Elegia da Amizade
Conheci-o noutro século. Fomos condiscípulos na Faculdade de Letras.
Estivera com ele por alturas da Páscoa. Disse-lhe, apetecia-me umas tripas à
moda do porto, numa tasca, numa velha tasca que a ASAE não tenha encerrado para
lhe sentir o cheiro às frituras, aos tachos requeimados, às sardinhas da semana
passada em vinagrete, às iscas em cebolada na prateleira escurecida do balcão
pau de nogueira! Disse, e sabia que lhe tocava o coração e a alma de tripeiro,
de filho da Foz, Ó pá! Vai ele, naquela voz rouca inconfundível e às vezes
inaudível, inaudível não! Porque era altissonante, porém rouca, Vamos lá! eu
conheço uma dessas, ali a São Bento, há quanto tempo não visitas a nossa
estação? O nosso ícone, o trampolim que relançou o Humberto Delgado desde o
Porto até ao Algarve, foi aqui no Porto carago! Então vamos lá!...E foram três
horas, e mais um petisco, e mais um jarro de tinto, olhos nos olhos, entre o
riso de Demócrito e a maledicência de Diógenes, sem um olhar para as dezenas, centenas,
de turistas inglesas, eu sei lá que países deambulavam por aqueles becos e
ruelas da antiquíssima Invicta! À procura de ruínas.
Ele era uma força da natureza.
Duas vezes a minhas estatura, altura e largura. Bom garfo, bom copo. Na
Faculdade as raparigas gostavam de lhe apreciar a t-shirt negra a moldar o
músculo possante., as pernas assentes corajosamente no cimo da escadaria, o
discurso. As raparigas antifascistas, as outras não sei, essas via-as fugir
como coelhos, elas e eles, mais eles que elas, quando, juntos, pregávamos a
solução das soluções. Se fosse preciso ele dizia umas coisas e eu dizia outra. Contudo,
o panfleto que escrevíamos era a quatro mãos, sem desacordos e negociações. Ele
puxava-me mais para a esquerda das esquerdas, eu puxava-o mais o centro das
esquerdas. Os professores do regime temiam-no. Em segredo, clandestinamente,
pertencíamos a organizações políticas diferentes. No fundo não eram muito
diferentes, lutavam contra o inimigo terrorista comum, implacável, que nos aprisionou
várias vezes no casarão infame e sombrio da Rua do Heroísmo (parece ironia, mas
este é o nome da rua!), nutríamos o mesmo desprezo por aquela ditadura de
monopolistas, latifundiários, polícias e generais, porém perfilhávamos ideias
diferentes no como e nos meios e talvez no quê, e essas diferenças agravaram-se
até à hostilidade profunda entre as organizações nos anos da revolução. Nunca o
encontrei mais, rumei para outras paragens sem cuidar de levar no bolso os
endereços, como se o passado fosse isso mesmo que ele é: passado.
Todavia, o passado, descobri mais
tarde, mais velho, não é realmente o que é. Parece ser, pode ser, mas não tem
que ser. Não sei definir agora a Amizade. Com maiúscula. Não bastam os tratados
clássicos que lemos. Em abstrato não sei o que é. No concreto digo que é para
mim sentir afeto, manifestar prazer nos encontros com aqueles que não são
inteiramente iguais a mim, que não pensam tal qual eu penso, que acreditam em
ideias que eu não creio e reciprocamente, que construíram vidas que não foram
as minhas, a quem deixámos de ver há cem ou mil anos, mas que, naquele instante
em que nos revemos, numa rua onde em tempos idos passeávamos as nossas ideias,
numa livraria ainda não extinta onde defrontámos os nossos desacordos,
subitamente, como uma revelação ou epifania, descobrimos a humanidade comum. Profundamente
comum. Cúmplice.
Partiu para sempre e não avisou
ninguém. Os mortos deviam avisar. Escrever como o Poeta José Gomes Ferreira:
Devia morrer-se de outra maneira/Transformarmo-nos em fumo, por exemplo./Ou em
nuvens./Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol/a fingir de novo
todas as manhãs, convocaríamos/0s amigos mais íntimos com um cartão de
convite/para o ritual do Grande Desfazer: ”Fulano de tal comunica (…) que vai
transformar-se em nuvem hoje/às 9 horas. Traje de passeio”. (…)
O que é a Amizade? Não sei.
NOZES PIRES
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