segunda-feira, 22 de maio de 2023

Poema- Morte e Vida Joanina

 

Morte e vida joanina

 

Se quiseres, lembras-te de mim.

João é o meu nome, mas nem sempre me chamei assim.

Herdei de meu pai que se chamava João, mas podia ser António, ou José.

Venho de longe, da serra, do mar,  de um tempo tão antigo que se confunde com a idade do mundo.

Tive por mãe a terra madrasta, por pai a dura condição.

Venho dos fossados, das escaramuças,

Nos costados, nas fuças

Dos mouros, Por Santiago!,

Botei fogo a mesquitas, Oxalá volte vivo, suplicavam eles e eu também,

A mulher à lareira rezando o terço,

Cada palmo conquistado, uma tumba,

O futuro é hoje, Aqui d’el Rei!

Que em mim corre sangue árabe e eu nem dei por isso,

Porém de Sevilha abraçava em fantasia os luxos, as odaliscas, os perfumes,

Das terras do andaluz carregara no ventre minha mãe cinco centúrias

Mais outra metade em minoria de vencidos

A fuga de Abderramão, os massacres de Toledo e Córdova, a morte de Abú Sabah, aquele que disse: “Escrevi isto como recordação permanente do meu sofrimento. A minha mão perecerá um dia, mas a grandeza ficará”, Ibne Baji, Ibne Sara, Ibne Darrague, Ibne Amar, Ibne Abdune, Ibne Badrune...E Fátima, não vos esqueceis da filha virgem do Profeta que já entre oliveiras se passeava!

Já muitas águas de alanos, romanos, suevos e visigodos, haviam passado debaixo das pontes, Hernerico, Réquila, Requiário, Teodorico, Portucale...

A minha raça são muitas raças de muitos casamentos, amores clandestinos, consentidos, forçados, sequestros, raptos, quem mais se atrevia era sempre um Dom qualquer,

A quem pagava a dízima desde o tempo em que Roma trouxera a lei e a língua, viva D. João, o de Boa – Memória, que me aliviou um pouco,

Mas não dos alcaides e dos forais, que perduraram uma eternidade, alcaide-mor, alcaide-menor, alcaide de navio, alcaide do mar, alcaide das sacas, alcaide da vara, alcaide das prisões, e das coimas, ou calúnias, que eu, delinquente uma vez por outra, e as mais das vezes por necessidade, pagava e não bufava,

Cá eu não sabia não do que se desenrolava nas altas esferas dos senhores,

Gente da plebe só vai ao castelo para limpar o lixo, séculos a fio não conheci mais do que a leira, a capela, a taberna, fui uma vez ao Algarve para matar e morrer, fui mouro, era cristão, fiz-me pescador, artesão, fizeram-me servo, se antes clamava “Valha-me Alá!”, agora digo “Oxalá!”, e quero dizer o mesmo.

Uma mourisca arisca uma vez por outra transitava da minha cama para a outra, mas a fé mudou, sarracenos só na degola,

O Deus era o mesmo, mas eram outros os seus ministros,

E isso sempre me fez uma grande confusão,

 Meu pai, que era filho e neto da lavoura, logo em pequenino me ensinou : Meu filho, agora passas a levar ao senhor bispo três partes da colheita, que para nós só fica uma, e toca a andar que se faz tarde!

Sim, meu pai, e demais obrigações, que um vilão, da vila só conhece os arrabaldes, mudam os amos, porém o desamor é o mesmo, per saecula saeculorum,

Sabia lá quem fora o conde D.Henrique ou D. Hugo que o Porto venerava com medo da excomunhão, ou D. Urraca, D. Paio Mendes, com excepção de D. Afonso Henriques, ai, esse sim!, que invade a Galiza e batalha com a própria mãe, Oh! Que cantigas cantámos! A mãe desnaturada , o filho valoroso... com ele parti para Ourique em defesa já nem sei de quê, quem lucrou foi o nosso futuro rei, em seguida aí vamos nós à conquista de Lisboa, pelo caminho vamos tomando Leiria, Santarém, Alcácer do Sal, Évora, Beja, dos feitos da arraia miúda nem uma palavra, tombei em Badajoz a estrebuchar em sangue, escutando os gritos de aflição mas pelo rei, que eu sangrava como um porco, mas nem a Virgem nem Santiago me valeu,

Se quiseres lembras-te de mim.

Em 1352 eu fui povo de Lisboa, farto de tanta cruz e tanta gula, em 1383 acorremos ao paço acreditando que o amante da rainha pretendia assassinar o Mestre,  mas ei-lo à janela, ainda bem!, vou à Sé e atiro o bispo pelas escadas abaixo, pobre homem ele, pobre diabo eu, que não atinava nunca com os jogos dos poderosos, sofro o cerco castelhano, vem a peste, viva D. João, e D. Nuno, a quem confiei a vida como se confia a um Chefe e a um Santo,

agradeço-lhe ter-me deixado para pasto dos cães logo ali nos campos de Aljubarrota, esse foi o meu prémio.

Quando despertei do sono eterno era judeu, mas não agiota,

Que as artes da medicina logo aprendi,

A casa farta, um bando de filhos,

Era demasiada sorte para continuar assim,

Entre a fogueira e a confissão,

Escolhi a fé do inimigo, que é bem melhor ter duas do que nenhuma.

Fui almocreve e marinheiro, às ordens de Bartolomeu Dias dobrei o Cabo das Tormentas, de Boa Esperança não gozaram os camaradas que foram dar de almoçar aos tubarões, a bem dizer não mudaram de condição.

Em 1498 acostei em Calecute, não vi o Samorim, mas mercadejei em Cochim, Cananor, por Afonso de Albuquerque morri três vezes e outras três regressei, e era tanto o ódio parido do medo que o mar ficou duas vezes vermelho dos cadáveres boiando, das mães sufocadas na linfa dos filhos, ai os gritos em línguas estranhas que a minha espada silenciava nas artes de ceifeiro!

Fui soldado, ladrão, corrupto, canela, seda, gengibre, pedrarias de sultão, as moças trigueiras de Goa e Damão, fui carpinteiro e poeta, deitava-me mais rico que um marajá, para acordar mais arruinado que um aguadeiro em convento de frades.

A Índia foi o meu mistério e a minha perdição; comi tanta pedra de biscoito, bebi tanta água salgada, que quando regressei de vez, tinha mais filhos em casa que aqueles que eu próprio fizera.

Se quiseres, lembras-te de mim.

  Vou contar-vos a história dos que embarcaram no galeão grande “S. João” quando saiu da Índia m princípios de Fevereiro de 1552”, de Cochim trazia boa e basta pimenta, e a minha reforma para deixar de vez de ser labrego, a carga era demasiada mas o capitão ordenou-me ”Carrega mais, ó labrego!”, Sim Senhor, aqui vai mais um quintal!, Manuel de Sousa Sepúlveda capitaneava e connosco a bordo vinham sua mulher e três filhinhas, a vinte e cinco léguas do Cabo da Boa Esperança saltou-nos um vento rijo, e os fuzis de raios e coriscos ao fim da noite, metemos de capa com os papafigos e aguardamos tempos menos ruim; porém a uma centenas de léguas do Cabo fomos de novo empurrados para sudoeste e era tão grosso e desencontrado o mar que a cada balanço que o galeão tomava parecia que as vagas o meteriam no fundo. Três dias se passaram, o leme perdido, e outra vez o vento e agora o temporal, fica de ló o navio e lá se foi a vela grande, e em seguida o mastro, gávea, aparelho, enxárcia, na costa de Moçambique o galeão abalroou as areias, partiu-se em dois, e depois em quatro, duzentos portugueses e trezentos escravos, lancei-me eu a um cepo e rezei à pressa uma avé-maria, caminhámos pela praia até a um rio, seis meses e meio, com muita fome e muita sede, não fui devorado por leões porque não me deixei ficar para trás, depressa aprendi o negócio de vender água e pele de cobra, a fome era tanta que os meus companheiros de desgraça tudo pagavam, ossos torrados, peixe morto, estávamos no rio desejado e não sabíamos, pelejámos com cafres e , até que, por fim, o capitão Sepúlveda perdeu o tino, a mulher e os filhos, embrenhou-se no mato e desapareceu. Sobrei eu mais sete portugueses, até que sucedeu que um navio, em que ia um parente de Diogo de Mesquita, foi ter àquele rio para comprar marfim. Tendo notícia de portugueses perdidos, mandou procurá-los, resgatando-os pelo preço de algumas contas, que seria de dois vinténs por cada um. Embarcámos, pois, e chegámos à ilha de Moçambique a 25 de Maio, de 1553. Desgraçado que eu fui, que sempre tive mais olhos que barriga.

Se quiseres, lembras-te mim.

Fui negreiro e fui pirata, procurei debalde a ilha do tesouro, nos mares da China e do Brasil, apodreci de escorbuto na imundície das caravelas, espanquei escravos nos engenhos, emborrachei-me de cachaça e inventei o fado, quando a minha sina era mais triste do que as vidas que eu cantava, minha terra, minha aldeia, cacei índios pelo cachaço e fui bandeirante, afoguei-me em pântanos de açúcar, na hora das minhas agonias só o silêncio de Deus me amortalhava.

Se quiseres, lembras-te mim.

Combati nas guerras civis, a princípio por D. Miguel, que eu vi uma só vez tão bonito a cavalo, mas passei-me logo para D. Pedro, a ver se do lado dos vencedores almejava alguma liberdade, deceparam-me a mão esquerda na Patuleia, que eu na Maria da Fonte já lá não estive, e sempre me esqueciam, sempre em campa rasa me enterravam, e nem o meu nome sabiam.

Escutei tipógrafos ilustres darem-me a boa nova do socialismo, e eu rumava para casa a ruminar revoltas, nem da República mamei nos peitos fartos, apenas me couberam outros na enxerga de umas águas furtadas, ouvindo os ratos rac-rac!, a caminho da fábrica marchava em madrugadas de pesadelo.

Se quiseres, lembras-te de mim.

Anos a fio fui e voltei, anos a fio o vinho calava-me o grito, eu na taberna, a mulher no terço, anos a fio contrabandeei, fiz-me escroque mas nunca delator (foram tantos que eu até me envergonhei de ser português), parti pedra, emigrei prá França, Venezuela, Canadá, afrontei a Guarda Fiscal, a GNR e a pide, conspirei, passei panfletos de mão em mão, fui interrogado, ofendido, tive medo e não voltei, pregaram comigo numa caserna, a marchar dia e noite esgotado de fadiga e de saudade, ó minha terra, ó minha serra! Que eu vou prás áfricas e não volto mais!

Vim de facto, mas numa caixa de pinho,  que nem a minha amada pôde-me beijar,

Ó minha mãe que aleitaste um filho

Para ele ficar tão minguado numa caixa de pinho!

Tu, pelo menos, lembras-te de mim.

Feliz natal e muitas prosperidades, adeus, até ao meu regresso,

E mais não digo que me não deixam,

Minha mãe, minha esposa, já vou a caminho,

Guardem para mim uma cova bem funda,

Para que não ressuscite dos mortos ao terceiro dia.

Ah meus irmãos, meus camaradas, que se eu regresso um dia,

Venho armado de uma espada com mil anos,

De humilhações e sonhos traídos,

E cantigas tão tristes que até as pedras hão-de chorar!

 

Apesar de tudo que vos conto,

Garanto-vos que amei, ó, se amei!

Amei esta e aquela, ao luar na praça,

Ao sol de agosto na horta,

Era pobre mas não era parvo,

As cantigas delas eram de desafio,

As nossas escondiam facas de ciúme.

De tudo que não esqueci,

É disso que me lembro bem.

 

 Ao fim daquela noite há sempre um dia,

E esse dia chegou, em medo primeiro :

Eis-me por fim soldadinho do povo numa linda alvorada,

Ó minha história, minha memória!,

Tanto beijo, tanto grito que gritei,

Tanta esperança libertada!

As ruas foram rios,

os rios, corações,

Nos rios da minha cidade

Rumavam sonhos e canções!

 

E agora, já te lembras de mim?

 

......Nozes Pires-----25/01/2007

 

 

 

 

 

 

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