quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 

HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE- 12
 
ARTUR
 
Capítulo I- Infância
 
Chamava-se Artur porque o pai, na semana anterior ao parto da mulher, lera O Rei Artur, de Antoine de Troilet. Contrariou, assim, a vontade dela, católica fervorosa, que preferia Gabriel, o Anjo Anunciador. Artur servia-lhe na perfeição para moldar o filho conforme os seus ideais românticos e cavalheirescos com que julgava adoçar a sua crença positivista.
Artur foi talhado nessa contradição. Jogava ao berlinde com os outros garotos e, quando o jogo parecia mais animado, interrompia-se subitamente e distraia-se a observar a refração da luz através de uma bolinha de vidro azul ou verde. Não era raro que, nesses momentos de atenção científica, se distraísse novamente com a música dos pintassilgos nos choupos do rio. Distraia-se a todo o instante com os odores e rumores da natureza, acreditando que esta encerrava mistérios que um dia haveria de decifrar.
O pai ensinou-o a ler, ainda antes de poder frequentar a escola. Lia para ele romances de Walter Scott e o rebento franzino que o escutava com os olhos muito abertos para dominar o sono não entendia uma palavra mas imaginava as cenas. Cavaleiros ceifando com enormes espadas hordas horripilantes de fantasmas. Os únicos cavalos que conhecia eram de uma troupe de ciganos que acampava nas margens do rio nos verões assediando banhistas para lhes vender alpergatas espanholas.
Adorava o pai. Afetuoso com os filhos, Marta e Artur, o doutor Vasco de Sepúlveda era um médico respeitado na vila, não levava dinheiro aos pobres porque não tinham. A mulher, seca de carnes e introvertida, governava-lhe a casa com eficiência.
Acabava Artur de fazer sete anos de idade quando a tragédia se abateu sobre uma família feliz: o pai contraiu um cancro e demorou-se apenas seis meses. Nesse período terminal leu O Testamento de João Barois e redigiu o seu próprio: mantinha até à degradação do corpo as suas convicções maçónicas e anti-salazaristas. Foi sepultado no jazigo da família, uma longa fila de gerações Sepúlveda que remontava ao reinado de D. Manuel I. O funeral foi tristíssimo, o médico era muito estimado tanto pelos lavradores ricos como pelos pobres jornaleiros que sempre haviam encontrado nele um coração compadecido que não fazia distinção de classes e credos, exceto por umas tantas personagens que ocupavam os cargos políticos e que lhe vigiavam os seus ideais republicanos. O pároco oficiou a cerimónia, contrariando a última vontade do positivista anticlerical, cumprindo com gozo o pedido da viúva piedosa.
A partir desse dia funesto a mãe de Artur entrou em silêncio, uma quase mudez, uma sombra perpétua de tristeza. Se já havia sido retraída nos afetos, mais ressequida ficou. Artur sentiu-se órfão e assim se sentiria a vida toda. Buscou afeto nos companheiros da escola primária, porém, estes, tratavam-no com desconfiança e hostilidade, mal toleravam como seu igual um garoto que almoçava iguarias que eles surdamente invejavam. Para mais ele era sempre o melhor aluno e, por isso, era poupado às reguadas frequentes que os demais levavam. Artur detestava a escola. Tudo nela era feio, mesquinho e cruel. Para chegar à escola tinha de caminhar ao longo da via de caminho-de-ferro, sob a chuva e o frio (um dia uma das crianças que fazia a mesma caminhada foi tolhida por um comboio, viu-lhe os miolos espalhados pelos carris e nunca mais o esqueceu) e a escola, de estilo “Estado Novo”, era apenas uma prisão com um recreio. Conheceu quatro mestres-escola: o primeiro era um indivíduo carrancudo (de facto padecia de uma cirrose que o levou depressa para o outro mundo) que achava que Artur “decorava demais”, avaliação que arrancara um sorriso desdenhoso ao doutor Sepúlveda; o segundo era uma mulher, nova ainda, que empunhava a “menina dos cinco olhos” com um prazer que se acaso Artur conhecesse a teoria de Freud encontraria nela uma explicação adequada; o terceiro, um senhor desempoeirado e risonho, reconciliou Artur com a escola e profetizou grandes feitos para o menino; o quarto, era um símio com aspeto de homem, maneta (do braço direito restava um coto), atarracado, feio e mau, que obrigava Artur a substitui-lo nas reguadas aos demais garotos, pois que só ele a tudo respondia certo. Uma terrível experiência para uma criança bondosa e inocente que chorava com a humilhação.
Não terminou a quarta classe. Morto o marido, a mãe viu-se incapaz de manter uma casa enorme e dispendiosa, onde o fantasma do marido a assaltava a cada canto; com o pecúlio que o marido deixara a desaparecer rapidamente, decidiu-se por pegar nos filhos e partir para Moçambique, em cuja capital provincial, Lourenço Marques, um irmão, enfermeiro com uma vida abastada, lhe prometeu a solução dos infortúnios. Um escriturário da Câmara tratou-lhe dos papéis, era necessária uma autorização superior para se ingressar no lote de emigrados, ou seja de colonos, transportados gratuitamente para irem “povoar as províncias ultramarinas”. Em Lisboa foram metidos num paquete. Arrancado de chofre de uma vila remota do Portugal “profundo”, a viagem marítima de duas semanas trouxe a Artur alegrias e deslumbramentos. O oceano imenso com os seus peixes “voadores”, as ondas alterosas que lhe provocavam um medo agradável, as dormidas em tarimba no meio de centenas de homens (as mulheres ocupavam outro andar do convés), o ritual da passagem da linha imaginária do Equador (um pequeno carnaval), a paragem durante uma tarde no porto do Funchal observando perplexo garotos da sua idade a mergulharem nas águas para apanharem as moedas que se lhes lançavam do convés.
Assim cresceu. Sempre encostado às palavras, como se estas viessem suprir a ausência do abraço oportuno que lhe faltou.
À pancadaria que distraía os fedelhos preferia uma linguagem limpa e clara, oferecida como uma donzela impoluta de brancas carnagens.
No liceu, quando a professora ensinava os binómios, apurava ele o ouvido para o rumorejar das acácias em flor, o resfolegar dos búfalos esmagando parasitas na casca dos embondeiros; com as equações de 2º grau, deixava-se levitar sobre a asa finíssima de uma nuvem que passava, viajando em oitenta dias sobre o estuário do Rio Amarelo, empoleirado no mastro de um junco de piratas. Com a batalha de Ourique, dava rédea solta ao alazão branco, rompendo a muralha de armaduras e músculos de moiros tisnados e esbeltos, com alaúdes a tiracolo. Desistiu das matemáticas, a bonita professora desistiu dele como aluno mas não como rapaz. Mostrava-se mais interessado e interessante noutras matérias. Redigia contos com cowboys e índios, inspirados versos sobre tambores ecoando na floresta africana como sinais de um Apocalipse que ele pressentia.
Não ficara com recordação alguma de Lisboa, de modo que, quando o paquete assomou a Lourenço Marques ficou espantado com a beleza da cidade, espraiada ao redor de uma baía majestosa. Os primeiros passeios ofereceram-lhe uma paisagem urbana que não mais encontrou outra igual em parte nenhuma: as largas avenidas com acácias em flor, os prédios novos entrecortados por edifícios em estilo colonial, o mercado repleto de odores estranhos e inebriantes…
Repetiu a quarta classe que fora obrigado a interromper. Com facilidade ascendeu ao estatuto de melhor aluno provocando a inveja de um rapazola seu vizinho que lhe quis dar uma surra. No exame final e no exame para o Liceu foi classificado como o melhor estudante da província ultramarina.
Entretanto, a mãe, que, afinal, não encontrara nenhum apoio no irmão que a chamara na mira de lhe sacar dinheiro da herança que ela recebera do marido, empregou-se numa mercearia onde se revelou a boa gestora que ela sempre fora, e ao cabo de algum tempo comprou-a ao proprietário que decidiu reformar-se. Recuperaram, portanto, alguma abundância material nos primeiros anos de 1960. Marta que não era dotada como o irmão ingressara na Escola Comercial e concluído o curso auxiliou a mãe a expandir o negócio das mercearias.
Calhou que vieram residir em um dos apartamentos do “prédio do funcionário”, que se situava na Avenida Pinheiro Chagas, e foi aí, como vizinhos, que conheci Artur. Frequentávamos o mesmo Liceu, de António Enes, para o qual ingressei quando ele ocupava um espaço alugado, julgo eu, a uma Associação. Depois ergueram um edifício novo, bonito e moderno, que ainda hoje é uma das principais escolas do Maputo.
Entre nós forjou-se uma amizade feita de afinidades e dissemelhanças. Se eu alguma vez lhe ensinei o que quer que fosse, aprendi muito mais com ele seguramente.
(continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário