sábado, 3 de fevereiro de 2024

Das brumas da memória-poema

 

 

Das brumas da memória

 

Mudam-se as épocas, mudamos com a idade

O que foi triste é agora esquecido

Já pouco importa a escola velha e sombria

Na aldeia, na vila, longe da cidade

O frio, a neve, o bife que apetecia

Era eu, eras tu, éramos nós,

Porém não eles,

Não existia a desigualdade? Não te apercebeste da injustiça?

Claro que sim, a menos que fosses imbecil.

Talvez nalguns lugares do mundo fosse menor

Mas sempre foi assim, talvez maior

Na minha, na tua, na nossa infância.

Deixa-me lembrar-te e não me contradigas:

Uns adormeciam em camas limpas e macias

E outros, sabe-se lá, onde calhava.

Repito : sempre assim foi (nalguns lugares menos, noutros muito mais).

Para uns poucos uma ama serviçal acolhia-os ao colo se esfolassem os joelhos,

Para esses nem um ralhete se ouvia ; ànoite, um beijo,

um quarto aquecido, bonecas de seda

 e soldadinhos de chumbo no armário.

Para outros muitos, sei lá quantos,

 Uma côdea, uma cama de palha e uma vela de sebo acesa.

Não viste tu, mas vi eu. Suspeito que finges não lembrar.

 

A infância não foi feliz,

Foi para ti? Sorte a tua! mas não foi para todos,

( nem nesta terra, nem em terra nenhuma)

Até para ti mesmo não foi sempre.

Se assim foi é caso raro.

Sim, eu sei, falas dos jogos da bola, dos berlindes,

Das uvas e das maçãs alheias que roubámos

Do gozo de corrermos descalços sobre a erva húmida

E, depois, beber a água fesca do fontanário!

O que em adulto é banal e rotineiro

Era então um acontecimento, a felicidade!

Nisso que dizes tens razão,

Nisso que lembras se encontra alguma verdade

Das alegrias simples da nossa infância!

 

Todavia, não te oiço somente a ti,

Escuto milhares, milhões de vozes, não sei como,

Choros tão fundos e prolongados

(chegam-me do fundo dos tempos!)

Com fome, com sede, de solidão,

Espancados em casa e nas escolas,

Que das lembranças que guardo

Cabe lá tudo, o bom e o mau,

E duvido que a felicidade seja por acaso.

 

Não faço como tu : não quero esquecer

(não consigo mesmo que queira)

As meninas descalças e sujas

À porta das igrejas

A fazerem o quê? Eu sei porque vi.

Claro que não te lembras,

Tu que dizes que felizes éramos então!

E quando ias à praia pela mão da mamã

Elas ,as meninas sujas e famintas,

Estavam lá?

 

Não venho ensinar nada,

Porque tu sabes tudo,

Pois o mundo é a tua medida.

 

Lembras tu e eu (como te compreendo!),

Aquela alegria  de trepar ao muro, espreitar os quintais!

E como esquecer o banho naquele rio manso e paternal?

(A minha avó tinha uma horta no vale,

a vila no alto, era longa a descida,

na horta amadureciam os melões,

a figueira cobria o poço com os braços!).

 

Destas maneiras disfarçamos a ferida,

Como o camponês disfarça com canções.

 

Lembro tudo e não lembro nada,

Se é que me faço entender :

Do que me lembro da vida passada,

Há muito que tento esquecer. Mas não.

Não porque queira, mas porque sim,

Está lá, no fundo dos fundos,

O que sou não me conhece a mim.

 

Por isso, quando dizes que na tua infância

Com pouco, quase nada, foste feliz,

Eu sei que não mentes, é mesmo verdade;

Mas aceita o que te digo, comigo diz :

É da juventude que tenho saudade!

 

---------NOZES PIRES-----01/02/2024

 

 

 

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