segunda-feira, 22 de maio de 2023

Poema- Páscoa

 

Páscoa

 

Dizemos palavras para esconder aquelas que não dizemos.

Abre-te primavera, na tua glória antiquíssima!

E vem recordar a música das palavras que a rotina silenciou

Quando adultos as guardámos no armário ao pé das pratas,

Da louça de porcelana, como as velhas tias que assim procediam:

Não diziam certas palavras, mas escondiam-nas onde todos as vissem,

Discretamente, para que todo o amor censurado se assemelhasse à prata polida.

É por isso e por outras razões íntimas que ainda me espanta estar vivo.

 

Sem asas nos olhos olhávamos os pássaros nos beirais a recompor os ninhos

E foi assim que aprendi o significado da palavra “Primavera”.

“Páscoa” foi noutra ocasião se bem me lembro.

 

Amanhã estará porventura escuro como um eclipse

Mas hoje não. Hoje a luz sobe aos teus olhos ausentes como nos retratos de Modigliani

E volta de novo a placidez do banco do jardim onde ficávamos horas esquecidas

Confiantes que a nossa vida seria assim, translúcida, voo de pássaro, serenidade de barco esquecido na praia.

 

Voltaremos a sentar-nos todos, a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos,

E o tempo ficará retido na toalha alvíssima de linho,

Na comida modesta com que celebraremos a páscoa, ó coração

Não pares agora! É tão doce este crepúsculo!

Tudo que se estragou será recuperado, toda a palavra será justa,

Todo o gesto será perfeito.

O barquinho de pau que me construiste, meu irmão,

Guardo-o ainda no meu peito. Porque partiste tão cedo?

 

Vem minha mãe, sem aquele teu olhar triste,

Aconchegar-me à noite a roupa no meu leito!

 

Sobre a toalha alvíssima de linho

 pão e vinho,

E chega suavíssimo o sol-pôr

Trazer na páscoa a palavra justa : amor!

...........Nozes Pires-------08/04/2023

 

 

 

 

 

 

 

 

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