quarta-feira, 20 de maio de 2020


FÁBULAS- Os macacos

Num rincão da floresta vivia uma tribo de macacos. O chefe distinguia-se pela treta, apenas. Chegara ao topo pela aldrabice. Instalado no poder, assaltara os melhores territórios apoiado por um grupo de acólitos que disputavam entre si os galhos mais seguros e frutuosos. Estas governanças e estas tácticas não eram inusitadas nas tribos daquela subespécie, exceto entre os bonobos que habitavam a margem oposta do vastíssimo rio Congo e que são muito unidos e pacíficos. A força aliada à astúcia constituíam os imperativos categóricos da espécie de moralidade que na outra banda sempre reinara. Não eram por via de regra os mais inteligentes, sábios e justos que ascendiam ao governo dos animais e das coisas, mas os mais manhosos. Daí que houvesse na tribo alguns, poucos, macacos particularmente pessimistas relativamente a este estado permanente. Não surpreende que houvesse somente poucos, pois a tribo era mesmo muito pequena. Essa e as outras idênticas. O que surpreende é que existissem tantos otimistas entre os que carregavam os caudilhos aos ombros.
Os otimistas compunham aquela larga fração que arranja sempre uma teoria para justificar o presente comparando-o com o passado. Construíam um passado que perdia facilmente na comparação com o presente. Normalmente, ou por força da definição corriqueira, otimista é mais aquela criatura que espera sempre o melhor. Se foi cair no limbo, espera transitar depressa para o céu; se está já no céu, é otimista evidentemente.
Não se reduziam, não se pense, àqueles cujo modo de vida dependia de ser acólito dos chefes. Havia entre os otimistas quem, pelo contrário, dispusesse de independência e até elevada cultura erudita. Eram esses, sobretudo esses, que pregavam a esperança aos desesperados, o que nos parece sempre uma coisa boa de se fazer. Por isso não sei porquê a fração dos pessimistas vinha questionar o que nem ao diabo lembrava questionar. Por exemplo, o que é Esperança, origens e funções dessa crença, afirmando que só valem alguma coisa as crenças que se podem racionalmente justificar.
Fosse como fosse, com razão ou sem ela, não parecia haver alternativa ao atual estado de coisas (o que, aliás, era o mais usual na história) e os pessimistas gastavam o latim com parcos auditórios. Aos governantes convinham tudo que fosse embrulhado em papel de seda da fé e da esperança e, por isso, apaparicavam os ideólogos, deixando-lhes as sobras das lautas refeições.
Existiam, portanto, os optimistas porque comiam da gamela grande, e os otimistas crentes sinceros ou puros intelectuais que acreditavam numa qualquer «potência» interior ou externa que só precisava de ser despertada por meio de palavras adequadas.
Fora desta ou destas fracções pulavam de ramo em ramo os pessimistas, mais chatos que as melgas. Como as tribos eram muito pequenas, existiam poucochinhos pessimistas em cada uma. Poder-se-ia pensar que eram rancorosos e ressentidos, que passavam o tempo a dizer mal da vida, da existência e da transcendência. Nada disso. Ou melhor: sim e não. Às vezes sim, às vezes não. Cultivavam um género de mudez ou discurso conciso, de certo modo indiferentes aos insultos, e que os abrigava de discursos populares. Os outros encaravam-nos com comiseração, mais frequentemente com desconfiança e havia uma minoria que os hostilizava com violência. Verificava-se porém que, nos momentos de perigo ou de abusos intoleráveis dos machos-alfa, eram normalmente os pessimistas dos primeiros a saltarem para a frente do combate. Era nessas alturas que a sua vontade de mudança, ou de alternativa, encontrava eco, particularmente por força do seu exemplo atuante. Todavia, logo que a borrasca era passada, esqueciam-se imediatamente deles. Os ingénuos (aparentemente) continuavam a suportar tudo e os espertos a construir condomínios privados sobre os ramos mais fortes das árvores mais frutíferas.
Certo dia, que se esperava ser igual aos outros, sucedeu um desastre total: uma peste, uma epidemia, abateu-se inesperadamente sobre as tribos. Muitos otimistas morreram e os pessimistas não tiveram melhor sorte. As tribos debilitadas tornaram-se uma presa fácil para uma horda de trogloditas que vindo dos confins da floresta assaltou o território dos pequenos macacos e subjugou-os violentamente. Apenas escapou um macaco pessimista por preferir a solidão ao jugo. Um macaco noutro tempo otimista viu que a fuga ao jugo era a atitude mais digna e vantajosa e foi-lhe fazer companhia.
- Paciência, quanto pior, melhor, partamos ambos em busca da Terra Prometida, vejo claramente visto que este é o sinal que confirma que Ela é Possível! - Proclamou o macaco otimista construindo como sempre fizera uma crença ideal ou fé tranquilizadora para o desespero e desilusão de ver o seu mundo real soçobrar.
- Mas como consegues ver epifanias onde eu só vejo tiranias? Onde está essa ilha da Bem Aventurança senão na tua imaginação?
- Ouvi falar de um lugar na floresta onde os empregadores cuidam bem dos seus empregados!
- Onde fica, ou ficava, isso?
- Não sei. Dizem.
- A quem ouviste tal coisa?
- A um empregador.
- Ah!
       O macaco otimista encolheu os ombros, um tanto farto do pessimista, sabendo, no entanto, que em algum lado o outro tivera alguma razão. Veio uma brisa ligeira, com ela chegou um perfume de fêmea próxima e nem se despediu, munido de uma doutrina inabalável. Munido sobretudo de um faro infalível.
 O macaco pessimista, esse, trepou à mais alta palmeira donde pode abarcar todo o horizonte movediço da sua secreta utopia.
Nozes Pires
Maio 2020

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