FÁBULAS- Os macacos
Num rincão da floresta vivia uma
tribo de macacos. O chefe distinguia-se pela treta, apenas. Chegara ao topo
pela aldrabice. Instalado no poder, assaltara os melhores territórios apoiado
por um grupo de acólitos que disputavam entre si os galhos mais seguros e
frutuosos. Estas governanças e estas tácticas não eram inusitadas nas tribos
daquela subespécie, exceto entre os bonobos que habitavam a margem oposta do
vastíssimo rio Congo e que são muito unidos e pacíficos. A força aliada à astúcia
constituíam os imperativos categóricos da espécie de moralidade que na outra
banda sempre reinara. Não eram por via de regra os mais inteligentes, sábios e
justos que ascendiam ao governo dos animais e das coisas, mas os mais manhosos.
Daí que houvesse na tribo alguns, poucos, macacos particularmente pessimistas
relativamente a este estado permanente. Não surpreende que houvesse somente
poucos, pois a tribo era mesmo muito pequena. Essa e as outras idênticas. O que
surpreende é que existissem tantos otimistas entre os que carregavam os
caudilhos aos ombros.
Os otimistas compunham aquela larga
fração que arranja sempre uma teoria para justificar o presente comparando-o
com o passado. Construíam um passado que perdia facilmente na comparação com o
presente. Normalmente, ou por força da definição corriqueira, otimista é mais
aquela criatura que espera sempre o melhor. Se foi cair no limbo, espera
transitar depressa para o céu; se está já no céu, é otimista evidentemente.
Não se reduziam, não se pense,
àqueles cujo modo de vida dependia de ser acólito dos chefes. Havia entre os
otimistas quem, pelo contrário, dispusesse de independência e até elevada
cultura erudita. Eram esses, sobretudo esses, que pregavam a esperança aos
desesperados, o que nos parece sempre uma coisa boa de se fazer. Por isso não
sei porquê a fração dos pessimistas vinha questionar o que nem ao diabo
lembrava questionar. Por exemplo, o que é Esperança, origens e funções dessa
crença, afirmando que só valem alguma coisa as crenças que se podem
racionalmente justificar.
Fosse como fosse, com razão ou
sem ela, não parecia haver alternativa ao atual estado de coisas (o que, aliás,
era o mais usual na história) e os pessimistas gastavam o latim com parcos
auditórios. Aos governantes convinham tudo que fosse embrulhado em papel de
seda da fé e da esperança e, por isso, apaparicavam os ideólogos, deixando-lhes
as sobras das lautas refeições.
Existiam, portanto, os optimistas
porque comiam da gamela grande, e os otimistas crentes sinceros ou puros
intelectuais que acreditavam numa qualquer «potência» interior ou externa que
só precisava de ser despertada por meio de palavras adequadas.
Fora desta ou destas fracções
pulavam de ramo em ramo os pessimistas, mais chatos que as melgas. Como as
tribos eram muito pequenas, existiam poucochinhos pessimistas em cada uma.
Poder-se-ia pensar que eram rancorosos e ressentidos, que passavam o tempo a
dizer mal da vida, da existência e da transcendência. Nada disso. Ou melhor:
sim e não. Às vezes sim, às vezes não. Cultivavam um género de mudez ou
discurso conciso, de certo modo indiferentes aos insultos, e que os abrigava de
discursos populares. Os outros encaravam-nos com comiseração, mais
frequentemente com desconfiança e havia uma minoria que os hostilizava com
violência. Verificava-se porém que, nos momentos de perigo ou de abusos
intoleráveis dos machos-alfa, eram normalmente os pessimistas dos primeiros a
saltarem para a frente do combate. Era nessas alturas que a sua vontade de
mudança, ou de alternativa, encontrava eco, particularmente por força do seu
exemplo atuante. Todavia, logo que a borrasca era passada, esqueciam-se
imediatamente deles. Os ingénuos (aparentemente) continuavam a suportar tudo e os
espertos a construir condomínios privados sobre os ramos mais fortes das
árvores mais frutíferas.
Certo dia, que se esperava ser
igual aos outros, sucedeu um desastre total: uma peste, uma epidemia, abateu-se
inesperadamente sobre as tribos. Muitos otimistas morreram e os pessimistas não
tiveram melhor sorte. As tribos debilitadas tornaram-se uma presa fácil para uma
horda de trogloditas que vindo dos confins da floresta assaltou o território
dos pequenos macacos e subjugou-os violentamente. Apenas escapou um macaco
pessimista por preferir a solidão ao jugo. Um macaco noutro tempo otimista viu
que a fuga ao jugo era a atitude mais digna e vantajosa e foi-lhe fazer
companhia.
- Paciência, quanto pior, melhor,
partamos ambos em busca da Terra Prometida, vejo claramente visto que este é o
sinal que confirma que Ela é Possível! - Proclamou o macaco otimista
construindo como sempre fizera uma crença ideal ou fé tranquilizadora para o
desespero e desilusão de ver o seu mundo real soçobrar.
- Mas como consegues ver
epifanias onde eu só vejo tiranias? Onde está essa ilha da Bem Aventurança
senão na tua imaginação?
- Ouvi falar de um lugar na
floresta onde os empregadores cuidam bem dos seus empregados!
- Onde fica, ou ficava, isso?
- Não sei. Dizem.
- A quem ouviste tal coisa?
- A um empregador.
- Ah!
O macaco otimista encolheu os ombros, um
tanto farto do pessimista, sabendo, no entanto, que em algum lado o outro
tivera alguma razão. Veio uma brisa ligeira, com ela chegou um perfume de fêmea
próxima e nem se despediu, munido de uma doutrina inabalável. Munido sobretudo
de um faro infalível.
O macaco pessimista, esse, trepou à mais alta
palmeira donde pode abarcar todo o horizonte movediço da sua secreta utopia.
Nozes Pires
Maio 2020
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