Das brumas da memória
Mudam-se as épocas, mudamos com a idade
O que foi triste é agora esquecido
Já pouco importa a escola velha e sombria
Na aldeia, na vila, longe da cidade
O frio, a neve, o bife que apetecia
Era eu, eras tu, éramos nós,
Porém não eles,
Não existia a desigualdade? Não te apercebeste da injustiça?
Claro que sim, a menos que fosses imbecil.
Talvez nalguns lugares do mundo fosse menor
Mas sempre foi assim, talvez maior
Na minha, na tua, na nossa infância.
Deixa-me lembrar-te e não me contradigas:
Uns adormeciam em camas limpas e macias
E outros, sabe-se lá, onde calhava.
Repito : sempre assim foi (nalguns lugares menos, noutros muito mais).
Para uns poucos uma ama serviçal acolhia-os ao colo se esfolassem os joelhos,
Para esses nem um ralhete se ouvia ; ànoite, um beijo,
um quarto aquecido, bonecas de seda
e soldadinhos de chumbo no armário.
Para outros muitos, sei lá quantos,
Uma côdea, uma cama de palha e uma vela de sebo acesa.
Não viste tu, mas vi eu. Suspeito que finges não lembrar.
A infância não foi feliz,
Foi para ti? Sorte a tua! mas não foi para todos,
( nem nesta terra, nem em terra nenhuma)
Até para ti mesmo não foi sempre.
Se assim foi é caso raro.
Sim, eu sei, falas dos jogos da bola, dos berlindes,
Das uvas e das maçãs alheias que roubámos
Do gozo de corrermos descalços sobre a erva húmida
E, depois, beber a água fesca do fontanário!
O que em adulto é banal e rotineiro
Era então um acontecimento, a felicidade!
Nisso que dizes tens razão,
Nisso que lembras se encontra alguma verdade
Das alegrias simples da nossa infância!
Todavia, não te oiço somente a ti,
Escuto milhares, milhões de vozes, não sei como,
Choros tão fundos e prolongados
(chegam-me do fundo dos tempos!)
Com fome, com sede, de solidão,
Espancados em casa e nas escolas,
Que das lembranças que guardo
Cabe lá tudo, o bom e o mau,
E duvido que a felicidade seja por acaso.
Não faço como tu : não quero esquecer
(não consigo mesmo que queira)
As meninas descalças e sujas
À porta das igrejas
A fazerem o quê? Eu sei porque vi.
Claro que não te lembras,
Tu que dizes que felizes éramos então!
E quando ias à praia pela mão da mamã
Elas ,as meninas sujas e famintas,
Estavam lá?
Não venho ensinar nada,
Porque tu sabes tudo,
Pois o mundo é a tua medida.
Lembras tu e eu (como te compreendo!),
Aquela alegria de trepar ao muro, espreitar os quintais!
E como esquecer o banho naquele rio manso e paternal?
(A minha avó tinha uma horta no vale,
a vila no alto, era longa a descida,
na horta amadureciam os melões,
a figueira cobria o poço com os braços!).
Destas maneiras disfarçamos a ferida,
Como o camponês disfarça com canções.
Lembro tudo e não lembro nada,
Se é que me faço entender :
Do que me lembro da vida passada,
Há muito que tento esquecer. Mas não.
Não porque queira, mas porque sim,
Está lá, no fundo dos fundos,
O que sou não me conhece a mim.
Por isso, quando dizes que na tua infância
Com pouco, quase nada, foste feliz,
Eu sei que não mentes, é mesmo verdade;
Mas aceita o que te digo, comigo diz :
É da juventude que tenho saudade!
---------NOZES PIRES-----01/02/2024
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