quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 

Histórias do Antigamente- 12 (2ª Parte)
 
ARTUR
 
Éramos diferentes, no físico e no temperamento. Ganhou estatura elevada, uma cabeleira abundante, um loiro intenso, uns impressionantes olhos azuis. EU, fisicamente, era o oposto. Ele era extrovertido até ao exagero, sorria permanentemente sem parecer nem ser estúpido, e nunca vi nele sombra de ódios ou sequer hostilidade para com alguém. Eu, era o oposto. Não parecia existirem contradições no seu carácter, pelo menos notórias, e dilemas éticos. Era emocional, impulsivo e apaixonado por pessoas e causas. Eu não, antes pelo contrário. Os exemplos que vou dar-vos demonstram que estávamos na presença de um indivíduo de moralidade perfeita: honesto, franco, leal. Possuir tais qualidades sem falhas já era um absoluta singularidade, no entanto o que era ainda mais extraordinária era a sua completa ingenuidade. Em duas palavras substanciais: era completamente apaixonado e completamente ingénuo. Ora, a perfeição não é um destino humano. Artur devagar, devagarinho, enlouqueceu. É da sua gradual e fantástica loucura mansa que irei falar-vos.
Comecemos pela infância para chegarmos logo em seguida à adolescência. Eis um primeiro exemplo, remontando ao tempo da escola primária: como não estudava nada e sabia tudo, o professor da quarta classe começou por desconfiar que ali houvesse copianço e como era burro foi dizer à mãe do garoto que ele só sabia de cor, como se este “só” fizesse algum sentido. Artur perante estes dislates sorria, para a mãe e para o mestre-escola. Sorria para os colegas e deixava-se enganar pelos malandrecos. O “delinquente” da classe dava-lhe empurrões no recreio e ele, que tinha corpo para o enfrentar, permitia a gabarolice do outro. Inveja, esse amaldiçoado sentimento social, provocou-o ele por todo o lado por onde passou e deixou marcas, até chegada a altura em que eram mais os risos e os escárnios! O ser humano vulgar não suporta comparar-se com seres da mesma espécie física mas a quem somente faltam asas para serem anjos. Quando pela primeira vez tomei conhecimento das mitologias, lembrei-me que lhe cabia bem a identidade dos androesfinges, criaturas fantásticas aladas compostas de metade leão e metade homem, muito bondosas, sempre prontas a perdoar e a ajudar, nunca atacam, embora possam emitir um rugido que serve de aviso ao maligno. Artur era assim: alto e atlético bastava “rugir” (mas somente em casos extremos, por exemplo para dissuadir alguém de fazer maldades a outrem) para um fulano qualquer pensar duas vezes. É claro que tal não era suficiente quando se tratava de um grupo e não de um só individuo. E foi assim que certa ocasião ele quis impedir uma daquelas rotineiras cenas que os portugueses que andaram pelas colónias devem ter presenciado com normalidade: três ou quatro energúmenos, lusitanos colonos de gema, provavelmente campónios fugidos da serra onde passaram fome , lançavam literalmente pelos ares de uns para os outros um garotinho africano a quem nesses lances iam apalpando as nádegas infantis. Não se espantem leitores, eram jogos divertidos que alguns animais se entretinham! Pois bem, Artur interveio indignadíssimo e o resultado foi levar uma sova brutal que o pôs de cama sob os cuidados da irmã extremosa. Lembro-me como se fosse agora: foi no começo das férias e ele, como eu, devia ter uns meros quinze anos de idade.
O meu amigo, que viria a suportar as dores com que se fazem os santos, não era propriamente falando “aéreo”, isto é, não possuía esse traço caraterístico dos que andam sempre distraídos porque são muito tímidos e introvertidos, ou, quando idosos, andam sempre a meditar como os sábios budistas. Não, não era esse o caso de modo algum. Artur pisava bem o chão da terra muito embora eu suspeitasse que ele tinha asas e que haveria de chegar o dia em que ele as usaria para sobrevoar a humanidade. Não era, então, desse tipo de distraídos, ou de génios, era simplesmente tão ou mais ingénuo que uma criança. Na realidade foi sempre uma criança e, por isso, tudo lhe caía em cima quando cresceu e se fez adolescente e depois homem. Pediam-lhe emprestados uns trocos os outros miúdos? Ele dava e nunca mais veria o reembolso. Pediam-lhe vultosos empréstimos mais tarde? Ele não recusava nenhum enquanto tivesse dinheiro na carteira. Como as mercearias da mãe estavam em nome dos três, uma infindável fila de caloteiros comprometeu-o como fiador de hipotecas. Chegou um tempo em que a mãe e a irmã levaram as mãos à cabeças, sem saberem como dizer não a um ser admirável que amavam profundamente,
Era assim o Artur! Todo o mundo o utilizava como um meio útil para fins egoístas. E ele, que não tinha nada de estúpido mas que o parecia, tolerava este mundo e nunca aprendia. Eu era o oposto: farejava cautelosamente o caminho, desconfiado, e sem dinheiro “para mandar cantar um cego”. Avisei-o sempre que me apercebia a tempo dessas extorsões, porém como não o acompanhava diariamente não chegava a tempo. De resto, Artur eclipsava-se regularmente. Não só adorava subir ao Alto Maé (uma zona urbana de Lourenço Marques que a burguesia evitava) para a folia com a rapaziada do sítio (quase todos “mulatos”), como finalmente se enamorou por uma rapariga, a moça de olhos verdes que eu já referi. Eu não sei se ela realmente existiu, pois nunca a vi com estes olhos.
Artur foi um caso típico de tragicomédia. Não eram apenas ocorrências que faziam sorrir com gosto qualquer alma sã, mas até alguns incidentes que o fizeram passar “as passas do Algarve” nos podiam provocar um sorriso largo e envergonhado. Ou compaixão. Por exemplo: certo dia uma brigada de pides foi agarrá-lo em casa, tinha ele aí os seus dezasseis anos. E porquê, se ele não entendia uma palavra de política, ou, se se indignava com a pobreza extrema e as malfeitorias, não enveredou por qualquer forma de oposição à ditadura de Salazar? Então porque o levaram para o edifício mais tenebroso e odiado de Lourenço Marques (donde se dizia que se entrava de pé e saía-se deitado)? Simplesmente por engano! Confundiram-no com um perigoso agitador, porventura um militante branco da FRELIMO! Na realidade, Artur cometia os atos mais disparatados que era possível imaginar para aqueles tempos: frequentava encontros políticos clandestinos só porque queria conviver com jovens “maduros” como ele dizia; aceitava panfletos políticos aos molhos só porque os seus amigos lho pediam e ia deixá-los em cima das mesas dos cafés fosse de dia ou de noite! Eu desconfio que ele nem chegava a lê-los. Bastava confiar em alguém ( e com que facilidade ele confiava!) e logo cumpria um pedido. Bem, voltando ao episódio da detenção pidesca do Artur, deram-lhe uns bofetões de prevenção para que ele abandonasse os “meliantes” do Alto Maé, garantiram-lhe que tinham o acordo da mãe dele que era uma “ilustre senhora dos melhores círculos sociais da capital” e fizeram-no assinar um auto. Ou seja, ficou com cadastro. Artur precisou de bastante tempo para entender o que lhe tinha sucedido. Não imaginava que houvesse um sítio naquela sonolenta cidade em que as pessoas eram interrogadas sobre o que faziam e diziam e até recebiam bofetões. Ora, se antes desta tenebrosa experiência, Artur era um rapaz completamente despolitizado a ponto de, por um lado, frequentar a Mocidade Portuguesa para usufruir dos serviços (desporto, campismo, etc.) que esta organização fascista oferecia aos jovens de Lourenço Marques, e, por outro, conviver com presumíveis simpatizantes dos Movimentos independentistas, a seguir ao traumático conhecimento de que existia uma polícia política terrorista o meu querido amigo foi tomado por uma um género de esperança messiânica, uma utopia: combater o Mal no Mundo!
Artur ambicionava desde garotinho vir a ser um grande herói. Porque, no fundo, ele era um romântico. Devorava, tal como eu, aquelas novelas celebérrimas publicadas numa coleção que se chamava «Livros para Rapazes», não sei se os mais velhos se lembram. Capitão de navios que descobriam ilhas nos mares do Sul, viajantes das estrelas, cavaleiros que pelejavam e morriam por uma donzela de olhos castos.
Artur enganara-se no universo e no tempo.
(Continua)
Nozes Pires

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