segunda-feira, 22 de maio de 2023

Amarelo-Inventário das cores

 

Inventário das cores- Amarelo -3

 

Descobriu que gostava definitivamente do amarelo no dia em que viu, com olhos de ver, as planícies trigueiras do Alentejo. Foi no ano em que leu Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, nos idos de 1967 do século passado. Tinha ido ver e depois ajudar as gentes nas terríveis inundações que devastaram os bairros-de-lata, as favelas lusitanas, uma tremenda tragédia, já não bastava a guerra, cujo peso caiu todo como sempre sobre os pobres, as enormes massas de força de trabalho sobre explorada nas fábricas, era no tempo a quem os donos da nação só permitiam um minuto de expressão para desejarem por um guião idêntico e cronometrado “Feliz Natal e muitas prosperidades!”.

  Portanto, não sabe ainda se o amarelo veio do livro do grande escritor, ou da visão em grande plano cinematográfico da planície. Amarelos assim só Van Gogh ou, à nossa medida, um Armando Alves. 

  Nascera em Évora. Aluno do Liceu declamara José Régio nas festas escolares. Despertara plateias juvenis com o Não Vou Por Aí!, sem entender o que realmente Régio quis transmitir de pessoal. O que fazia vibrar com facilidade as juventudes dessa época era fosse o que fosse, desde que parecesse um ato de recusa e rebeldia. O inconformismo lavrava, o vermelho era proibido e por isso desejado, e o amarelo latejava de subversão, pelo menos potencial, no Cante alentejano, nas ceifeiras que se dobravam sobre o trigo loiro mas não se vergavam.

  Clara e Clarice eram duas irmãs. Não eram gémeas, nem sequer parecidas. Clara era mais velha dez anos pelo menos que a irmã. A mãe enviuvara e voltara a casar. Eram meias-irmãs. Clara, continuando, era de pele morena, de estatura média, olhos cor de amêndoa, boca perfeita de lábios carnudos, nariz ligeiramente aquilino, corpo ágil, dançarino, inteligência emocional. Clarice era alta, muito esguia quase desengonçada, pele muito branca, olhos azuis, cabelo cor de trigo maduro, e era a mais calma das criaturas que eu conhecera, observadora inteligente sem ponta de sarcasmo, quase sem sentido de humor. Clara sofria de ataques de pânico, provavelmente uma psicose. Clarice, de uma doença nos ossos que ia agravando-se rapidamente. Não recordo com certeza absoluta das idades respetivas, mas fazendo as minhas contas, Clara estaria pelos trinta quando a conheci e Clarice, pelos 19 ou vinte.Eu, sem ser idoso, era então imensamente mais velho que elas.

  Clara, com alma de artista, dançava primorosamente. Clarice, tal não poderia realizar e, talvez por isso, mostrava forte inclinação para vir a ensinar meninos e seguiu para o curso de formação de professores. Clarice não dançava, pois, nem jamais poderia dançar. Não as conheci em crianças, apenas suponho (e as confidências delas sustentavam a suposição) que a mais nova invejaria o jeito dançarino da irmã e juntaria ao sofrimento físico que já se manifestaria desde a primeira infância , o sofrimento da inveja.

  Clara telefonava-me com frequência, sobretudo quando era acometida pelas suas crises. E aparecia-me à porta do meu pequeno apartamento lavada em lágrimas. Assim eu servia de confessor ou pai. Era o amigo muito mais experiente que admirava e em que confiava sem reservas. Julgo que depressa entendi o enigma, o fundo remoto do seu drama : não era aquela causa dolorosa de um amante que a trocara por outra mais nova, mas um "teatro" infantil! Uma , era a causa próxima, a outra era a causa remota e mais original. Um "fantasma" que a guiava e ela não sabia!

  Porque me recordo e porque associo com o amarelo? Talvez porque toda aquela relação entre mim e Clara, entre mim e Clarice, era ao mesmo tempo luminosa e escura, apaixonada e agónica como no quadro de Van Gogh, Corvos num campo de trigo!

  Porque quando as via, uma de semblante mais sério e precocemente madura, escondendo a enorme saudade que o primeiro namorado lhe deixara, e a outra cheia de energia para desperdiçar, rindo nervosamente, esfuziante, teatral, lembrava-me do amarelo! Mistério!

   Que gostava da cor já o disse e porquê, porém associar imediatamente a cor amarela com as mulheres isso não sei explicar. Sei que ambas me excitavam como se emergissem de repente nuas do ventre do oceano! Clara permitia que eu a apalpasse (as mamas eram a minha inspiração!) mas para mais ou para baixo, não. Com Clarice invertiam-se os papéis : era ela que me apalpava para depois me conduzir para o quarto quer a irmã se encontrasse em casa. quer não. E depois decorreu o mês de Agosto, desse ano letivo, única altura em que tínhamos férias : metade desse tempo ocupámos-lo com um passeio por terras de Espanha. Sevilha, Cádis.

  Clara suscitava-me uma paixão que não me trazendo sofrimento, incutia-me intranquilidade. Estava com a irmã e pensava na outra. Incomodava-me a sensação de mentira. E incomodava-me o sentimento de frustração que a irmã me deixava. Não me manipulava, porém fazia o seu jogo sem sentir-se culpada.

  Sem lhes confessar pedi - já o fizera antes da viagem - transferência para outra escola noutra cidade (a bem dizer uma vila)! Clara deixou de me telefonar definitivamente, quando soube na escola e não por mim. Clarice também, porque era completamente dependente da irmã. O costume era eu telefonar para a Clarice e ser a irmã a telefonar-me. Gostava das duas e aquele triângulo era-me doentio. Sempre que via uma, queria a outra, numa permanente troca de personagens. O peso da psicose de uma era demasiado pesado para eu o suportar mais um ano, a decadência física da Clarice era penosa de assistir. Acobardei-me talvez. Procurei numa nova namorada uma fuga para a minha frustração. É por isso que associo o amarelo : uma seara loira e vibrante na qual ceifeiras assalariadas, mal pagas e mal nutridas, iam envelhecendo depressa.

  Vinte anos se passaram. Nenhuma notícia sobre elas me chegou. Clarice encontra-se provavelmente numa cadeira de rodas, Clara encontrou outros confessores. Aquele "Pai" fantasma que ela procurava sem saber. 

----Nozes Pires----22/05/2023

 

 

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