.
Das perdas sem remédio a vida soma e segue, mas a cicatriz não deixa de
ser cicatriz, por muito que se disfarce. Conta-se aquela história do náufrago
que, tendo posto o pé em terra firme, achou-se o mais feliz dos homens.
Contudo se, ainda que em Aldebarã não creias,
a tua consciência admite a sua possibilidade, é porque a desejas, e o que quer
que faças, ficará doravante sob essa contradição. É o desejo por Aldebarã que
subtrai sentido àquilo que na verdade não possui valor algum.
Não sei se isto que digo é falso ou verdadeiro, mas convém acreditar que
o movimento não é tudo. O que teve um início terá um fim.
Múltiplos estuários possui o eterno fluir; já
reparaste, todavia, que as águas passadas são as primeiras a alcançá-los? Eu
sei, eu sei, que a vida é um fio-de-prumo: a casa que erguemos é uma teia opaca
pendurada entre duas mentiras. Eu também ignoro onde fica Aldebarã, mas
desejo-a desesperadamente quando me sopra um vento de aflição; quando a
nostalgia se disfarça de outono no olhar cego das toupeiras das noites; quando
o dia amanhece como um cadáver, e a alienação enche as ruas com cardumes
agonizantes que repetem as horas.
Um destes dias vou partir para
Aldebarã e pronto! Nada levarei comigo, para além desta humanidade tão nua como
no instante em que nasci. Em Aldebarã voltarei a correr como um garoto, treparei
ao cocuruto dos coqueiros e pintarei a manta; chapinharei na espuma das
palavras, e cavarei um túnel até ao outro lado do mundo. Nenhuma culpa, nenhum
pecado. Em Aldebarã a ideia corresponde à intenção, e as declarações de amor
são absolutamente inúteis. As portas não têm ferrolhos, porque do que eu comer
comerás tu. Só encontra Aldebarã quem possuir um coração orgulhoso; é de pé que
lá se chega.
Há quem diga que Aldebarã é uma estrela: nas noites sombrias
contemplam-na à escuta de um sinal; há quem diga que é uma ilha que várias
vezes emergiu e outras tantas desapareceu; há quem diga que não passa de uma
miragem e que astuto é aquele que não se deixa enganar. Conforme imagino não é
uma estrela ou ilha, mas constelação e arquipélago; uma cidade de pontes sobre
canais, por onde navegam todas as diferenças; é Veneza à tardinha, é a Roma da
Piazza Navona e Bernini, é a Florença da Ponte Vecchio e Cellini, é o Brasil de
Sabará e de Ouro Preto, Barcelona e Granada, Delfos, o Nilo e o Amazonas; é uma
casa comum onde a solidão é coisa do passado; um arvoredo sem muros, uma
mão-cheia de amigos à volta de uma fogueira, uma merenda no campo sobre um
campo de malmequeres, uma mesa redonda onde todos saciam a fome de justiça, e a
palavra perfeita na hora do aperto. Não é, portanto, o outro mundo, mas este,
humano simplesmente.
Vou partir um dia destes e, se navegar for preciso, faço-me nómada ou
marinheiro, mais de sete são as partidas do mundo. Não há deserto que a águia
não vença, nem abuso e violência, mais tarde ou mais cedo, que não desfaleça vencido
nas margens. Eu sei de ciência certa que à entrada de Aldebarã floresce a
amendoeira; pelo seu fruto eu pressentirei o segredo da vida nova, a agitação
rodopiante das infinitas virtualidades do possível.
Imediatamente se anularão os
centros e os círculos, e o filho da noite galopará para nós trazendo o
testemunho da Liberdade.
Se chegares do Ocidente, inflecte para Oriente. Quando uma coruja te
chamar pelo teu nome verdadeiro, saberás que é a Oriente que o olhar da esfinge
contempla o nascer do sol.
Não a olhes nos olhos (muitos cegaram por isso): Vê, antes, pelos olhos
dela, emergir do sonho os verdes campos da atlântida naufragada. Colhe, então,
a flor vermelha no lugar do coração.
Um destes dias vou partir para Aldebarã. Levo a mente lúcida como um
axioma de Espinosa e uma explicação de Marx. Definições, postulados e
corolários, metáforas e metonímias, fábulas e alegorias, tudo será permitido,
exceto doutrinas da cobardia e da resignação. Sem a ilusão parada dos otimismos
e o sofrimento gratuito dos pessimismos. Não há paciência que resista a uma fossa
de simulacros e mentiras. O lado dos vencidos é mais forte e mais verdadeiro
que a história dos vencedores.
Vou de mãos nuas, porque tudo que levasse só
me empurraria para trás como um íman.
São tantos os vivos que a esperam
e tantos os mortos que por ela morreram, que é mais fácil chegar a Aldebarã do
que alcançares a Eternidade.
Vou mas é partir para Aldebarã!
Se me perguntas onde fica, não sei, mas asseguro-te que o amor e o ódio
são as duas faces de Juno. Sempre que creres que és tu o horizonte, sempre te
fugirá. É preciso andar muito, perseguir os rastros dos mortos derrotados, compreendendo,
porém, que a boa filosofia pensa mais na vida do que na morte. Dos cemitérios e
das valas comuns, soltar-se-á um clamor uníssono à tua passagem: escuta mas não
pares, são os inocentes que a história da infâmia silenciou para que não se
lembre Hiroxima e Nagasáqui, Estalinegrado e Dresden, Hanói e Santiago do
Chile, Pinochet e Vilela, Salazar e Franco, Bagdad e São Salvador. Segue
adiante, não chores, não é de lágrimas que os sem-nome, os filhos da terra,
mais precisam, mas, antes, que a Terra Prometida não seja uma vã promessa.
Dizes-me que tudo isto são palavras apenas? Que a única realidade é
aquela que te dão a ver?
E se o real fosse aquilo que
Ainda-Não-É?
Sem comentários:
Enviar um comentário