quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 

HISTÓRIAS DO ANTIGAMENTE - 12
 
ARTUR
 
TERCEIRO CAPÍTULO
 
E porque era um romântico ingénuo e bom, num certo dia o meu amigo Artur apareceu-me com um saco de compras cheio de livros e declarou do alto do seu metro e oitenta e tal: « Vou estudar a política, e depressa, para realizar feitos grandes para o mundo e para a minha pátria maltratada!». Não percebi naquele instante se a “pátria” dele era então Moçambique ou Portugal.«E como e onde vais tu aprender tanta coisa Artur?», interroguei com a maior das credulidades espreitando para os volumes.. «Vou sair por aí fora e conhecer Moçambique inteiro , depois, sabe-se lá!, partirei para a Europa e percorrerei o mundo!». «O mundo é muito grande, pá, não é melhor ficarmos por Moçambique?». «Ficarmos? Porquê, tu também aderes a este programa?». «Adiro sim, mas pela aventura! Só pela aventura! Sair do tédio desta cidade já é suficiente.». Mal sabia eu o que me esperava... Almejava aventuras sim, mas sempre bem comido e com umas belas garotas ao pé. Não foi isso que aconteceu,
Despedimos da família (como estávamos nas férias grandes não puseram obstáculos), enchemos as mochilas com o necessário e partimos para a única estrada que nos levaria ao norte. À boleia evidentemente. Uma carrinha com um padre e três freiras levou-nos até ao Xai-Xai (antiga vila de João Belo) no vale do rio Limpopo. A cidade era encantadora e nessa noite decorria uma procissão católica chamada de “velas”; uns rapazes nossos conhecidos desfilavam com a farda da Mocidade Portuguesa (uma legião fascista fundada pelo Marcelo Caetano e a que a rapaziada, pelo menos nós ambos, achávamos piada àquela caricatura de “soldadinhos de chumbo” imberbes ao serviço de Salazar) e eles e o público em geral transportavam na mão uma vela dentro de um copo se bem me lembro, de papel é claro. O que fez Artur? Adivinhem: considerou que aquelas velazitas não estavam à altura da dignidade da Santa que uns homens carregavam aos ombros e vai daí construiu um archote não sei como, um enorme archote, e ei-lo à frente daquele devoto pessoal! Foi um escândalo. Tive que o levar para longe dali pelo braço. Ele acedeu. Contudo, julgais que ele me obedecia? Qual quê! Quem lhe obedecia era eu, afora o termo que me desagrada, a princípio sempre à espera de aventura, de uma beldade branca ou morena com quem veraneasse naquelas praias de sonho...Porém, Artur não parava, nem me dava oportunidade para eu descobrir a fundo as belas praias. Pelo contrário, empurrava-me para a savana enfadonha e tórrida guardada por serpentes que podiam matar-nos num segundo. Dormimos na casa de um “cantineiro” (assim eram designados os colonos que instalavam mercearias, ou cantinas, pelo mato dentro). Pela manhã cedinho atravessamos o rio Limpopo numa jangada presa a um cabo de margem a margem e puxada a braços pelos africanos. E pelo Artur...Até Inhambane uma mulher toda moderna e liberal deu-nos boleia no seu carro desportivo, a cento e muitos à hora. Era esposa de um engenheiro que administrava uma enorme fazenda de banana. A certa altura conseguiu, muito a custo, interromper a fala caudalosa do Artur e confessou que preferia um Moçambique independente da Metrópole, uma democracia, disse ela, de brancos e negros. Para nós, noviços, estas conversas e soluções baralhavam-se nas nossas cabeças. Entretanto, nos intervalos em que éramos obrigados a fazer caminhadas pela estrada ou por picadas, eu queixava-me de tudo: da fome, da sede, dos pés mal calçados, das moscas e dos mosquitos e quanto mais subíamos para o Norte mais eu tinha saudades da minha caminha...Artur andava eufórico, cada vez mais, e cada vez menos me escutava as queixas.Como viera bem fornecido de dinheiro prometia-me que logo iríamos gozar uma esplêndida hospedaria. E eu acreditava, porque no fundo eu pressentia que aquelas experiências (mais ricas que a rotina diária das praias de Lourenço Marques) constituíam a nossa iniciação à vida adulta. Naquele tempo diríamos: fazia-nos homens!
Por cada aldeia que atravessássemos, sempre paupérrima e idêntica umas às outras, Artur abraçava toda a população, ou abraçaria se o deixassem, pois somente os homens se permitiam, as mulheres recuavam e riam-se a bandeira despregadas com aquela vontade de rir que apenas ali encontrei. Percebiam mal o português, os discursos grandiloquentes do meu amigo moldados no oiro mais puro da fraternidade universal não eram compreendidos. Os velhos acenavam com as cabeças em sinal de concordância e pediam cigarros. Eu admirava o atrevimento de Artur, a sua extraordinária capacidade de fazer-se imediatamente admitido pelos mais pobres entre os pobres, sem que a língua, a cor da pele, a indumentária, a cultura diferente, fosse obstáculo. Não era um líder, nunca o seria, das classes exploradas e dos povos oprimidos (estas expressões passaram a ser usuais, mas sinceras e ardentes, na boca do meu amigo), faltavam-lhe essas qualidades. Era, viria a ser (embora por pouco tempo) mais um profeta, um cavaleiro andante sem elmo e sem igreja.
(Continua)

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